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Reportagem

Embaixadora dos vinhos naturais não cai no hype: 'Discurso continua raso'

A pessoa é para o que nasce, dizem. E Lis Cereja (@liscereja) nasceu com nome de fruta, como prova o RG, para se dobrar somente (e tão somente) para a natureza e seus humores, nas taças e nos pratos.

É ela que, há quase duas décadas, espalha a palavra dos vinhos naturais, selvagens, sem intervenção entre Enoteca Saint VinSaint (@enotecasaintvinsaint), Feira Naturebas (@feiranaturebas), caravanas, consultorias e publicações.

Aqui no UOL, ela já apareceu algumas vezes: numa entrevista da minha xará Ju Bianchi, em que ela compara o vinho industrial a uma mulher photoshopada, até no videocast Vamos de Vinho.

Por que ouvir Lis de novo e sempre? Porque é necessário.

"Até hoje as pessoas conhecem muito a agricultura orgânica do que a comida ou o vinho orgânicos e naturais. São 17 anos falando a mesma coisa e pouco mudou", conta num papo sincero.

Numa conversa de falas precisas e diretas, ela enrola mechas de cabelos entre os dedos várias vezes, numa aceleração particular e conta que, mesmo entre muitos pratos girando ao mesmo tempo, ela encontra tempo para se surpreender e se apaixonar todos os dias por uma planta que vira infusão ou prato, e por uma uva que vinga como vinho

Tudo começou na urgência de ir além do que os famigerados "gira-tacinha" celebravam. Para quem adora o que há de selvagem nesse mundo do comer e beber, um prato e uma taça cheios.

Sede de saúde

Antes de pensar a estonteante Enoteca, uma casa com ares de bistrô colada à Faria Lima que resiste às modas e cópias, foi na faculdade de gastronomia, cursada paralelamente à de nutrição, que Lis descobriu o encanto da história do vinho.

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Garrafas da Enoteca Saint VinSaint
Garrafas da Enoteca Saint VinSaint Imagem: Katiuska Sales

Já formada, passou por todos os cantos possíveis da bebida até então: sommelière de importadora, restaurante e até consultora de uma rede de motéis ("um trabalho interessante").

Entre as muitas degustações e feiras, dores de cabeça e sucessivos ataques de asma, ela se descobriu alérgica a sulfito (composto usado pela grande indústria para conservar os vinhos). Em uma prova de champanhes, porém, o corpo não só não reclamava, como pedia mais.

Tinha alguma coisa muito estranha, porque parecia que eu estava fazendo bem de alguma maneira. Terminei a degustação inteira, eu saí muito melhor do que eu entrei, com muito mais energia, relembra.

Sua majestade, a taça
Sua majestade, a taça Imagem: Katiuska Sales

A demonstração era de champanhes de Nicolás Joly, o papa da biodinâmica.

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"Conheci Nicolas e aí foi caminho sem volta. Comecei a estudar tudo o que era esse mundo dos vinhos não convencionais, biodinâmicos, orgânicos e todo o movimento do vinho natural que estava começando naquela época."

Citando Goethe e o "fenômeno originário" (Urphänomen), Lis viu uma conjunção de vontades construindo, em diferentes pontos do mundo, a contracultura do vinho natural nos anos 2000. Diante das feiras e casas pipocando na Europa a partir de 2010, Lis quis um bar - e um campo de batalha — para chamar de seu.

Depois de alguns anos, surgiu o desejo de fazer um lugar que eu quisesse frequentar. Totalmente egoísta. O que eu gostaria de fazer num sábado? Então eu comecei a pensar nesse lugar, que pudesse ter cozinha sazonal, orgânica e vinhos naturais, que era uma coisa que o Brasil ainda não tinha, lembra.

Enoteca Saint VinSaint
Enoteca Saint VinSaint Imagem: Katiuska Sales

Há 17 anos, no 22 de janeiro (dia de São Vicente de Zaragoça, padroeiro dos vinhateiros e protetor dos vinhos), a casa nasceria.

