Não aposte a sua cabeça: o que acontece com os neurônios na onda das bets
Quando o governo fala da regulamentação de casas de apostas online, querendo aliviar a medida com a mensagem "jogue com responsabilidade", propaga uma asneira gigante que não sairia da boca de quem, antes de palpitar, estudasse o tema: para o cérebro dos dependentes das bets, é biologicamente impossível jogar com responsabilidade. Simples assim. Repito: impossível.
Os casos de dependência já são numerosos e tendem a crescer, com cabeças rolando abismo abaixo graças, inclusive, ao empurrãozinho final de celebridades que emprestam a imagem querida do público ao que — de novo, do ponto de vista biológico —, equivaleria, sem exagero, a anunciar crack no intervalo das Olimpíadas. Aliás, golpe baixo vender insalubridade em momentos relacionados ao esporte, associando à saúde o que, muito pelo contrário, vicia e altera o funcionamento do cérebro para sempre à saúde (leu certo, para sempre).
Recentemente, Antonio Carlos Cruz Freire deu uma concorrida aula sobre o tema no Brain, congresso que reúne neurocientistas do mundo inteiro para discutir comportamentos e emoções. Não pude assisti-lo no Rio de Janeiro, onde aconteceu a edição deste ano, mas procurei o professor para uma entrevista.
Docente de Neurociências e Saúde Mental da Universidade Federal da Bahia e, também, de Psiquiatra da Escola Bahiana de Medicina, em Salvador, ele começou a se interessar pelo universo das adições ainda nos tempos de residência. Queria encontrar na biologia humana os porquês de alguém não conseguir dizer "vou parar de jogar"— ou "vou largar a cocaína". Sim, para o sistema nervoso central o jogo é uma potente droga.
"Muito do que conhecemos sobre o que ocorre com o cérebro de quem termina enredado pelas bets vem do que sabemos da ação de substâncias psicoativas", diz Freire.
No começo, é a tal história da recompensa
O professor compara: "Ao ser inalado, o crack começa a agir em 8 segundos O efeito dura pouco, uns cinco minutos, mais ou menos. Quando passa, o que a pessoa vai querer? Mais crack, claro." No jogo, é semelhante. Em poucos segundos, surge a aflição por ainda não saber do resultado — aliás, quanto mais imprevisível o tal resultado, maior o poder viciante.
"Depois, quando o sujeito perde e se frustra, o que o cérebro vai querer?", pergunta Freire, para emendar com a resposta: "Vai querer ter de novo aquela sensação anterior à derrota, que era boa, porque havia a expectativa de ganhar." De vez em quando, o jogador até leva uns trocados, fortalecendo a circuitaria cerebral de prazer.
"Se tudo parasse por aí, envolvendo centros de recompensa — como uma região chamada segmental ventral, que tem a ver com a produção do neurotransmissor dopamina, e outra conhecida por núcleo accumbens —, a gente conseguiria agir com remédios, regulando aquela substância. Mas não!", diz o neurocientista.
De fato, esse é só o começo da jogatina, que tem diversas pontos de ação na geografia cerebral, envolvendo outros neurotransmissores, "Além da dopamina, há substâncias como gaba, serotonina, peptídeos opioides em geral, acetilcolina... Não existe medicamento que dê conta de tanta alteração", afirma Freire.
Estraga-prazeres
O tal núcleo accumbens, próximo do miolinho do nosso encéfalo, é em grande parte responsável por pequenas alegrias do dia a dia. Pode entrar em cena quando você come um chocolate, disparando o prazer de senti-lo derreter na boca. "Mas o jogo, como as drogas, promove um boicote", explica Freire. "Seu estímulo no núcleo accumbens estabelece um predomínio e logo surge, ali, uma saliência."
Saliência, no linguagem dos neurocientistas, é quando há um recrutamento de neurônios e de caminhos cerebrais, por assim dizer, para responder a um estímulo específico. Cria-se, desse modo, uma preferência deslavada. "Quando aparece a tal saliência, outros estímulos deixam de provocar as mesmas reações de antes. No caso, é como se esse circuito neuronal estivesse inteiramente mobilizado pelas bets", descreve o professor.
Segundo ele, isso explicaria em boa parte o sujeito que deixa de ir a um aniversário ou ao cinema porque quer ficar nas apostas online: "Há um estreitamento de repertório do que pode trazer felicidade. As outras coisas do cotidiano não provocam tanto contentamento".
Sem poder de decisão
Não bastasse isso, o núcleo accumbens tem ligação com o córtex pré-frontal, região na altura da nossa testa. Ao lado de outras áreas, que estão sofrendo igualmente a interferência dos centros de recompensa desequilibrados, o córtex pré-frontal deveria ajudar o indivíduo na sua capacidade de julgamento.
