'Cão Engarrafado' diz com quantas tretas se faz o bar mais legal de SP

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"Com bebida, melhora. Sem bebida, a gente vai fazer o possível."
É engraçado entrevistar a seco o maior entendedor de uísque do Brasil e sócio de um dos bares mais perfeitos de São Paulo, o Caledonia Whisky & Co. (favorito dessa que vos escreve, sem a menor dúvida ou imparcialidade. Os outros que lutem).
Sem bebida entre nós, nunca tínhamos conversado e as histórias de Maurício Porto sem uma dose de qualquer coisa incrível que ele queira apresentar são divertidas ainda assim — você, leitor, pode dizer o mesmo?
Depois de uma apresentação estranha anos atrás, O Cão Engarrafado foi uma das boas influências no meu gosto por destilados e coquetelaria.
Antes disso, aliás, quando até essa coluna girava em torno da cerveja, caí de amores por uma Dádiva pensada em parceria com Maurício: a Odonata #5, uma Russian Imperial Stout envelhecida em barril de uísque. E também morria de inveja do talento como fotógrafo de Maurício e seu sabre de LED que parava as degustações.

Uísque entra em cena
A bebida na vida de Maurício veio por incentivo do pai:
Minha família bebe muito pouco. Quando eu fiz 19 anos, eu e meu pai fizemos um cursinho de uma semana de sommelier de vinho. E qual que era o grande objetivo dele, que eu saquei depois: queria me ensinar a beber direito, lembra.
Não que não rolassem, claro, as besteiras juvenis de encher a cara com bebida ruim. Quando ele e Guilherme Valle, amigo de infância, viraram para a maioridade (com apenas 3 dias de diferença), foram beber cachaça e cerveja de origem duvidosa. Quem nunca?
Anos depois, o amigo, engenheiro e também formado em cinema, comandaria com Maurício o Caledonia. Na faculdade, vieram mais duas companhias: Luciana, hoje esposa e, ao lado do "cão", virou a "cã"; e o uísque, um Glenfiddich 18 anos, presente do pai de um amigo.
"Na época pensei 'cara, isso é muito bom. Tem alguma coisa aqui. Vou começar a entender mais'. Aí apresentei para o Guilherme e a gente começou a ir atrás", recorda.
Primeiro em cursos, como o Wine & Spirit Education Trust. Depois em viagens, como as para a Escócia.
Eu já era um entusiasta, mas quando chega lá, tá ferrado. Por mais que você estude, ir pra lá mostra que é muito mais do que um puta produto. É quase antropológico, é influenciado pelo ambiente em que eles estão. Foi surpreendente, porque é um país lindo. Não tem canto feio. E, se tem, é charmoso.

Ainda como gosto, não como ganha-pão, a bebida dividia o tempo com o trabalho advogado de mercado de capitais. Ele gostava? "Acho que a palavra gostar é forte. Eu tolerava", diz, emendando que sua função na época, em stock option plan, só "parece chata".
"O que eu não tinha e que ajuda muito na minha profissão hoje é o seguinte: eu não era dono do meu tempo", relembra os turnos de 12, 14 horas diárias, muitas vezes aos finais de semana.
Como dono de bar há quase sete anos, não dá para negar, a vida ficou melhor - e claro, mais divertida. Mas antes dele, surgia o melhor amigo do homem: o cão engarrafado.
O melhor amigo do homem
Luciana, então grávida da primeira filha e diante de um Maurício cuja rotina estava em chegar em casa, tomar um copo de uísque e dormir, lançou a ideia: "Por que você não começa a escrever um blog?"
Com Guilherme, a ideia ganhou forma, história, identidade e personagem (O Cão Engarrafado) para começar a traduzir o conhecimento de uísque disponível em inglês para o português, de forma acessível. Na época, em 2014, a comunidade dos apaixonados pelo destilado era muito menor e menos organizada, diga-se.

Cursos e presença nas degustações ajudam a "espalhar a palavra", assim como bons amigos das salas de aula e dos copos.
Numa aula, o Cesar Adames apresentou o Cão para 50 alunos do WSET. Depois Alexandre Campos, da Single Malt Brasil, me chamou para dar um curso. E eu, advogado durante o dia, professor de uísque durante a noite. Adorava, né?, afirma.
A quantidade de copos e garrafas para todas as aulas que surgiram forçou Maurício e Guilherme a pensarem em uma sede física. Por que não um bar?
Sala de beber

Não era para ser bar, mas uma sala de aula. Mas e se vendessem o uísque da aula? Uma loja. Para ter os dois, precisa operar todo dia. Por que não um espaço de degustação sem professor? O "balcão com um monte de uísque atrás", claro, seria um bar.
De 2017 para 2018, Maurício e Guilherme deram o start no projeto do Caledonia. E o bar abriu em 2020, semanas antes da pandemia chegar ao Brasil.
A gente se ferrou de todas as formas possíveis, imagináveis. Choveu voadora. E o Caledonia entrou no azul bonitinho, esse ano (2024), calcula.
Sobreviventes com delivery, chegaram ao "novo normal" com comida boa, coquetelaria afinada e ambiente redondo. Mas faltava ainda algo para decolar de vez.

