Golfo da América não é polêmica inédita e novo nome dificilmente vai pegar

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21º52'N, 84º55'O
Farol Roncali
Cabo San Antonio, Pinar del Río, Cuba
O Farol Roncali é o ponto mais ocidental de Cuba. Está mais próximo do México do que dos Estados Unidos, e o cabo onde ele foi erguido marca uma fronteira invisível e importante nas Américas.
Trata-se do Cabo San Antonio, a ponta oeste da Península de Guanahacabibes, que marca a divisa entre o Mar do Caribe e o Golfo do México, segundo a Organização Hidrográfica Internacional (IHO, na sigla em inglês). Esse organismo busca padronizar mapas e levantamentos a respeito de oceanos, mares e águas navegáveis.
Isso inclui nomear corpos aquáticos. Quase sempre, quando a IHO reconhece algo, a comunidade internacional acata. É o que ocorre, por exemplo, no Golfo do México. Todos os mais de cem membros da IHO aceitam o nome "Golfo do México", incluindo os três mais interessados no assunto, aqueles banhados por suas águas: Estados Unidos, México e Cuba.
Até outro dia, isso era um não-assunto. Um fato consumado.
Bastou Donald Trump decretar a mudança do nome do golfo para muita gente comemorar, espernear ou criticar. Mas o que significa isso, em termos históricos?
A medida pode ser vista como mais um gesto de populismo bufante. Mas não é nada inédita, e o próprio Golfo do México já teve outros nomes.
Golfo de quem?

A primeira vez que o nome "Golfo do México" apareceu em mapas e documentos foi nos anos 1550. Porém, não foi uma unanimidade.
Conquistadores espanhóis o chamavam, no século 16, de Mar do Norte, Golfo da Flórida ou Golfo de Cortés. O próprio Hernán Cortés, que liderou a invasão que derrotou os astecas, usava o termo "Mar do Norte".
Um mapa português de 1558 nomeou a região "Sinus Magnus Antillarum" (latim para "Grande Baía das Antilhas"). "Golfo de São Miguel", "Golfo de Yucatán", "Golfo da Nova Espanha", "Mar de Yucatán" e, pasme, "Mare Cathaynum" ("Mar da China"!) foram outros termos usados naquele século.
Décadas mais tarde, em meados do século 17, o nome "Golfo do México" pegou. A unidade política da região ajudou a firmá-lo: por cerca de 200 anos, toda a costa do golfo pertenceu à Espanha, com exceção dos 80 anos em que a Louisiana foi colônia francesa.
A partir do século 19, isso começou a mudar. Os EUA, agora independentes, expandiram seu território e englobaram Flórida e Louisiana. Mais tarde, essa costa passou a incluir Alabama e Mississipi. México e Cuba também se libertaram, mas enquanto o país insular não teve mudanças territoriais, o México teve várias.
A mais importante para o nosso assunto de hoje foi a perda do Texas, que em 1836 virou uma república e dez anos depois foi incorporado pelos EUA. Mas apesar de novas bandeiras, hinos e símbolos nacionais terem surgido na região, todo mundo parecia satisfeito em manter o nome do golfo como estava.
Nos Estados Unidos ninguém pensava nisso. Até porque as pessoas não sabiam direito nem como chamar seu próprio país.
América para quem?

O nome "Estados Unidos da América" começou a aparecer em 1776, quando foi incluído na Declaração de Independência. Antes, o território era chamado de Treze Colônias e, brevemente, Colônias Unidas.
Até seus fundadores tinham plena noção e semancol de que o novo país, então uma fração do atual território, limitada à Costa Leste, não englobava toda a América. Logo, usar o continente como sinônimo do país não fazia sentido.
Ainda assim, desde a fundação da república, já se falava em "comida americana" ou "costumes americanos" para coisas e costumes do país. Só não era o padrão.
Por décadas, muitos governantes usavam termos como "A República", "A União" ou, veja só, "Estados Unidos" para se referir ao país, explicou Sean Purdy, professor de história dos EUA na USP, à BBC News Brasil. Não havia um nome preferido evidente.
