Como a obesidade aumenta o risco de diversos tipos de câncer

Não tem nem o que discutir sobre essa relação: a obesidade comprovadamente aumenta o risco de, pelo menos, treze tipos de tumores malignos. A própria Organização Mundial de Saúde assume isso faz algum tempo.

A gordura em excesso mantém um péssimo relacionamento com os mais diversos tecidos do corpo, espalhando substâncias que os inflamam e desencadeando um caos, com encrencas por todos os lados. Para muita gente acima do peso, o câncer é uma delas.

O risco parece ser maior para as mulheres: entre as que recebem a notícia de um câncer, 55% têm um tumor associado à obesidade, enquanto isso só acontece com 24% dos homens com diagnóstico da doença maligna. Foi o que aprendi na aula da médica Ada Cuevas, diretora do Centro Avanzado de Medicina Metabólica y Nutrición, em Santiago, no Chile. Ela esboçou as diferenças entre os sexos biológicos na incidência de cânceres relacionados ao excesso de peso, durante o ICO (International Congress on Obesity), que aconteceu em meados deste ano em São Paulo.

De acordo com a doutora, para as mulheres o perigo aumenta após a menopausa, quando caem os níveis de estrógeno. "Enquanto esse hormônio se mantém nas alturas, elas acumulam mais gordura subcutânea", comentou. "Depois, a distribuição do tecido adiposo se altera e ele se concentra mais entre as vísceras." Sim, é na circunferência abdominal aumentada — ou, em português claro, na barriga volumosa — que mora o problema.

Por isso, por acumularem mais gordura na linha da cintura desde sempre, no final das contas os homens têm o maior número de casos de tumores ligados à obesidade, apesar de representarem só um quarto dos diagnósticos de câncer entre eles.

Mas, sopa de números à parte, de que doenças estamos falando? E o quanto a obesidade aumentaria o risco relativo? Para você entender o conceito de "relativo" na Medicina, seria a probabilidade de alguém que tem ou que foi exposto a alguma coisa — no caso, que tem obesidade — desenvolver um problema de saúde em comparação com aqueles indivíduos que não apresentam o mesmo fator de risco. Neste assunto, portanto, a comparação é com pessoas com peso normal e circunferência abdominal de até 94 centímetros para homens e de até 80 centímetros para mulheres.

Os 13 tumores associados à obesidade

A seguir, você irá saber quantas vezes, em média, a obesidade multiplica o risco de cada uma dessas doenças aparecer, considerando os dados mundiais.

  • Câncer de endométrio: 7,1 vezes, sendo de longe o tipo mais influenciado pelo excesso de adiposidade. Na verdade, metade dos casos tem a ver com isso.
  • Câncer de esôfago: 4,8 vezes.
  • Câncer de estômago: 1,8 vez, ou seja, o risco quase duplica.
  • Câncer de fígado: 1,8 vez, mas há quem desconfie que seria bem mais que isso.
  • Câncer de rim: 1,8 vez, também.
  • Câncer de pâncreas: 1,5 vez, ou seja, 50% a mais.
  • Meningioma, o tumor nas meninges do cérebro: 1,5 vez.
  • Mieloma múltiplo: 1,5 vez.
  • Câncer de intestino: 1,3 vez, ou 30% de risco a mais.
  • Câncer de mama: 1,1, ou um aumento de 10% no risco.
  • Câncer de ovário: 1,1 vez.
  • Câncer de tireoide: 1,1 vez.
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Por que o risco aumenta?

Levei a pergunta ao endocrinologista Fernando Gerchman, que é professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Primeiro, porque ele também participou da tal aula sobre câncer e obesidade no ICO 2024. Mas, acima de tudo, porque é um dos maiores estudiosos do tema no país. Suas pesquisas vão bem além da história de como as pessoas emagrecem e como sustentam o novo peso. O médico, que em sua formação passou pelo departamento de oncologia de instituições americanas, é interessado na intrincada relação entre a prevenção e o tratamento do excesso de peso com diversas condições de saúde e tem vários artigos nessa linha publicados em revistas internacionais.

"Por que o risco de câncer aumenta? A resistência insulínica é uma das razões", começa a me responder o professor Gerchman. "E faz todo sentido: a insulina é um hormônio anabolizante. Isso quer dizer que estimula o crescimento dos tecidos, desencadeando várias reações que, no final, promovem a divisão celular."

A gente está careca de ouvir o seguinte enredo: a insulina é a chave que faz a glicose presente no sangue entrar nas mais diversas células do corpo para fornecer energia. Pois bem: em quem tem obesidade, é como se essa chave não funcionasse direito. Essa resistência faz sobrar nutrientes no sangue, algo que o pâncreas tenta compensar produzindo mais e mais insulina. Resultado: seus níveis na circulação aumentam.

