Lúcia Helena

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Reportagem

Níveis baixos de carnitina no sangue estão ligados ao Alzheimer em mulheres

A ciência tenta montar o quebra-cabeça do Alzheimer e ainda falta achar muitas peças. Insisto nessa comparação batida para que você entenda a importância de uma pesquisa, realizada com o apoio do Instituto Serrapilheira e publicada há duas semanas na revista Molecular Psychiatry.

Diria assim: o que cientistas americanos e brasileiros encontraram representa o início da montagem de um outro lado do puzzle. Uma parte completamente diferente, que não tem a ver com tudo o que já se encaixou de conhecimento até o momento.

Os pesquisadores notaram que mulheres com comprometimento cognitivo — que podia ser desde um quadro leve ou inicial de perda de memória a um estágio avançado de Alzheimer — tinham níveis mais baixos de carnitina livre no sangue. Na verdade, quanto mais grave o quadro da doença neurodegenerativa, menores os níveis desse aminoácido na corrente sanguínea.

"O papel da carnitina é ajudar a gordura a ser queimada pelas células para gerar energia", ensina o biólogo Mychael Lourenço, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e um dos autores do trabalho. Aí é que está: ninguém, antes, tinha reparado em como o cérebro de alguém com Alzheimer usava ou deixava de usar gorduras como energia. Esse é o lado do jogo que vislumbramos só agora, graças ao estudo.

Juntar mais peças nesse pedaço deverá levar a exames em que a carnitina livre — isto é, a molécula circulando solitária no sangue, sem estar ligada a nenhuma outra — ajudará a fechar o diagnóstico de Alzheimer. Tarefa que até hoje não é das mais fáceis

Eventualmente, poderão surgir tratamentos para incrementar o metabolismo cerebral de gorduras, controlando a progressão da doença. Mas não, não adianta correr para a loja de suplementos da esquina — cuidado com a ideia errada! A carnitina consumida por atletas para afastar a fadiga muscular chega em quantidade irrisória no sistema nervoso central. Esqueça. Tampouco resolve se acabar de comer picanha, já que mais de 90% da substância disponível no organismo vêm da alimentação, sendo a carne a sua grande fonte. Esqueça também. O estudo não sugere, nem de longe, nada disso.

Mas, antes de servir de base para novos métodos de diagnóstico e tratamentos, ele já é decisivo para a gente entender o que acontece com o cérebro de dois terços das 35 milhões de pessoas ao redor do mundo — 1,5 milhão delas, no Brasil — que sofrem do mal de Alzheimer.

Explico por que dois terços: há duas pacientes mulheres com essa demência para cada homem. O dobro. E essa história diz respeito a elas, já que, curiosamente, a carnitina baixa associada ao apagão das memórias é um fenômeno observado apenas no cérebro feminino. Até nisso, somos mais diferentes do que imaginávamos.

Como o cérebro usa gordura

Já se sabia que o cérebro de um paciente com Alzheimer não aproveita tão bem o açúcar que lhe serviria de combustível. Possui, em outras palavras, um metabolismo de glicose reduzido. Aliás, quanto mais a tomografia por emissão de pósitons — o PET scan — denuncia essa redução, mais grave é o declínio cognitivo.

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Quando o professor Lourenço foi apresentado à neurocientista Carla Nasca, foi imediato o interesse de juntar seu grupo de pesquisas, na UFRJ, com o dela, na New York University, nos Estados Unidos. A cientista já vinha investigando o papel da carnitina livre no surgimento da depressão. Nessa altura, ela já sabia que a substância, além de ser crucial para o metabolismo de gorduras, tinha a função de reforçar as sinapses, isto é, a comunicação entre os neurônios e, como se não bastasse, podia alterar a expressão de certos genes envolvidos na saúde cerebral. Daí que os cientistas resolveram se unir e checar como era isso nos pacientes com Alzheimer.

No Rio de Janeiro, o IDOR (Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino) cedeu amostras de sangue de pacientes. Nos Estados Unidos, essa colaboração veio da Universidade da Califórnia.