Deu vontade de desistir?
Mais uma vez. Em uma delas, cheguei para o Guilherme e falei assim 'cara, a gente precisa botar uma data nisso. Se não virar até determinada data, a gente vai fechar".
Sem plano B ou vontade de voltar à vida de advogado, Maurício aconselha os jovens empreendedores: "Não desistam quando tá dando errado, continuem errando", ri.
"A gente percebeu que é um pouco de dar tempo ao tempo, aprender alguns macetes da indústria que ninguém te fala, como precificar as coisas direito, o que vender, o que não vender, o que é excesso, o que a própria indústria do destilado espera de você", analisa.

O Caledonia se adaptou e diversificou sua carta de coquetéis (agora não só com uísque) e o público - por aqui, Mau e o chefe de bar do Caledonia Alison Oliveira (um gênio, aliás) falaram sobre os bons Martinis.
Os nerds e os velha-guarda do uísque seguiram fiéis, mas agora surgiam no balcão também jovens entusiastas e mulheres (segmento eternamente desprezado ou fetichizado pelo mundo do uísque). E não tem espaço para torcidas de nariz para os blended, nem para os bourbon - que os bebedores de scotch single malt uma vez amaram criticar.
O uísque é uma bebida que tá crescendo, mas é uma bebida não só nichada, como existe um preconceito em relação ao que ele é. Quando as pessoas não gostam de uma bebida, geralmente, é porque elas não foram apresentadas ao estilo daquela bebida que elas efetivamente gostam, acredita.
O preço do pódio

O resultado da virada de mesa foram novos fãs e prêmios para o bar como a entrada no 50 Best Discovery, e melhor bar de 2023 pela Folha de S.Paulo, além de melhor bar de drinques pelo prêmio aqui do UOL.
Além disso, Maurício vestiu o kilt e se tornou Keeper of the Quaich (honraria direto da Escócia para os que divulgam a bebida pelo mundo).
Impossível não gostar de prêmio se você tem um bar coerente e que sobrevive de dinheiro, concordamos.
Traz público, faz buzz. Pessoas que não se sentiriam a vontade de ir acabam indo e se surpreendendo. Tem uma galera que não faz a menor ideia de como chegou no Caledonia.
Se os olhos crescem para um 50 Best Bars? Sim, claro, mas "me proteja do que eu quero", brinca Maurício.
Porto enfatiza: é um ambiente que você tem que ser político.
A diferença entre um bar que entrou no 50 Best ou ganhou qualquer prêmio grande e um bar que não entrou quase nunca é a qualidade da bebida. Geralmente, é a política que você faz. Óbvio que tem que ter um trabalho consistente. Você não vai entrar no 50 Best sendo uma porcaria.

E com os prêmios, vêm concessões que o Caledonia, por enquanto, não está disposto a fazer.
"Muito provavelmente eu vou ter que começar a relativizar coisas, ter um drinque mais docinho, uma comidinha mais acessível, que é o caminho que você tem pra não virar um fiasco".
Quem ainda não foi ao Caledonia, a pegada é álcool no álcool, complexidade de sabores, texturas, aromas. Um sonho, mas não é do gosto de todos. De toda forma, já vi gente que entrou dizendo detestar uísque e saiu "pensando melhor".
E abrir um outro bar para isso... não.
O grande risco que você tem dentro desse mundo é você criar talvez uma versão pocket ou simplificada ou acessível ou talvez uma rebuscada do que você já tem, opina.
Amor de uísque
Nestes bons anos de papos etílicos, posso dizer com toda convicção: Maurício não tem meias palavras para avaliar as coisas. Como bom advogado, defende com todos os argumentos possíveis o que gosta e o que não curte tanto. Ainda mais o que adora - acompanhado de um "irado".

Hoje, trabalhando com uísque e bar, ele considera que as surras do mercado - e são muitas - não tiraram uma dose de sua paixão e continua tomando seus bons drinques em casa e se derretendo pelos mesmos queridos.
A diferença é que agora, por uma questão comercial, não ficam tão explícitos como antes. Afinal, não vale favorecer o coração nesse mundo dos negócios.
Mas Maurício faz um apelo emocionado - e sem álcool — de qualquer jeito:
Muitas vezes a gente conversa com as marcas e elas falam 'ah, mas isso não faz sentido trazer para o Brasil. É difícil a importação'. Acho que falta um pouquinho de um olhar de começar a criar um mercado mais maduro e pronto pra aceitar produtos de luxo e coisas diferentes. É o que vai fazer a diferença. Gente, olha o macro e dá uma chance. O consumidor mudou muito nos últimos anos. A gente tem esse apelo de desejo cada vez mais, conclui.
Se Mau falou, tá falado. Se ele indicou, tá indicado. Na infinidade de bares bons de São Paulo, como a gente acredita ter, um deles tem um dos caras mais bacanas, um cão engarrafado com orgulho.
*Trilha sugerida para harmonização com essa coluna: "Folson Prison Blues", Johnny Cash.
Quem quiser bater um papinho, sou a @sigaocopo no Instagram.
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