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Indígenas apostam em "chocolate de luxo" para lutar contra invasão e mortes

Cacau colhido por indígenas yanomami vira chocolate premium - Divulgação
Cacau colhido por indígenas yanomami vira chocolate premium Imagem: Divulgação

Marcos Candido

De Ecoa, em São Paulo

04/11/2020 04h00

O cacau é considerado pelos Yanomami como um fruto dos deuses, um alimento cósmico enviado para salvar os humanos da fome. Já o chocolate como conhecemos foi criado pelos europeus. A receita europeia, porém, ainda precisa do fruto da floresta amazônica. Por que, então, dividir as duas coisas?

O incômodo incentivou o chocolatier César De Mendes a criar um chocolate exclusivo a partir do cacau da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. O valor de cada barra (R$ 50) volta inteiramente aos indígenas. Além de produzir, o dono da fábrica "De Mendes" ensinou a receita às etnias do território com mais de 9 mil hectares, 26 mil indígenas e dividida entre oito povos.

Segundo ele, o resultado é um chocolate "com notas de frutas vermelhas e uvas passas", com um toque de nozes e castanhas que permite ser mascado como uma guloseima. Mas além do sabor há um significado maior em cada barra de chocolate.

Troca de conhecimento

A ciência ocidental costuma emprestar ou unir forças com saberes milenares dos povos da floresta para o desenvolvimento de produtos. O diferencial aqui é que a união gera renda, estimula a preservação da natureza, o plantio de mais árvores e mantém a tradição da população originária do país.

O chocolatier ensinou os indígenas a concentrar o plantio do cacau em uma área específica para facilitar a colheita. Antes, era preciso organizar expedições para encontrar o fruto em cantos dispersos da floresta.

Em contrapartida, os indígenas o ensinaram a queimar tipos de plantas e galhos do chão próximos às árvores para liberar nutrientes no ar e estimular o crescimento saudável dos frutos.

"Eu fui lá dar aula, mas tive várias aulas", pontua Mendes, que é engenheiro alimentar e formado em química. "Seria preciso uma faculdade inteira para ter um conhecimento parecido", diz. Cerca de 1.300 yanomami se beneficiam diretamente da produção e do dinheiro com os chocolates que levam o nome da etnia.

O Chocolate Yanomami beneficia cerca de 1.300 indígenas da etnia - Divulgação - Divulgação
O Chocolate Yanomami beneficia cerca de 1.300 indígenas da etnia
Imagem: Divulgação

Ameaças contra os Yanomami

A oficina entre os indígenas aconteceu em 2018. O produto final foi lançado em dezembro de 2019, período em que as permanentes ameaças contra os Yanomami foram intensificadas com o garimpo ilegal.

O Instituto Socioambiental (ISA) estima que 20 mil garimpeiros invadiram a TI Yanomami em 2020. Entre março e abril, 440 campos de futebol foram desmatados no território, segundo cálculo feito a partir de imagens de satélite pelo Instituto Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon).

Os invasores também aumentam a chance de contágio do novo coronavírus entre os povos originários. Por falta de testes, o número de suspeitas de contaminação por Covid-19 entre os Yanomami oscila entre 900 e 1.050 contaminados. Já entre mortos, fica entre 7 e 12 pessoas.

"A terra dos yanomami é sistematicamente atacada e queríamos gerar renda para reduzir a sedução do dinheiro dado por garimpeiros e do álcool para incentivar uma série de ações conjuntas a favor do povo", diz Mendes.

Quem compra o chocolate dos Yanomami recebe também um material didático com a história e luta do povo em Roraima.

Como se faz um "chocolate premium" com povos tradicionais

Os chocolates feitos com os Yanomami são vendidos somente pela internet devido à baixa produção, que é totalmente artesanal.

É o chamado "cacau-fino", um processo que busca os melhores frutos de cada colheita. Ao contrário do que muitos imaginam, o chocolate deriva do grão que fica dentro da fruta. Após retirá-lo, é preciso deixá-lo em um processo de fermentação, semelhante ao queijo e ao vinho.

O grão é colocado em um recipiente controlado para se beneficiar de micro-organismos. É possível, por exemplo, injetar oxigênio para desenvolver organismos aeróbicos ou cortá-lo para beneficiar micro-organismos que não precisam de ar. "Até 600 novas substâncias podem surgir do processo, que leva em média 7 dias", explica Mendes. É daí que extrai sabores que podem ir de frutas vermelhas a uvas passas.

Logo após a fermentação, o grão vai para a secagem, quando fica sob o sol até ressecar. Depois, é macerado e "esticado" com manteiga, quando começa a parecer aquele chocolate que você provavelmente está com vontade de comer agora.

O adocicado de um chocolate vem do açúcar ou, no caso do cacau-fino Yanomami, da rapadura. Assim, também é evitada a adição de açúcares industrializados. A porcentagem de cacau inscrito em embalagens de chocolate distingue a quantidade da castanha original dos outros elementos usados para a produção. No caso Yanomami, é 69% de cacau.

"É um processo complexo, que vai da origem, da colheita, até o esticamento final. O que se compra no mercado nem cacau costuma ter. O cacau-fino é diferente do chocolate industrializado, é chamado por quem produz chocolate de 'commodity'", explica Mendes.

O cacau é coisa nossa

O chocolate é uma receita europeia, mas o cacau só dá em países quentes como o Brasil, no continente africano e em trechos tropicais da Ásia.

"Comecei a me incomodar em saber que o cacau é endêmico da região amazônica e, eu, como amazônico, não o via como uma coisa que origina em nossa cultura e país, assim como muitos brasileiros imaginam", queixa-se Mendes.

O chocolatier diz pagar mais de R$ 50 o quilo a populações tradicionais para valorizar a busca pelos melhores frutos. É uma tática que também usa no Pará, onde elabora linhas de chocolate feito com povos originários e tradicionais, como cooperativas formadas exclusivamente por mulheres. No mercado geral, ele calcula em cerca de R$ 13 o quilo. E ele não é o único a investir nos pequenos produtores.

Uma marca criada há três anos, com loja em um shopping de luxo em São Paulo, migrou do modelo tradicional para investir em uma rede de pequenos e médios produtores tradicionais de cacau no Espírito Santo, Bahia e Pará. A Haoma também os premia em dinheiro pela qualidade das castanhas.

O consumidor pode rastrear toda a linha de produção de cada chocolate comido a partir de um QR code na embalagem. Um chocolate da marca pode chegar a até R$ 200.

A empresa também garante um chocolate mais saudável e sem adição de açúcares e conservantes industriais. A previsão da própria empresa para 2021 é um crescimento de 30% apostando no novo modelo — o que inclui expandir a influência do chocolate tradicional até por meio de "mimos" enviados a influenciadores nas redes sociais.

"Queremos promover o consumo de produtos 'clean label' [origem sustentável] e substituir os doces tradicionais por produtos, de fato saudáveis", explica o sócio Sérgio Bruno, em nota.

Mendes acrescenta outro ganho. "Chocolates de povos originários, como os Yanomami, não se tratam apenas de fornecedores de matéria-prima. O que fazemos é mudar a narrativa. Nós 'descobrimos quem são os Yanomami, como vive, que tipo de conhecimento tradicional carregam e o que podemos aprender com eles para a nossa vida urbana", conclui.

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