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Por que a 'imunidade de rebanho' não é a solução para a covid-19?

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Imagem: iStock

Danielle Sanches

Do VivaBem, em São Paulo

07/05/2021 08h50

Quando a pandemia do novo coronavírus (Sars-CoV-2) se tornou realidade, a expressão "imunidade de rebanho", ou imunidade coletiva, foi resgatada para explicar o que seria a única forma de nos salvar da crise sanitária.

Mais de um ano depois do surgimento do vírus, é consenso na comunidade científica que alguns fatores podem tornar isso mais difícil de acontecer —se é que algum dia irá acontecer.

"Apenas o tempo vai dizer se conseguiremos atingir esse ponto", afirma Isabella Ballalai, vice-presidente da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunização). "Depende, por exemplo, se o vírus irá se manter estável, o que, diante das variantes que vemos surgir, não é o que estamos vendo", acredita.

Ela lembra ainda que a oferta de vacinas é fundamental para que isso ocorra. "Precisamos imunizar a população total, e não apenas os grupos prioritários", afirma.

Por que a imunidade de rebanho é tão complexa?

Também chamada de imunidade de grupo e imunidade coletiva, a imunidade de rebanho consiste em atingir um ponto em que há uma quantidade suficiente de pessoas imunes ao vírus, interrompendo a transmissão comunitária. E, com menos indivíduos suscetíveis ao vírus, ele vai aos poucos deixando de circular.

Mas é importante frisar, destacar, deixar bem claro, que isso não significa deixar o vírus correr livre e solto para contaminar a maior parte da população. "Criminoso" e "genocídio" foram as palavras usadas pelos especialistas consultados por VivaBem para descrever um cenário em que isso fosse aplicado de forma proposital.

"A imunidade coletiva nunca é entendida ou planejada permitindo que as pessoas fiquem doentes", afirma Hélio Bacha, infectologista do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. "É inaceitável pensar que se pode deixar 1% da população morrer para atingir esse objetivo", diz.

Segundo ele, a proteção coletiva que a imunidade de rebanho nos daria é sempre pensada no âmbito do uso de vacinas. "O conceito é bom, desde que aplicado de forma correta", avalia. "Deixar as pessoas enfrentando o vírus sozinhas é lamentável, não há sistema de saúde no mundo que dê conta da quantidade de doentes que essa doença provocaria caso isso acontecesse", afirma.

Nesse contexto, porém, há ainda outras questões importantes: além de não sabermos qual o tempo de duração exato da imunidade (tanto da vacina quanto após a infecção), o surgimento de novas cepas, mais virulentas e agressivas, acaba colocando em perigo a tão sonhada ideia de imunidade coletiva.

Um bom exemplo disso é o caso de Manaus. Após a primeira onda, acreditou-se que grande parte da população havia sido infectada e, com isso, a tendência seria os casos entrarem em declínio por conta de uma suposta imunidade de rebanho adquirida. Com isso, o comércio voltou a abrir e as pessoas passaram a circular de forma praticamente normal.

Só que, no fim de 2020, uma segunda onda atingiu a cidade de forma ainda mais letal, levando ao caos. "A situação só evidencia que a imunidade do vírus não é estável, como já vem se falando há tempos", avalia Patrícia Magalhães, pesquisadora da Universidade de Bristol, no Reino Unido, e integrante do grupo de cientistas Ação Covid-19. "Se o vírus continua a circular, ele vai se adaptar e criar cepas mais agressivas, como aconteceu lá", diz.

Por isso, mesmo com a vacinação acontecendo, é fundamental que mantenham-se as medidas de contenção da doença —ou seja, o isolamento social, a higiene das mãos e o uso de máscara—, reduzindo a circulação do vírus e consequentemente as chances de surgimento de uma mutação que possa nos colocar de volta à estaca zero do combate à doença.

"A realidade social do Brasil dificulta a implementação de um lockdown nacional, sabemos disso", avalia Ballalai. "Mas, então, que as pessoas que possam fazer home office fiquem em casa, para que apenas as atividades que precisam continuar acontecendo ocorram", acredita.