"No cérebro saudável, há um controle inibitório. Isto é, a pessoa consegue ponderar se deve ou se não deve fazer algo. Desse jeito, toma decisões planejadas", repara Freire. "Se vai ao shopping, é capaz de lembrar quanto dinheiro tem na conta e sabe que não pode gastar mais que determinado valor porque precisa pagar a escola do filho. Ou seja, um cérebro em equilíbrio analisa sempre, apesar de ser bombardeado de ofertas."
Porém, recebendo de maneira tão intensa a informação de recompensa, o córtex pré-frontal assume que o tal do jogo deve ser bom — decide assim, sem pensar duas vezes.
Sem aprender com os próprios erros
Regiões cerebrais de recompensa também se relacionam com áreas encarregadas da memória, puxando a recordação do que deu certo e do que não deu. "É aquela história: errar é humano, mas posso aprender a não repetir o erro", comenta o professor. "Nas bets, porém, o indivíduo perde, perde e perde. No entanto, a lembrança disso não consegue inibir o alvoroço dos tais centro de recompensa".
O aprendizado com os próprios erros tem outro endereço cerebral, ainda pouco estudado, mas que provavelmente terminaria com circuitos neuronais afetados pelo jogo. Essa área, se tem curiosidade por nomes, chama-se habênula. "Só vale citá-la para mostrar como, de aposta em aposta, a situação vai se tornando cada vez mais complexa."
Sem consciência das próprias emoções
Os circuitos neuronais de outra área, esta batizada de ínsula — sim, a interferência das bets é uma bola de neve na massa cinzenta —, também se modificam.
"O indivíduo deixa, então, de interpretar o que está sentindo. E, mais um vez, isso vale tanto para o jogo quanto para as drogas. Quem trata dependentes nota que não há diferença", reassegura o professor. Na prática, a pessoa não tem condições para interpretar o quanto aquele comportamento está lhe fazendo mal.
Uma memória emocional
Se os centros ligados à reflexão estão menos ativados, em compensação uma pequena estrutura no meio do cérebro fica a mil: a amígdala.
É ela que dá a qualquer estímulo um significado emocional, formando uma memória afetiva ou memória amigdaliana. E basta um sinal do ambiente para ela ser resgatada. "Poderia ser o cheiro do bolo que lembra a casa da avô, despertando sensações positivas", ilustra Freire. A boca salivará, manifestando o desejo de sentir aquele aconchego outra vez.
Mas, aqui, a memória da amígdala é um embuste. Por exemplo, a pessoa vê a mensagem de que ganhou 15 reais de crédito para jogar. Imediatamente, brota a lembrança da sensação de recompensa. Será irresistível fazer uma bet.
"Ela nem precisa ir ao cassino. Afinal, pode chegar até ela 24 horas por dia, sete dias por semana", lamenta o professor. A cilada está no celular, no estádio de futebol, no intervalo da televisão. Onipresente.
Só falar não adianta
Quando pergunta a um paciente que já perdeu até a casa por causa de dívidas de jogo o que ele acha que poderia fazer para se ajudar, o que mais o médico escuta é o seguinte: "Jogar. A única maneira de recuperar tanto dinheiro é apostando".
Bons conselhos ou brigar não funciona. "Quem convive com alguém nesse estado precisa saber disso: o outro não escuta porque apresenta uma alteração química importante no cérebro", afirma o médico.
Esse indivíduo precisa ser encaminhando para tratamento — com psiquiatra, para tentar aliviar os sintomas com medicação, e psicoterapeuta, em dobradinha. "A melhor ideia é promover uma psicoeducação, para que aos poucos ele entenda a sua condição e vá recuperando o prazer ao realizar outras atividades "
Um detalhe triste: esse cérebro nunca mais voltará a funcionar biologicamente como antes. "Sua mudança de padrão já aconteceu. Sempre que perceber um sinal no ambiente, como a propaganda de bets, pode haver recaída", avisa Freire. Será, no contexto, difícil se proteger.
Alguns perfis, em tese, seriam ainda mais vulneráveis a cair na armadilha das casas de apostas online. Indivíduos que enfrentam quadros depressivos, por exemplo, poderiam ter a ilusão de encontrar nas apostas uma alegria.
Será que existem pessoas que jogam e que não ficam assim? Até existem. Varia até conforme o jogo. A promessa de recompensa concreta em dinheiro reforça o risco de dependência.
O fato é que a Medicina ainda não tem ferramentas para apontar quem é quem, ou seja, quem fará poucas apostas e ficará viciado depressa e quem apenas se divertirá. Melhor não arriscar a cabeça. Procure passar longe — das bets e de quem as defende.
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