'Queer' traz Daniel Craig em jornada de (muito) sexo, drogas e solidão
A carreira de Daniel Craig pisou no freio durante os 15 anos em que ele defendeu o papel de James Bond. É um paradoxo. Ao mesmo tempo em que ele se mostrou o melhor ator a interpretar 007, levando a série a outra esfera de sucesso, seus outros filmes não ganhavam a mesma tração, incluindo os candidatos a blockbuster "Os Homens Que Não Amavam as Mulheres" e "Cowboys & Aliens".
É compreensível que, uma vez encerrado seu período como Bond, o astro quisesse se distanciar do arquétipo do herói infalível. Craig fez um criminoso caipira de sotaque carregado na comédia de ação "Logan Lucky", de Steven Soderbergh, e assumiu o papel do detetive Benoit Blanc na série "Entre Facas e Segredos", assinada por Rian Johnson. O astro, contudo, queria ser desafiado. Queria radicalizar.
"Queer" foi o filme certo na hora certa. Adaptação do livro do expoente da beat generation, William S. Borroughs, o drama dirigido por Luca Guadagnino flerta com temas presentes na obra (e na vida) do escritor —sexualidade, uso de drogas, isolamento e solidão—, forçando Craig a flexionar músculos dramáticos há muito em hibernação.
Ambientado nos anos 1950, "Queer" segue William Lee (Craig), veterano da Segunda Guerra e expatriado americano vivendo no México. Em suas palavras, seus hábitos químicos e sexuais fazem dele um criminoso em casa.
Nos bares e hotéis de seu exílio, porém, ele se sente livre para escrever (pouco), beber (muito), injetar heroína (aos montes) e levar outros homens para a cama. Uma rotina melancólica que, ainda assim, lhe traz um semblante de vida ao lado de outros párias.
Essa rotina mostra as primeiras fissuras com a chegada de Eugene Allerton (Drew Starkey), um jovem ex-combatente pela marinha americana que surge como um enigma para o escritor. Sua troca de olhares logo evolui para uma relação de amizade que não tarda a se tornar física.
É um vínculo incômodo, conduzido pelo desejo doloroso de Lee em se conectar com alguém, rebatida pela apatia de Allerton, que parece tolerar o parceiro pela experimentação, não por afeto.
"Experimentar" é a palavra-chave, já que não tarda para os dois deixarem o conforto aparente do México em uma jornada ainda mais para o Sul da América. Se Allerton quer a aventura, Lee busca uma epifania, a expansão de sua mente para além do torpor das drogas. "Telepatia" é sua obsessão. É uma jornada tanto geográfica, que os colocará no coração da floresta amazônica, quanto espiritual.
Fascinado com a obra de Burroughs desde a adolescência, Guadagnino começou a trabalhar em "Queer" enquanto finalizava "Rivais". Adaptar o texto do autor, que foi ao lado de Allen Ginsberg e Jack Keruac um dos pilares da contracultura, significou ir além de suas palavras e alinhavar sua trajetória no texto.
Tal qual o primeiro trabalho de Burroughs, "Junkie", "Queer" traz elementos autobiográficos que não raro se confundem com visões lisérgicas e narradores pouco confiáveis.
Foi o mesmo desafio enfrentado por David Cronenberg, que em 1991 traduziu "Almoço Nu", obra definitiva de Burroughs, como "Mistérios e Paixões". Borrando a linha entre realismo e fantasia, Cronenberg fez tanto uma adaptação da obra como uma narrativa sobre sua gestação.
Peter Weller, escolhido como protagonista de "Mistérios e Paixões", interpreta outra versão de William Lee, e é fascinante ver como sua abordagem encontra paralelos com o trabalho de Daniel Craig.
O que Weller trazia de cerebral é vertido em pura fúria por Craig, uma jornada febril que intercala paixão e dor. É fascinante observar como o ator encontra equilíbrio entre urgência em fragilidade, projetando uma vontade de ser amado para além da busca pela identidade sexual. Poucas vezes Craig esteve tão no comando, mesmo em um personagem tão fragmentado e tão triste.
O cinema de Luca Guadagnino, de "Me Chame Pelo Seu Nome" a "Rivais", passando por "Suspiria" e "Até os Ossos", navega entre o realismo e a fantasia sempre sob o prisma do desejo —por vezes perigoso, não raro sufocante. Ao trabalhar com um texto controverso como o de Burroughs, porém, ele se deparou com outro tipo de sensibilidade, mais dura e feia, e o choque com sua exuberância foi inevitável.
Recalibrar os extremos resulta num tremor ocasional, um desequilíbrio no foco narrativo que, felizmente, é corrigido pela performance grandiosa de Daniel Craig. Sua presença valida tanto imperfeições quanto o descolamento da realidade que o filme promove.
Até porque não existe em "Queer" o desejo de retratar o amor de forma convencional, não existe desfecho emocional: o coração é rasgado, uma ferida impossível de ser suturada. Do lado de cá, só nos resta sentir.
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