Essa transição não viria sem um preço: "Eu simplesmente fui excluída do mundo do vinho por uns 10 anos. Agora que voltaram a querer ser meus amigos", ela provoca sem medo de encherem o saco.

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A verdade do hype

Por que agora esses likes diante dos haters? Lis lembra que, no início, era "aquela meia dúzia de doidos que acreditavam no movimento de vinho natural". Hoje, é uma tendência e o público está maior e um pouco mais diversificado.

Lis Cereja
Lis Cereja Imagem: GUI GOMES

Felizmente, há colegas que batalham ao seu lado para o vinho sem intervenções ou amarras, como os citados Gabriela Montaleone e Bruno Bertoli, do Beverino.

"Há pessoas que já estão ordenadas num novo paradigma sustentável do planeta, porque senão acabou a humanidade. E os que se cansaram das mesmas roupas, bebidas, comidas, livros, séries. Quando começam a perceber que na alimentação também estão sendo pasteurizados, buscam coisas mais originais, sistemas comerciais mais justos, mais sinceros, menos marketing", acredita.

Mas não pense que esse avanço e aura progressista do mundo dos vinhos naturais livra o universo de velhos e graves problemas, como o persistente machismo.

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Hoje, a galera me respeita porque eu meio que virei a mãe do povo. Mas é só porque não existe outra opção. Porque senão eles continuariam tirando sarro, lamenta.

Há também, como afirma Lis, toda parte de você viver num país que desincentiva processos como esse. "São leis arcaicas, falta de união do setor, um querendo comer o outro, passar por cima do outro, querendo falar que fez as coisas melhor do que o outro. Isso pega muito. Porque você fica sem respaldo, sem apoio", avalia.

O que mais frustra, porém, mesmo que o hype do vinho natural seja inegável e positivo, Lis vê que pouco do movimento é realmente sólido ou sério, opina.

O discurso continua muito raso ainda, a quantidade de sommeliers especializados em vinho natural no Brasil ainda é pífia. E mesmo entre eles, o conhecimento é muito básico, aponta.

Isso por diversas razões, acredita Lis: a história de vinho é muito recente, logo importamos os conceitos; não há incentivo para os profissionais para conhecer a área ("monte de coisa acontece, mas a gente não tem uma massa intelectual falando sobre"); e, por mais que se fale de vinhos naturais, o olhar ainda é convencional.

Boa parte da problemática da produção aqui no Brasil é que as pessoas esquecem que o vinho natural tem que começar na terra. Muita gente compra de qualquer pessoa, bota o rótulo bonito e entra, entre aspas, no movimento do vinho natural. Impede igualdade com o cara que tá há 40 anos se f*dendo e tentando fazer cultivo orgânico, opina.

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Por ora, os exemplos de sucesso estão na Europa, como França, Itália e Catalunha. E um caso interessante, o último grande encanto de Lis, é a desconhecida Geórgia, suas uvas autóctones e seus vinhos de ânforas, numa tradição de mais de 10 mil anos.

"O que falta muito no Brasil, como povo é esse fervor político, social, cultural, antropológico", diz.

Por isso, hoje também trabalha na republicação e tradução de seus livros Super Dicas para entender de vinhos (2010) e Vinho Natural (2024) e no resgate documentário FreeRange doc. em parceria com o fotógrafo Fabio Knoll, que retrata o cenário do vinho natural e da agricultura limpa no Brasil.

A revolução 'natureba'

O destino é muito maravilhoso, pois isso me forçou a teimosia de pensar se na França os caras estavam fazendo no Brasil também. E aí que eu comecei uma ideia das caravanas para o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, lembra.

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A missão era pesquisar produtores de vinificação natural e agricultura orgânica. "Porque essa galera não chegava em São Paulo. Só as grandes vinícolas", afirma. Dessas andanças, surgiram as Caravanas Naturebas.

