'Paixão pela comida me conduz': Massimo Ferrari é a cara de São Paulo

Sabe aquele amigo da família, italianão típico, gente boa, sotaque à la Mooca, "meu", sempre de braços abertos e sorriso largo? Pois é, Massimo Ferrari é isso. E muito mais. Se São Paulo tem um representante de sua gastronomia, um embaixador old school de seus sabores, é ele.

Maior anfitrião da Pauliceia, chef autodidata, geek de literatura culinária, cuoco ("cozinheiro") e restaurateur do primeiro time, sete décadas na ativa, Massimo Ferrari, do alto das bem-vividíssimas oito décadas, ainda impõe-se desafios no repaginado Felice e Maria, na zona sul paulistana — o nome do espaço gastronômico homenageia os pais, já falecidos.

Um restaurante não é algo estático, é um organismo sempre em evolução. E os clientes gostam disso, ensina.

Massimo Ferrari, no restaurante Felice e Maria, em 2019
Massimo Ferrari, no restaurante Felice e Maria, em 2019 Imagem: Mathilde Missioneiro/Folhapress

Ambição pelo novo

Massimo Ferrari
Massimo Ferrari Imagem: Divulgação

Muito do tudo que o mestre sabe de cozinha, aprenderia com os pais, ela, da Calábria, ele, do Piemonte, na Itália, onde Massimo nasceu e viveu até a primeira infância. Durante a Segunda Guerra (1939-1945), Felice, o pai, serviu na força aérea italiana. Findo o conflito, surgiu o dilema do que fazer.

Eu tinha um tio no Brasil, irmão dele, que escreveu uma carta dizendo que o Brasil oferecia boas possibilidades e recebia bem os imigrantes. Ele veio e não voltou. Um ano e meio depois, viemos eu, minha mãe e meu irmão. De navio. Isso em 1947. Eu tinha cinco anos.

Já estabelecido, o pai abriu uma oficina mecânica de carros no Brás, bairro então reduto de parte significativa dos emigrados. "A certa altura, um cliente do sul do Brasil veio e comentou com ele sobre a ideia de abrir uma churrascaria em São Paulo. E meu pai vislumbrou uma boa possibilidade de negócio".

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A oficina foi vendida. Felice Ferrari chegou a trabalhar como garçom na churrascaria Pampas. Em 1954, abriu, com sócios, na avenida Rio Branco, no então glamoroso centro da capital paulista, a churrascaria Cabana, uma das primeiras da cidade, tocada - literalmente - pela família.

Eu comecei criança, enxugando talheres. Depois, fui passando por todas as praças. Adorava tudo aquilo, o ambiente, a clientela indo e vindo. Fazia o dever da escola nas mesas. Pra mim, tudo era uma grande brincadeira, que com o tempo viraria uma paixão incontrolável, recorda Massimo.

"Aprendi muito. E acho que já tinha talento. Mas meus pais sempre pegaram no pé para que eu também estudasse, me incentivavam na leitura. Eles são o maior exemplo que me conduziu à deliciosa ambição de aprender o novo".

Carne de primeira

O restaurante da família, que chegou a ter chef francês, deu super certo, "graças à astúcia comercial, visionária até, do meu pai, que gostava de comer bem".

Quem viveu, testemunha. "Na época, o Cabana era uma novidade tremenda na cidade", assegura o decano jornalista e escritor J.A. Dias Lopes, há décadas amigo do chef. "As pessoas entravam e se admiravam com a enorme churrasqueira redonda de cobre no meio do salão, feita sob medida. Ademais, o Cabana introduziu uma certa visão europeia de restaurante, com um excelente serviço de salão".

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A assinatura do cardápio eram as carnes. "Eles sabiam o que faziam. O Filé à Chateaubriand era um hit, a chuleta e a picanha, também", recorda Dias.

O frango desossado e o lombo de porco fatiado também eram novidades. E havia o espeto misto de churrasco, intercalando diferentes cortes, outro sucesso da casa.

Claro, a comida oriundi igualmente reinava: lasanha, espaguete, fettuccine. O estrogonofe da casa era igualmente célebre. O Cabana seguiria com a família até 1993 - só que mudanças pairavam no ar, o centro de São Paulo aos poucos esvaziava-se dos bancos e das grandes empresas.

Então, em 1976, em outro arroubo de intuição do patriarca, surgia, na alameda Santos, a uma quadra da avenida Paulista, o restaurante que levava o nome do filho mais novo. Um passo de gigante em sua carreira.

Ícone entre ícones

Massimo Ferrari, no Massimo, em 1990
Massimo Ferrari, no Massimo, em 1990 Imagem: Elena Vettorazzo/Folhapress
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Porque o Massimo, o restaurante, o primeiro italiano refinado de São Paulo — lembremos, eram ainda os tempos das cantinas —, logo se transformou na grande mesa da cidade. Palco de relacionamentos e negócios, era frequentado por empresários, políticos, artistas, socialites, celebridades de então. Enorme, comportava até 250 comensais. Com comida de primeiríssima, foi o epicentro de alguns dos primeiros festivais de gastronomia, trazendo ao país chefs europeus.

