'Nasci sem útero, recebi transplante da minha irmã e posso tentar ser mãe'
O primeiro transplante de útero bem-sucedido entre pessoas vivas da América Latina foi realizado em São Paulo, em agosto. Esse avanço da medicina reprodutiva só foi possível devido à participação de duas irmãs: Jéssica e Jaqueline Borges, de 34 e 31 anos.
Aos 16 anos, Jéssica foi diagnosticada com a síndrome de Rokitansky —que causa uma malformação congênita do aparelho reprodutor feminino— após procurar ajuda médica ao perceber que não menstruava.
Essa condição congênita fez com que ela nascesse sem útero. No entanto, como seu sonho sempre foi ser mãe biológica e passar pelo processo de uma gravidez, sua irmã decidiu doar seu útero para que ela pudesse gerar uma criança.
"Descobri a síndrome por volta dos 16 anos, após perceber que não menstruava. Consultei vários médicos, mas o diagnóstico correto só veio no Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi um choque —me senti estranha, com medo— mas recebi apoio psicológico, o que me ajudou a entender melhor a minha condição", explica a assistente de trade marketing.
Por alguns anos, ela participou de grupos nas redes sociais de pessoas que tinham a mesma síndrome. "Por lá, fiquei sabendo que o Hospital das Clínicas estava realizando estudos sobre transplantes e me inscrevi no projeto. Foi um sonho quando descobri que havia sido aprovada, afinal, sempre quis gerar uma criança", completa.
Jaqueline não hesitou em se oferecer como doadora. "Tenho dois filhos e sempre soube do desejo dela de ser mãe. Fiquei muito feliz por ser compatível e ter saúde para realizar o transplante. Nunca tive dúvidas de que seria o melhor para ela, e depois disso, ficamos ainda mais unidas. Faria tudo de novo", relata.
Como foi feito o procedimento
O transplante foi realizado no dia 17 de agosto no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Por vários meses, elas foram submetidas a uma extensa avaliação por meio de exame físico, laboratoriais e de imagem para comprovar que estavam em boas condições para o transplante, além da compatibilidade.
As principais dificuldades nesta cirurgia, para a doadora, foram a preservação dos órgãos em torno do útero e a retirada de alguns vasos que vão nutrir o útero transplantado. Na cirurgia da receptora, a principal dificuldade foi a realização das ligações dos vasos da doadora na receptora. Dani Ejzenberg, médico supervisor do Centro de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas da FMUSP
A iniciativa foi realizada em parceria com uma equipe sueca, responsável pelo primeiro nascimento de um bebê em um útero transplantado em 2014. Na Suécia, o método é regulamentado e aplicado, enquanto no Brasil ainda é experimental e parte de um estudo clínico.
Como a receptora apresentava ovários saudáveis, o procedimento envolveu a coleta de óvulos, fertilização in vitro e congelamento dos embriões para utilização futura após o transplante.
Depois do transplante, as duas se recuperaram bem e ficaram apenas 48 horas em observação na UTI. Após 5 dias de internação tiveram alta.
A minha recuperação foi ótima e continuo fazendo acompanhamento. A expectativa de sentir meu filho dentro de mim é enorme, e devo tudo isso aos médicos e à minha irmã. Em breve, espero ter novidades. Jéssica Borges
Avanços e expectativas
Segundo Ejzenberg, as chances de um nascimento com transplante de doadora viva são de 80%. E um avanço já foi observado: Jéssica teve seu primeiro ciclo menstrual recentemente.
Como ela tem 11 embriões congelados armazenados no Centro de Reprodução Humana do Hospital das Clínicas, a primeira tentativa de implantação por meio de fertilização in vitro está prevista para ocorrer em seis meses.
"Existem planos para realizarmos outros transplantes tanto com doadora falecida quanto com doadora viva. Assim como em alguns estados nos EUA, na Alemanha e na Suécia, esperamos no futuro poder oferecer este tratamento para muitas das pacientes que nasceram sem útero ou que o perderam de forma inesperada", afirma Ejzenberg.
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