A imunidade de rebanho pode não ser permanente

Quando falamos em imunidade coletiva, uma das questões centrais é: qual exatamente seria a quantidade de pessoas imunes necessárias para atingirmos esse patamar? Mas não existe uma resposta exata para essa pergunta.

Anthony Fauci, chefe do National Institute of Allergy and Infectious Diseases e um dos médicos que está liderando os esforços contra a covid-19 nos Estados Unidos, estima que pelo menos 70% da população americana precisa estar imunizada para poderem respirar com algum alívio por lá.

Outros especialistas, no entanto, acreditam que nada menos que 80% a 90% da população do país —total, não apenas adulta ou prioritária— precisa ter sido vacinada para conseguirmos começar a atingir esse objetivo.

"Começar" porque, bem, não adianta apenas uma nação inteira estar com as vacinas em dia. "A crise é global", lembra Ballalai. "Basta pensarmos que, para erradicar a varíola, foi preciso um esforço internacional para vacinar virtualmente 100% das pessoas do mundo todo", lembra.

No caso do Brasil, um estudo feito pelo grupo Ação Covid apontou qual seria a quantidade ideal de vacinados por estado para tentar controlar a situação no Brasil.

Magalhães explica que os números variam de acordo com a situação epidemiológica de cada localidade, ou seja, os estados que conseguiram implementar medidas de contenção e reduziram a circulação do vírus teoricamente precisaram de um número menor de vacinados para atingir uma proteção coletiva.

Mas ela lembra que a ação precisa ser coordenada de forma nacional. "Se uma região consegue parar o vírus, mas a cidade ou estado vizinho não, as interações sociais entre essas localidades podem fazer com que o vírus volte a se espalhar", afirma.

Para isso, o importante seria implementar, além da vacinação rápida e ampla, um sistema de testagem e rastreio de casos eficaz, além de barreiras sanitárias entre os estados com situação mais crítica —o que não foi feito em Manaus, por exemplo. "Isso fez com que a variante P1, mais agressiva, se espalhasse e se tornasse dominante no território nacional", diz.

Por fim, mesmo que esse número seja alcançado, alguns fatores podem fazer com que a imunidade individual seja perdida —e, com ela, a proteção coletiva. Não temos, por exemplo, dados sobre o tempo de imunidade no corpo, sobre quando, e se, devemos começar a vacinar as pessoas novamente.

Além disso, a capacidade do vírus de continuar mutando e o surgimento de novas variantes podem tornar as vacinas atuais ineficazes —transformando a imunidade de rebanho em água e necessitando que ela seja reerguida novamente.

O coronavírus pode se tornar endêmico?

Já é consenso entre cientistas que o novo coronavírus não vai embora tão cedo. Mas alguns acreditam que ele talvez nunca vá embora. O vírus, então, se tornaria endêmico. E o que isso significa?

Quando estamos em uma pandemia, os casos de uma doença aumentam de forma aguda em várias localidades do planeta. A endemia, no entanto, não está relacionada a uma questão quantitativa.

Uma doença endêmica é aquela que se manifesta com frequência em determinadas regiões, geralmente provocada por circunstâncias ou causas locais. Ou seja, a população convive constantemente com a doença e com alguns surtos eventuais.

No Brasil, doenças como dengue e febre amarela são consideradas endêmicas por provocarem surtos em determinadas regiões todos os anos.

Essa já era uma aposta da própria OMS (Organização Mundial da Saúde) que, em maio de 2020, alertava para a possibilidade do novo coronavírus se manter ativo por muito tempo na nossa sociedade assim como o HIV.

Se esse cenário se concretizar, o mais provável é que a imunização contra o patógeno entre de forma definitiva para o calendário de vacinação de toda a população —algo semelhante ao que ocorre hoje com a vacina da gripe, que precisa ser reaplicada anualmente por conta da mutação frequente que ocorre com o vírus influenza.

Bacha reforça, no entanto, que as coisas mudam muito rápido conforme vamos aprendendo sobre o vírus e suas mutações. "O cenário ainda está aberto para prever o que pode acontecer", acredita. De certo, apenas uma coisa: a permissão para viver o "novo normal" vai demorar mais tempo do que gostaríamos.