De viagem em viagem, em 2013, a necessidade de expandir e movimentar o mercado deu à luz outra ideia, batizada de Feira Naturebas. E foi nela que o movimento encontrou forças para levar uma América Latina rumo aos vinhos sem intervenção, do Chile à Argentina, ao Uruguai, à Guatemala e à Bolívia.

Lis na Feira Naturebas de 2024
Lis na Feira Naturebas de 2024 Imagem: Divulgação

Ela veio com a ideia de fazer com que as pessoas começassem a conhecer, a comprar e que começassem a abrir bares, restaurantes e falar sobre o vinho natural. Foi só por isso que a gente conseguiu sobreviver tanto tempo, conta.

A primeira edição, na Enoteca, reuniu 20 produtores e 100 pessoas. Após passar pelo Memorial da América Latina, em 2024, foi para a Bienal do Ibirapuera, com 3 mil pessoas e 200 produtores de 14 países. Este ano, ela acontece em 21 e 22 de junho.

"A gente não precisa mais implorar para os produtores virem. Tem galera da Geórgia, Espanha, Turquia, México. A galera hoje fica se debatendo pra conseguir uma mesa", comemora.

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Um todo orgânico

Gnocchi ao pesto cremoso, da Enoteca Saint VinSaint
Gnocchi ao pesto cremoso, da Enoteca Saint VinSaint Imagem: Katiuska Sales

A utopia de apresentar o vinho natural ao público brasileiro não veio sozinha.

Queria um restaurante completamente orgânico. Lembrando que, em 2008, não existia um fornecedor de orgânicos em São Paulo. Você tinha que ir até o produtor, conta.

Diante de menu com ingredientes, até então, tão pouco disponíveis, Lis percebeu que ficaria mais barato plantar as coisas em casa do que comprar com outras pessoas. E foi assim que se mudou para um sítio.

Sazonal, sustentável e sem desperdícios, a Enoteca se criou pela própria cartilha. Bem no início, a logística de importação dos vinhos naturais era inexistente ou truncada, mas Lis, agora, quebrava os paradigmas de suas duas formações: "Como nutricionista e de chef de cozinha, a gente aprende a dar remédio para emagrecer e a trabalhar com produto industrializado".

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Pães de fermentação natural, manteiga fermentada, da Enoteca Saint VinSaint
Pães de fermentação natural, manteiga fermentada, da Enoteca Saint VinSaint Imagem: Katiuska Sales

Hoje, a Enoteca ou é feito do zero ou vem do pequeno produtor. "A última coisa que eu consegui foi farinha e óleo", diz orgulhosa.

No menu, a diferença de cada detalhe explode em surpresas, como o mil-folhas de mandioca com béarnaise de tucupi e cinzas de cebola, em que as "folhas" são feitas com a mandioca pubada (fermentada inteira em água). Ou o nhoque ao pesto cremoso, feito com batata e farinha de espelta, um grão ancestral. Já o pesto é feito com uma seleção de ervas aromáticas e medicinais, colhidas da horta de Lis. As harmonizações, claro, selvagens.

Diante do nascimento de um novo projeto (o primeiro bar do mundo a trabalhar 100% com bebida natural, previsto para abrir em agosto deste ano), Lis reconhece que o que a faz continuar é "um bom grau de loucura".

"Para mim hoje é muito importante fazer com que as pessoas se lembrem do que é importante na vida. E através da comida e da bebida você consegue fazer isso tudo rápido", crê.

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De nome Cereja, Lis ainda se encanta pelo selvagem do vinho natural, muito mais próximo à lógica da natureza, que a gente nunca vai conseguir compreender 100%.

Tem dia que o vinho vai estar mais tímido, tem dia que o vinho vai estar mais exuberante, porque ele segue a lógica da natureza. A natureza é mutável. A gente é mutável.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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