Brilhando no salão e na cozinha — e na administração, pois Felice Ferrari falecera — a figura proeminente de Massimo, o rosto da casa. Restaurante e chef marcaram época, conquistando legiões de admiradores ao longo de décadas. Viraram ícones.

"Quem consegue não falar dele com carinho?", questiona o restaurateur Gero Fasano, dono da grife hoteleira-gastronômica homônima.

Ele é unanimidade. Muito gentil, generoso, afetivo. Além de grande cozinheiro, é um P.R. nato, as pessoas vão até ele para se sentirem tratadas, abraçadas, diz.

Massimo Ferrari, no Massimo, em 1988
Massimo Ferrari, no Massimo, em 1988 Imagem: Vidal Cavalcante/Folhapress

No passado, antes de alguns passos profissionais, o empresário revela ter ido aconselhar-se com Massimo. Foi assim, por exemplo, antes da abertura de uma de suas casas na rua Haddock Lobo, nos Jardins. "Ele me ajudou muito, me deu boas dicas. E sempre senti nele prazer em compartilhar esses saberes".

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Gero revela ainda que, certa ocasião, quando projetou abrir uma unidade de seu elogiado restaurante Parigi na avenida Faria Lima, propôs sociedade ao mestre. "Ele ficou muito emocionado, muito tocado, agradeceu profusamente, de eu ter me lembrado dele. Acabou não acontecendo, mas teria sido um golaço".

Outro grande amigo gourmand que sempre lhe rendeu elogios foi Washington Olivetto (1951-2024).

Uma pessoa adorável, com o dom da gentileza. Com seu garbo, domina com rara maestria a arte da cozinha e do salão. Sempre comi muitíssimo bem com ele, definia o publicitário.

Frequentador, com a família, do Cabana, Olivetto contava que, nessa época, o via por lá, mas ainda não o conhecia. Quando o restaurante Massimo foi aberto nos Jardins, rapidamente tornou-se uma das catedrais da DPZ, a lendária agência de publicidade de Olivetto, que lá realizava almoços, jantares e festas. Selava-se, assim, uma grande amizade e admiração recíprocas.

"E quando ele teve o conflito com o irmão, desfazendo a sociedade no restaurante, o Boni (diretor da TV Globo) e o Fausto (apresentador), que eram seus amigos e habituês, o levaram para a Globo", declarou Olivetto, em entrevista.

Amor à italiana

Massimo Ferrari
Massimo Ferrari Imagem: Divulgação
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Isso em 2007. Inaugurava-se, assim, um novo ciclo em sua trajetória, à frente do restaurante corporativo da cúpula da emissora. Faustão já era brother antigo, dos anos 1980. "Um irmão que a vida me deu", assegura Massimo. Tanto que, a quatro mãos, anos mais tarde a dupla lançaria o livro Pizza do Faustão. Sua comida e carisma fisgaram os globais — Luciano Huck, outro chapa, até hoje afirma "fazer qualquer coisa pelo Massimo".

E veio o classudo Felice e Maria. Aberto desde 2009, reúne, em dois pavimentos, um mix de rotisserie aberta ao público, salas para degustações, e espaços para almoços e jantares privados e encontros de confrarias e de grupos de empresários.

Aqui e ali, peças de arte exclusivas, como o hipnótico leão em tamanho natural, entalhado em madeira. Integrada ao espaço, a colossal biblioteca de títulos de gastronomia, inigualável, no país. E na adega, rótulos exclusivos, garimpados a dedo anualmente pelo maestro em pequenas vinícolas familiares da Calábria e do Piemonte com quem compartilha cumplicidade. Outro de seus pioneirismos.

São expedições regulares — três ao ano, em média — à Itália. "É uma tradição da qual sempre fiz questão, o lado poético da coisa, o contato com pequenos produtores que amam a terra, amam o que fazem, e que ainda hoje tratam a uva como se tratava antigamente", diz.

"São produções pequenas, de apenas cinco, seis mil garrafas ao ano, pérolas da terra que não são conhecidas por aqui". Com assinaturas desse naipe, o exclusivo endereço da Vila Olympia configura outro grande marco em sua carreira. Tanto que, em 2020, o maestro foi reverenciado pela revista Veja São Paulo como Personalidade Gastronômica do Ano.

Mas em honras assim a gente nunca está sozinho, né? Há sempre um valor coletivo, um time por trás.

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Caso, por exemplo, das irmãs Vanessa e Alessandra Casillo, de há muito entre os seus pilares, na gestão e no atendimento, no virtuoso ciclo do Felice e Maria.

Alessandra Casillo e Massimo Ferrari
Alessandra Casillo e Massimo Ferrari Imagem: Divulgação

Em 2024, o presidente italiano Sergio Mattarella veio ao Brasil em viagem oficial. E incluiu a mesa do Felice e Maria em seu roteiro. Gostou tanto que outorgou a Massimo a Medalha de Comendador da Ordem ao Mérito. Convenhamos, ele merece.

"É o reconhecimento de uma família que veio aqui, criou raízes e conquistou seu espaço sem nunca deixar de amar a Itália", declarou o chef.

E também porque ainda hoje, é a paixão pela comida, e por melhorar a cada dia, o que me conduz.

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