Roberto Sadovski

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Opinião

David Lynch deu à arte (e ao mundo) o maior dos presentes: o inesperado

Nos últimos dias de outubro de 2001, estava eu em Los Angeles para cobrir o lançamento de um blockbuster qualquer. Mas não havia clima para pensar em diversão e entretenimento na metade de cima da América —não quando as torres gêmeas haviam sido pulverizadas em Nova York no mês anterior, trazendo ainda mais caos e incerteza ao mundo do novo milênio.

Caminhando por Santa Mônica, aproveitei o tempo livre para ir ao cinema —um multiplex independente dedicado a obras fora do circuito. Em cartaz, se não me engano em seu fim de semana de estreia, arrisquei uma sessão de "Cidade dos Sonhos", pelo qual David Lynch ganhara a Palma de Ouro em Cannes meses antes. Pouco mais de duas horas depois, luzes acesas, nada mais fazia sentido. E tudo estava perfeitamente claro.

O cinema de David Lynch nunca buscou respostas —talvez por isso o mesmo cinema sempre o deixou à margem. Seu trabalho não existia para mergulhar o público no torpor das histórias fáceis e dos finais felizes. Pelo contrário: de "Eraserhead" a "Império dos Sonhos", fomos brindados com obras surrealistas, ousadas, em que forma e narrativa se confundem em experiências expansivas, com pontos de partida mas raramente concordando em um fim.

Sucesso à meia-noite

Lynch foi pintor e assinou curtas de animação e live action antes de estreitar seu foco por cinco anos para conceber "Eraserhead". Financiado em parte com investimento do American Film Institute, o filme é uma comédia sombria amarrada a um terror surrealista que desafiava a percepção do cinema enquanto bombardeava os sentidos. O ano era 1977, e quanto a cultura pop experimentada a explosão de "Star Wars", Lynch radicalizava o cinema americano à sua maneira.

Depois de um desinteresse inicial em suas primeiras sessões, "Eraserhead" ganhou tração em sessões à meia-noite no circuito independente americano. A história do homem obrigado a tomar conta de seu bebê, nascido com deformidades severas, não fugia ao desconforto da temática sexual e imagens lisérgicas, conduzidas por um autor que assinava direção, montagem e roteiro, além do desenho de som e da trilha. Mas o que fazer com um artista com essas credenciais —e mais, com essa obra como cartão de visitas?

Essa mesma pergunta reverberou em Stuart Cornfeld, produtor na empresa do diretor (e gênio) Mel Brooks. Transfigurado com "Eraserhead", Cornfeld passou a palavra a seu chefe, que teve reação similar e contratou Lynch para dirigir a biografia de John Merrick —figura que de certa forma espelhava, no mundo real, questões profundamente incômodas abordadas na arte de Lynch. O filme era "O Homem Elefante".

Ponto de equilíbrio

Foi com curiosidade e reverência que o cinema mainstream recebeu David Lynch, que neste seu segundo longa já emplacara sucesso comercial e artístico, coroado com oito indicações ao Oscar, inclusive de melhor direção. Os anos 1980 já consolidavam uma transição sugerida na década anterior, com a velha guarda hollywoodiana abrindo espaço para novos autores em filmes que, não raro, eram arquitetados para encher os cinemas. Lynch, muitos pensaram, poderia compor as mesmas fileiras.

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"Duna", épico espacial de 1984 que ocuparia o vácuo deixado pelo fim da trilogia "Star Wars", foi a tentativa do diretor para se encaixar nesse modelo. Ele ainda imprimiu sua personalidade aos vilões extravagantes e aos conceitos absurdos da obra de Frank Herbert. Mas a produção foi desastrosa, marcada pela interferência onipresente do produtor Dino De Laurentiis, e solenemente ignorada por um público que buscou, em vão, o clima de matinê da galáxia muito distante.

Devastado pela experiência, Lynch respirou e rodou um segundo filme com De Laurentiis —e o mundo voltou a fazer sentido. "Veludo Azul" (1986) foi o ponto de equilíbrio em que o diretor combinou à perfeição o film noir americano, uma refeição farta de violência, protagonistas fragmentados e mulheres fatais, com o surrealismo europeu clássico emoldurado pela obra de Luis Buñuel. A mistura não precisava fazer sentido, mas precisava ser sentida!

Subversão no coração da América

Essa mesma sensibilidade, impulsionada por um subtexto sexual ainda mais forte, impeliu "Coração Selvagem" (1990). Com Nicolas Cage e Laura Dern à frente, Lynch intensificou a temática que conduzia "Veludo Azul" —o horror escondido por trás da repressão moral e da ilusão de conformidade em uma cidade perdida nos rincões da América— e a escancarou para o mundo. Cannes abraçou a proposta e deu ao filme a Palma de Ouro.