Só no fim do século 19, quando o país começou a se tornar potência, que seus líderes passaram a usar "América". Segundo Purdy, após a vitória na Guerra Hispano-Americana (1898), quando os EUA ganharam dos espanhóis o controle sobre Cuba, Porto Rico e Filipinas, presidentes como Theodore Roosevelt passaram a empregar o nome. Consequentemente, o gentílico "americano" pegou.
No Brasil, onde desde o século 19 o uso de "americano" prevalece, os termos "norte-americano" e, especialmente, "estadunidense" têm boas doses de ideologia. Seria uma maneira de se opor linguisticamente à superpotência.
Você encontrará linguistas e geógrafos a favor e contra todos eles, mas os dicionários cravam que os três estão corretos. Certo, a popularização do nome "América" nos EUA acompanhou a expansão imperialista. Reagir a isso usando "estadunidense" como uma postura política pode até fazer sentido, mas é meio ingênuo e inútil. Afinal, gostemos ou não, "América" está no nome completo do país.
A República Federativa do Brasil já foi chamada Estados Unidos do Brasil. O nome oficial do México é Estados Unidos Mexicanos. Logo, se levarmos muito ao pé da letra essa história de "América é só o continente, não o país", teríamos que sentar para revisar quais são os Estados Unidos: o da América ou os Mexicanos.
Sugestão: se for para insistir na tecla de que "americano" está errado, então use um argumento mais apropriado. A própria escolha do nome do país foi baseada em um equívoco histórico.
O nome do continente americano é uma homenagem ao explorador florentino Américo Vespúcio. Isso porque ele foi o primeiro a identificar corretamente que as novas terras não eram um pedaço da Ásia, como acreditava o primeiro europeu a oficialmente chegar ao continente, o genovês Cristóvão Colombo.
Por isso, o cartógrafo alemão Martin Waldseemüller batizou, em 1507, uma parte do Novo Mundo de "América". Só que ele não se referia às três Américas, até porque o mapa ainda era bastante simplório ao mostrá-las (especialmente a do Norte).
Na obra de Waldseemüller, só uma parte do continente se chamava "América", no Nordeste brasileiro. Quer dizer, a América original, por assim dizer, é o Brasil. Além do mais, se Colombo tivesse cravado e insistido que ele havia chegado em um continente novinho, e não na Ásia, talvez toda a massa de terra que se estende da Terra do Fogo ao Alasca se chamaria Colômbia".
Somente mais tarde outros mapas passaram a usar "América" para todo o continente. Mas, na essência, é o que Glauco Ortolano, professor da Universidade de Montana (EUA), resumiu em um artigo publicado no Global Policy Journal: "'América' para designar os Estados Unidos é em si uma apropriação indevida de um termo".
Mas foi dessa forma que as coisas andaram, e hoje o país se chama Estados Unidos da América. É tudo questão de contexto e de como os nomes vão se ajeitando no léxico cotidiano.
Assim voltamos ao Golfo do México. Nomes só colam quando as pessoas o adotam. Impor uma mudança do tipo com base na canetada pode dar tão certo quanto o Tesla Cybertruck.
Como funciona a mudança de nome de um lugar
Em termos práticos, renomear um ponto geográfico no país é um assunto para o Órgão Federal para Nomes Geográficos dos EUA (USBGN, na sigla em inglês). Entre suas funções está manter a uniformidade do uso de nomes por todas as agências federais.
Em geral, o órgão desencoraja a mudança de nomenclatura, a não ser que haja motivo sério, como algo ofensivo. Foi o caso de uma montanha no Oregon que se chamava Suástica. Já contei essa história aqui no Terra à Vista.
A montanha, que hoje se chama Halo, só mudou de nome porque cidadãos se organizaram e enviaram uma petição para a USBGN. Normalmente, é assim que funciona, por isso os especialistas consultados pela rede americana NPR acham difícil que a história de "Golfo da América" dê certo.
O presidente pode impor, mas presidentes vêm e vão. O próprio Trump derrubou uma decisão de Barack Obama nessa disputa onomástica.