"Apesar de, nas pessoas com obesidade, esse hormônio não captar adequadamente a glicose, sua elevação no sangue hiperativa as vias que provocam a divisão celular", complementa o médico. "Ora, tudo o que acelera a divisão celular em um órgão aumenta o seu risco de câncer", conclui.

É isso mesmo: quanto mais uma célula se divide, pilhada pela insulina para acelerar o ritmo desse trabalho, maior a probabilidade de, estabanada, fazer algo errado no meio do processo. Daí, pode surgir uma cópia com mutações malignas.

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Questões mecânicas

Às vezes, elas também contam."Quem tem obesidade pode acumular muita gordura no abdômen e isso causa uma pressão mecânica capaz de interferir na motilidade dos órgãos da digestão, elevando o risco de refluxo esofágico", diz o professor Gerchman.

É fato bem conhecido: quando os sucos estomacais pegam a contramão, desafiam a gravidade e sobem até o esôfago, as paredes desse órgão sofrem, já que não estão acostumadas com tanta acidez. A irritação provocada por esse vai-e-volta de ácidos obriga a mucosa do esôfago a se renovar mais do que de costume. Logo... Voltamos ao papo da divisão celular: a ameaça de câncer esofágico sobe.

Gordura no pâncreas e em outros locais errados

O tecido adiposo é feito para armazenar gordura. "Mas, especialmente aquele que a gente encontra no abdômen, tem lá os seus limites, que são determinados por uma série de fatores, inclusive genéticos", explica o professor Gerchman. "Ou seja, cada um de nós tem uma capacidade máxima, maior ou menor, no tecido adiposo abdominal."

Quando essa capacidade máxima está prestes a ser atingida, as células desse tecido, que é tremendamente ativo, tentam se defender. Liberam substâncias que culminam na tal resistência à insulina — "é uma estratégia para que os nutrientes tenham dificuldade para entrar nos próprios adipócitos, para que eles não tenham de armazenar ainda mais", justifica o endocrinologista.

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Porém, muitas vezes essa tática não dá conta e o limite é superado. Então, a gordura, sem encontrar abrigo no tecido onde deveria ser estocada, vai parar nas células de outros órgãos. Nas do pâncreas, por exemplo. "É muito provável que isso tenha relação com o câncer pancreático", observa o professor.

No fígado, essa história já está muito bem contada pela ciência. Quando a gordura se infiltra nas células hepáticas, ela primeiro causa uma inflamação, a esteato-hepatite. A inflamação, por sua vez, lesiona o fígado, que vai formando cicatrizes ou fibroses como uma reação. E a fibrose seria como a antessala da cirrose ou até mesmo do câncer hepático.

A interferência dos hormônios sexuais

Para completar, pessoas com obesidade tendem a exibir níveis alterados dos hormônios sexuais. "Esse desequilíbrio também pode aumentar aquele processo de divisão celular", ressalta o professor Gerchman.

A hipótese é que essa seja mais uma explicação para a maior incidência em mulheres acima do peso de alguns tumores malignos que têm o envolvimento hormonal — os de mama, os de ovário e os de endométrio.

Sobre a prevenção dos tumores

A lógica diria que, se uma pessoa com obesidade emagrecesse, o seu risco de desenvolver tumores malignos cairia— "assim como acontece com o indivíduo que para de fumar: a probabilidade de ele ter câncer de pulmão vai diminuindo com o tempo, ficando quase igual à de não fumantes passados uns quinze anos da cessação do tabagismo", compara o professor. "Mas talvez não seja bem assim com a obesidade", lamenta informar.

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Estudos com quatro ou cinco anos de duração ainda não demonstram redução significativa do risco de câncer em pessoas com obesidade que perderam excesso de peso. Mas o médico gaúcho não desanima."Era assim com as doenças cardiovasculares, isto é, não tínhamos provas de que o emagrecimento ajudaria a evitá-las", lembra. Onde ele quer chegar: a comunidade científica acredita ser muito provável que os efeitos protetores do emagrecimento só apareçam depois de um bom tempo de manutenção de um novo peso.

Isso só reforça a ideia de que o tratamento é para o resto da vida — inclusive, os estudos provam que, ao contrário do que alguns temiam, as novas drogas contra a obesidade não aumentam o risco de câncer de mama, nem de qualquer outro tumor. Mas, claro, melhor seria nem chegar a esse ponto da balança, evitando a obesidade. E o câncer, por tabela.

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