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Bom pra todo mundo

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Após crédito negado, ele criou a Conta Black e prevê faturar R$ 12 milhões

Sérgio All fundou a Conta Black, a primeira conta digital criada por negros no país - Divulgação/Conta Black
Sérgio All fundou a Conta Black, a primeira conta digital criada por negros no país Imagem: Divulgação/Conta Black

Helaine Martins

de Ecoa

21/11/2019 04h00

"Você, como um menino negro, vai precisar passar a vida provando que tem capacidade. Serão poucas as pessoas que vão enxergar que você é competente sem que você tenha que comprovar."

O publicitário Sérgio All cresceu ouvindo o aviso da mãe, o que serviu como incentivo para realizar sonhos — os seus, da família e dos outros. Filho de um metalúrgico e de uma empregada doméstica, Sérgio diz que os pais sempre o acharam diferente dos irmãos. "Eles enxergavam um brilho nos olhos de quem era sonhador. Com 10 anos, eu já comecei com essa ideia de que queria ser empresário", conta.

Hoje, aos 44 anos, ele vê a consolidação de seu negócio: a Conta Black, uma conta digital voltada a pessoas que não têm acesso a serviços financeiros em instituições tradicionais. Os clientes conseguem fazer pagamentos, transferências e obter crédito sem burocracia, acompanhado de educação financeira, para que o empréstimo não se torne um problema.

Criada em 2017 e com 80% de clientes negros, a Conta Black prevê faturar R$ 12 milhões no próximo ano e chegar a 50 mil clientes ainda no primeiro semestre de 2020. A trajetória até aqui, no entanto, envolveu outros negócios de sucesso desbravados por Sérgio e uma frustração: o crédito negado. "A questão racial foi determinante", acredita o empresário.

Espírito empreendedor

Aos 16 anos, Sérgio All conseguiu o seu primeiro emprego. Primeiro e único. Era office boy de uma grande loja de departamento, em São Paulo, onde teve certeza de que não queria ser empregado. Quando saiu da empresa, em 1994, fissurado em jogar videogame, anotava em um papel todos os comandos e macetes necessários para passar de fases e sentia falta de trocar essas dicas com outros fãs de jogos.

"No final da década de 90, os videogames eram uma 'febre' e a internet já era uma realidade, então criei um projeto para levar o conteúdo de games aos interessados. Chamei uns amigos e formamos uma equipe com designers, programador e comercial. Juntos criamos, em três meses, um browser [navegador] que servia como um buscador de dicas, o SOS Games", conta Sérgio.

Sérgio All 2 - Divulgação/Conta Black - Divulgação/Conta Black
Sérgio sempre soube que queria ser empresário. O trabalho como office boy aos 16 anos foi o seu primeiro e único emprego
Imagem: Divulgação/Conta Black
Em três anos, a empresa tinha um banco de dados com 50 mil dicas sobre os principais jogos da época e cerca de 10 mil consumidores que pagavam para se cadastrar, o que chamou atenção da Apple - na época, uma marca ainda pouco conhecida no Brasil. "Nos chamaram para uma reunião e saímos de lá com a missão de participar do processo de popularização do Mac [computador pessoal da Apple] no Brasil. Éramos responsáveis pelo desenvolvimento de ações para a promoção dos jogos em todas as revendas Apple."

Choque de realidade

Anos depois, Sérgio vendeu sua parte para os sócios e foi atrás de mais desafios. Já formado em publicidade, abriu uma agência de comunicação focada em internet. Em pouco tempo, tinha 30 funcionários, estava comercializando aproximadamente dez sites por mês — uma ferramenta de comunicação muito cara na época — e já investia em outras áreas, como a produção de grandes shows, como U2 e Black Eyed Peas. Até que sentiu a necessidade de investir na renovação dos equipamentos para expandir o negócio e se deparou com uma realidade de boa parte dos brasileiros: a dificuldade em lidar com instituições financeiras.

"Eu era correntista há mais de dez anos da mesma instituição, movimentando muito dinheiro e contratando todos os serviços que o banco me oferecia. Quando precisei de crédito, procurei o meu gerente e, inesperadamente, recebi um sonoro 'não'. Questionei e ele disse que era uma questão sistêmica, que não tinha nada a ver com órgãos de restrição. Ou seja, ele poderia simplesmente apertar o botão e aprovar o crédito. Saí de lá frustrado e com a certeza de que a questão racial tinha sido determinante", conta.