Em 2015, o então presidente americano mudou o nome da montanha mais alta do país, o Monte McKinley (6.190 m), no Alasca, para Denali, que era como ele sempre fora chamado pelos povos locais. Menos de dez anos depois, Trump reverteu a ordem, recuperando a homenagem a William McKinley, presidente do país na virada para o século 20.
O governo de McKinley, que jamais pisou no Alasca, foi marcado por expansionismo (era ele o presidente durante a Guerra Hispano-Americana) e aumento de tarifas protecionistas. Terminou com ele assassinado, em 1901.
Portanto, um futuro presidente americano pode derrubar essas nomeações e recuperar os antigos termos. A não ser que o nome 'Golfo da América' caia no gosto do povo. O que, por ora, não parece ser o caso.
Houve poucas e irrelevantes petições pela mudança do nome do Golfo do México no passado. O comediante e apresentador Stephen Colbert fez uma sátira a respeito em 2010 e um deputado democrata propôs a pauta em 2012, também em tom de piada.
É claro que, com a atenção dada pelo presidente, muitos de seus seguidores passem a amar a ideia. Em todo caso, por mais que vingue, a mudança não será universal.
Ela diz respeito somente a como órgãos federais americanos se referirão ao Golfo do México. Se empresas privadas e a população em geral seguirem, é outra história. O Google já anunciou que seu aplicativo Maps vai seguir a nomeação, pelo menos dentro dos EUA.
Fora a comunidade internacional. Até o momento, nenhum país embarcou nessa. Órgãos de imprensa, como a Associated Press, anunciaram que seguirão usando "Golfo do México".
Mas é possível que alguns mapas passem a usar ambos os termos. Não seria nenhuma novidade.
Nós chamamos o braço do Atlântico que separa a Grã-Bretanha da Europa continental de Canal da Mancha por causa da influência direta da França, que criou esse nome, sobre o português e o espanhol. Mas os britânicos e suas ex-colônias (EUA entre elas) o chamam de "English Channel".
A influência francesa também nos faz chamar a montanha mais alta da Europa, na fronteira entre França e Itália, de "Mont Blanc". Só não se refira a ela assim diante de um italiano. Para eles, é "Monte Bianco".
Desde os anos 1960, as nações árabes chamam o Golfo Pérsico de Golfo Arábico. Esse corpo d'água banha as costas tanto da Arábia Saudita quanto de seu grande rival, o persa Irã.
O Mar do Japão, na Coreia do Sul, não existe para os coreanos. Vítimas de uma brutal colonização japonesa entre 1910 e 1945, eles o chamam de Mar do Leste.
O Mar do Sul da China tem mais nomes e quase tantas polêmicas quanto Sean Combs. Há anos motivo de disputa e de preocupação diante do expansionismo chinês, ele se chama Mar do Sul para os chineses, Mar do Leste para os vietnamitas, Mar do Sul da China para malaios e indonésios e Mar das Filipinas para os filipinos.
Por essa perspectiva, renomear o golfo que margeia cinco estados e mais de 2,7 mil quilômetros da costa americana de "Golfo da América" não é uma ideia tão estúpida. Para o professor de geografia David Rain, da Universidade George Washington, o problema é outro.
Ele reconhece que algumas dessas disputas de longa data fazem parte do jogo. Mas ter um cenário em que os nomes de lugares ficam tão sujeitos a mudanças que eles acabam perdendo o significado.
"Ter entendimento comum sobre nomes de corpos d'água, continentes etc. é uma base necessária para construir nossa civilização", diz ele. "Acho que esses nomes de lugares são muito, muito importantes e realmente carregados de significado. Não dá para mudá-los assim, na base da canetada."
Talvez a saga do Golfo da América vire mais um verbete do grande anedotário laranjão. Uma piada tosca, mesmo que tenha muito mais base histórica e geográfica do que a que foi proposta por Elon Musk.
Entre uma trapaça e outra jogando videogame, o líder do departamento de eficiência governamental dos EUA, sugeriu que o Canal da Mancha se chamasse "Canal George Washington". Misericórdia.
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