Diferença entre os sexos

"Quando vimos a dosagem de carnitina em pacientes com cognição comprometida, veio a surpresa: por que ela ficaria reduzida apenas nas mulheres?", recorda-se o professor Lourenço. "Nos homens, mesmo olhando para aqueles com muito déficit cognitivo em decorrência do Alzheimer, não encontramos alterações nos níveis da substância." Essa diferença entre os sexos nunca tinha sido registrada antes.

Os pesquisadores notaram que a quantidade do aminoácido nos homens era sempre muito menor em comparação com a das mulheres, inclusive entre aqueles sem qualquer problema de cognição. "Ou seja, já eram dosagens baixas e, quando aparece o Alzheimer, elas não caem ainda mais, ficando mais ou menos iguais", conta o pesquisador.

Vale chamar a atenção que as representantes do sexo feminino no estudo estavam na pós-menopausa. Todas tinham acima de 60 anos. "Nossa suspeita é que as alterações hormonais dessa fase possam afetar o metabolismo da gordura e influenciar na derrocada da carnitina, o que prejudicaria a manutenção das sinapses e o bom funcionamento do cérebro. Mas, claro, teremos de realizar uma nova pesquisa para saber se é isso, de fato, o que acontece", ressalta o professor Lourenço.

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Hoje, porém, a prioridade é confirmar, com a ajuda modelos de laboratório capazes de simular a falta de carnitina, se isso seria realmente uma das causas do Alzheimer. "Uma delas", frisa o pesquisador. "Essa não é uma doença de causa única." Mas, como ele também lembra, o fato de a carnitina ir caindo na medida em que a doença avança dá a entender que nada é acaso. A baixa do aminoácido deve estar tremendamente envolvida no Alzheimer — em mulheres, bem entendido.

Impacto no diagnóstico

Os cientistas também demonstraram que, quando a gente incorpora a dosagem da carnitina livre no sangue a outros exames para checar se é Alzheimer ou não, a precisão do diagnóstico aumenta bastante.

"Isso é animador", diz o professor. "Claro, exames de imagem às vezes exibem áreas do cérebro que literalmente ficaram encolhidas pela neurodegeneração, dando uma pista. Mas atualmente, mesmo analisando a quantidade de proteínas, como a beta-amiloide e a tau, que são marcadores de Alzheimer, ainda existem aqueles casos que ficam no meio do caminho, deixando todo mundo na dúvida", ele conta.

Além disso, essas proteínas são dosadas em coletas do liquor, o fluido que banha o sistema nervoso. Sem dúvida, um exame de sangue para checar a carnitina livre é menos invasivo e mais acessível, até pensando em uma primeira etapa de rastreamento do Alzheimer amanhã ou depois. "A realidade é que, mesmo quando a pessoa tem acesso a todos os exames, nunca há 100% de certeza de que é mesmo essa doença nas fases iniciais. Daí que acrescentar uma maneira para a gente chegar a uma resposta é algo muito positivo", opina o pesquisador brasileiro.

Mais uma forma de tratamento?

O professor volta a dizer que não adiantará se a mulher consumir carnitina extra para evitar o avanço do Alzheimer. Pouquíssimo irá parar no sangue e, menos ainda, no sistema nervoso central. "Mas é possível imaginar o desenvolvimento de outras moléculas que ajam no metabolismo de gorduras no cérebro", estima. Agora, esse metabolismo deverá ser esmiuçado na busca de novos alvos terapêuticos, ou seja, de pontos em que um remédio poderá atuar para melhorar a situação, compensando de alguma maneira a queda do aminoácido.

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"Se esses medicamentos surgirem, eles provavelmente não serão a cura. Aliás, nenhum dos tratamentos pesquisados para o Alzheimer tem essa pretensão", esclarece o brasileiro, considerado um dos maiores experts mundiais na pesquisa dessa doença.

Segundo ele, no futuro o Alzheimer será tratado com mais de um medicamento, "como acontece com o coquetel prescrito para indivíduos que vivem com o HIV", compara. Cada um deles agirá sobre um dos mecanismos por trás da doença que, cercada, ficará sob controle. Então, mesmo diagnosticada com Alzheimer, a pessoa poderá viver bem, acumulando novas lembranças. E, se for assim — tomara! —, na caixinha de remédios das mulheres, é bem provável que existirá algo criado para fazer seu cérebro aproveitar melhor a gordura.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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