Da frustração surgiu um questionamento: quantas pessoas, especialmente negras como ele, recebem todos os dias o 'não' de um gerente? Quantas delas desistem de sonhos pela dificuldade com transações financeiras? Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva, muitas. No Brasil, o número de pessoas sem conta em banco chega a 45 milhões de pessoas, das quais 69% são negras. Isso significa que, a cada três brasileiros, um não possui conta bancária. Detalhe: mesmo à margem do sistema financeiro, esse grupo movimenta anualmente no país mais de R$ 800 bilhões, sendo mais da metade em espécie.

"Estamos falando de pessoas que têm problemas para abrir uma conta por questões restritivas, que não têm como comprovar renda, que não têm acesso a agências onde moram ou, até mesmo, pessoas que estão descontentes com o sistema bancário. Depois daquele 'não', voltei para casa desenhando uma solução para essa faixa da população não depender mais dos bancos e se sentir incluída novamente."

O negócio, no entanto, levou 20 anos para sair do papel. Enquanto tocava a agência de comunicação, Sérgio aprimorava o projeto e acompanhava de perto as mudanças tecnológicas. "Mas todas as vezes que eu apresentava o projeto para as pessoas, elas não duvidavam do projeto em si, mas da minha capacidade de gerir um negócio que, hoje, é dominado por um grupo muito seleto no país."

Sérgio All - Divulgação/Conta Black - Divulgação/Conta Black
"O empreendedor negro tem crédito negado três vezes mais do que o branco", afirma Sérgio All
Imagem: Divulgação/Conta Black

A grande virada

Até que, em 2017, depois de apresentar o projeto para potenciais investidores, nasceu a Conta Black, a primeira conta digital criada por negros do país. Os produtos e serviços, no entanto, são oferecidos para toda a população e pensados para serem simples no acesso e no uso. Além do básico, como pagamento, transferências e cobranças, é possível escolher entre conta pessoa física e conta pessoa jurídica e acesso a linhas de investimentos. E ainda há a possibilidade de, depois de 13 meses, o cliente receber parte do valor das tarifas pagas. Por enquanto, o acesso é apenas pelo site da Conta Black, mas o aplicativo está em fase de finalização.

"Nós trabalhamos com três pilares: incluir, ensinar e compartilhar. Entendemos que o desafio da desbancarização e exclusão financeira também impacta na desigualdade social e na economia dos mais pobres. Por isso, tomamos como missão ampliar o acesso a serviços financeiros a todas as pessoas, sem burocracia, mas com educação financeira, por meio de ferramentas simples, para que o crédito também não se torne um inimigo", explica Sérgio, que iniciou o negócio com Fernanda Ribeiro e atualmente tem outros seis sócios.

Hoje, a Conta Black reúne mais de 2 mil clientes em todo o Brasil, sendo que 80% deles são negros, o que não surpreende Sérgio. "O empreendedor negro tem crédito negado três vezes mais do que o branco com as mesmas condições aqui no Brasil, segundo o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Ou seja, temos uma parcela da população, em sua maioria negra, que não é atendida de forma digna, e a Conta Black se propõe a ajudar na resolução desse problema", esclarece.

Além disso, essa faixa da população, cerca de 54%, se vê representada ao ver uma empresa do setor financeiro protagonizada por pessoas negras. "Isso se torna um ponto de representatividade e mostra que podemos, sim, nos organizar e sermos vistos como uma potência financeira", completa.

Para 2020, a empresa pretende chegar a 50 mil clientes no primeiro semestre e faturar R$ 12 milhões no ano. Para isso, trabalhará com contas corporativas, cujos contratos estão sendo definidos, e planeja lançar novos produtos e serviços, como cartão de crédito, carteira de investimentos, ferramenta de microcrédito, Maquininha Black Pay, seguros, recarga de celular e ações via WhatsApp, para abrir conta e realizar transferências, por exemplo. Mas, com o mesmo brilho nos olhos de quando era menino, Sergio ainda sonha grande. "Quem sabe futuramente não seremos um banco protagonizado por pessoas negras?"

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