Empolgado com as possibilidades, Lynch decidiu aumentar a aposta em sua subversão narrativa e levou essa mesma visão ácida para o conforto de cada lar americano. Criada com Mark Frost, a série "Twin Peaks" foi levada ao ar pelo canal ABC em 1990. Acostumado com novelões à tarde e comédias no horário nobre, o público ianque foi forçado a sair de seu torpor com uma trama de assassinato que disfarçava uma fábula sombria, incômoda, sobrenatural e imprevisível.

Embora tenha perdido fôlego em sua segunda temporada, já sem a presença constante de Lynch em sua feitura, "Twin Peaks" foi um fenômeno sem precedentes, antecipando em forma, temática e narrativa a produção televisiva do final do século 20. Adicionando ainda mais camadas à sua criação, o diretor fez o filme "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" (1992) como um prólogo da série, e retomou a história 25 anos depois em uma terceira temporada que recuperou parte do elenco original.

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A mais pura arte

A essa altura, David Lynch havia transcendido seu ofício como cineasta para se tornar uma marca. Seu nome se tornou adjetivo para filmes que flertavam com surrealismo e experimentação visual e narrativa. Enquanto isso, ele imprimia sua assinatura inconfundível em comerciais (Calvin Klein, Yves Saint Laurent), vídeos musicais e séries de TV

Ao fim do século 20, Lynch mostrou sua versatilidade em dois filmes amplamente distintos que flexionavam músculos similares. "A Estrada Perdida" (1997) extrapolava a estranheza de "Veludo Azul" com ênfase em personagens de personalidade conflitante, mudanças bruscas no ritmo narrativo e um coquetel temático não raro explodindo em ultraviolência.

Dois anos depois, "História Real" trouxe Lynch retomando o pulso emocional de "O Homem Elefante" na história de um veterano que percorre 400 quilômetros em um trator para ver seu irmão enfermo. Sem firulas sensoriais, sem arroubos surrealistas. Lynch como contador de histórias, como cineasta em total controle. Sem explicações, só a mais pura arte.

Os olhos no donut

David Lynch morreu nesta quinta, 16 de janeiro, aos 78 anos. Em 2024, ele revelou sofrer de enfisema, resultado consumo de quantidades industriais de cigarro, hábito adquirido aos 8 anos de idade (!). O diagnóstico, recebido dois anos antes, resultou no abandono do vício e na decisão de não mais deixar sua casa —a baixa mobilidade, severamente prejudicada pela total falta de fôlego para quaisquer atividades, terminou por encerrar sua carreira como diretor. Sua última aparição na tela grande foi como ator, interpretando o cineasta John Ford em "Os Fablemans", de Steven Spielberg.

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Seu último filme, "Império dos Sonhos" (2006), seguia uma narrativa fragmentada com personagens frequentemente habitando um mundo onírico, separados violentamente da realidade. Foi seu único trabalho realizado durante seu fascínio inicial pela internet —ele criou um site em dezembro de 2002 para abrigar curtas, um ringtone e uma webserie surrealista, além de gravar, diariamente, a previsão do tempo em Los Angeles. A URL davidlynch.com é redirecionada hoje para seu canal no YouTube.

Cada uma de suas incursões artísticas - fosse no cinema e na TV, como pintor e escritor, como designer e músico —revelava um artista único, talento que fez uma realidade estranha e impenetrável, de regras rompidas e limites ultrapassados, tornar-se acessível no tecido da cultura pop. David Lynch fará falta imensa em um mundo cada vez mais retrógrado e reacionário. Talvez ele dissesse, como marcou sua família no comunicado sobre sua morte, "Mantenha os olhos no donut, e não no buraco".

Raios de sol dourados

"Cidade dos Sonhos" foi concebido como uma série de TV. O piloto foi recusado pela rede ABC, a mesma de "Twin Peaks", levando Lynch a reimaginar o material como um longa: uma aspirante a atriz (Naomi Watts) chega em Los Angeles e tem seu caminho cruzado por uma mulher que, depois de um acidente, sofre de amnésia (Laura Herring). No poster se lia "Uma História de Amor na Cidade dos Sonhos".

À medida que o filme avançava, com suas figuras de identidade múltipla, sua narrativa fragmentada e explosões sensoriais, era difícil ignorar meu próprio incômodo. "Cidade dos Sonhos" era um filme de terror, era também um estudo de personagem, era um comentário sobre causas e consequências da fama. Era tudo isso e não era nada disso. Lynch se recusou, em Cannes durante seu lançamento e nos anos seguintes, a tecer qualquer explicação sobre seu significado.

Lembrei-me, a certa altura, de "Eraserhead". Sem fazer concessões, projetando luz e som diretamente em nosso subconsciente, David Lynch criara já na largada um rito de passagem, uma chave para compreender o poder transformador do cinema. Décadas depois, em um cinema de Los Angeles, uma plateia pequena abria mais uma vez essa porta. Lá, aqui, ontem e hoje, no sofá da sala e no mundo todo. Do lado de fora, a vida seguia. Ainda segue. "É um belo dia com raios de Sol dourados e um céu azul a perder de vista."

Opinião

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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