Estigma a transtorno mental: será que obesidade é uma doença psiquiátrica?

Diversos estudos indicam uma relação bidirecional entre obesidade e transtornos mentais: ter uma das condições aumenta o risco de desenvolver a outra. Então, será que a obesidade deveria se enquadrar, também, como um transtorno psiquiátrico?

A discussão foi levada ao palco da 41ª edição do Congresso Brasileiro de Psiquiatria, realizado em outubro, em um "embate de titãs". Dois médicos se posicionaram a favor e dois contra a inclusão da obesidade no guarda-chuva da psiquiatria.

Mas todos foram unânimes: as duas condições estão fortemente associadas e devem ter um tratamento acompanhado por especialistas de diferentes áreas. A seguir, confira os destaques.

Pontos a favor

Historicamente, a obesidade leva a estigma e sofrimento emocional. O psiquiatra Táki Cordás, coordenador da assistência clínica do Instituto de Psiquiatria da USP, mostrou que deuses do Olimpo considerados "menores", como Dioniso e Coalemos, eram associados a descontrole e excessos. A avidez pela comida poderia levar à punição, tanto que a gula está entre os sete pecados capitais. A obesidade passou a ser vista com culpa, como um problema moral e algo esteticamente feio.

Há mais de 2.500 anos, a obesidade sofre preconceito, o que leva ao estigma, e o estigma leva ao aumento do risco de depressão, ansiedade, transtornos alimentares e suicídio. Só isso já seria suficiente pra ver a obesidade como parte da psiquiatria, ou pelo menos o interesse da psiquiatria. Táki Cordás, psiquiatra

A obesidade caminha ao lado de doenças psiquiátricas. Segundo o médico, ela também pode aumentar o risco de declínio cognitivo e demência.

  • Um estudo brasileiro com 180 mulheres com obesidade mostrou que 39% delas apresentavam depressão, 43% ansiedade e 38% episódios de compulsão alimentar.
  • Um estudo austríaco com mais de 3 milhões de pessoas sem obesidade e 161 mil com obesidade indicou que receber o diagnóstico de obesidade aumentou significativamente o risco para distúrbios psiquiátricos, como depressão, espectro de psicose, ansiedade, distúrbios alimentares e de personalidade.
  • Pesquisas sugerem que a discriminação relacionada ao peso aumenta o risco de ideação suicida, inclusive entre adolescentes. E esse preconceito pode ser internalizado, levando a uma autopercepção negativa. "Muitas dessas pessoas não procuram tratamento, envolvidas numa questão da culpa, ou abandonam o tratamento por achar que isso não tem saída", alerta Cordás.

Sofrimento psicológico impacta na mudança do peso. Estudo deste ano mostra que a alteração constante na balança aumenta o risco de abandono do tratamento de obesidade, de diabetes tipo 2 e doença cardiovascular. "Há vários fatores envolvidos, entre eles, essa população tem mais sintomas depressivos", diz o psiquiatra.

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Já propuseram incluir tipos de obesidade no DSM-5, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Um editorial publicado no American Journal of Psychiatry em 2007 argumentou, entre outros aspectos, que o consumo compulsivo de alimentos é um paralelo com os sintomas para abuso de substâncias e dependência de drogas.

Obesidade e quadros depressivos têm aspectos biológicos comuns. Ciclos circadianos alterados, resistência à insulina, microbiota intestinal alterada e status inflamatório modificado foram citados por Adriano Segal, responsável pela área de psiquiatria no ambulatório de obesidade e síndrome metabólica no serviço de endocrinologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Quanto maior for a gravidade da obesidade, maior a prevalência de quadros psiquiátricos. Adriano Segal, psiquiatra

O tratamento da obesidade impacta o sistema nervoso central. Estudos observacionais apontam que mudar o estilo de vida, indicado para emagrecer, reduz parâmetros inflamatórios, sintomas de esquizofrenia, episódios de depressão e transtorno bipolar.

O conteúdo dos alimentos pode afetar a saúde do cérebro. Dieta rica em gordura diminui a diversidade da microbiota intestinal, aumenta a inflamação em todo o corpo, inclusive no cérebro, levando a ansiedade, depressão e redução das capacidades cognitivas.

Exercícios físicos têm impacto positivo nas duas condições. "Muitos estudos mostram que a atividade física pode impedir, em parte, o problema instalado da obesidade, melhorar processos cognitivos, a memória, tem efeitos analgésicos, antidepressivos e induz sensação de bem-estar", diz Segal.

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Pontos contra

Sem evidências de causa e efeito. O endocrinologista Neuton Dornelas defendeu que, conforme uma análise de 2009, não há ainda evidências suficientes de que a obesidade seja causada por desordens mentais, devido ao seu caráter multicausal.

A genética responde por 40% a 70% das causas de obesidade. "Se você tem uma tendência genética e é exposto à mídia, aos alimentos ultraprocessados, a essa cultura de consumo, isso pode desencadear o processo de obesidade como um todo. O ambiente que a gente vive é, por si só, obesogênico", disse.

Existe uma relação bidirecional bem estabelecida entre obesidade e doenças psiquiátricas. "Depressão e obesidade são altamente prevalentes e frequentemente concomitantes, mas não há uma definição exata se uma realmente provoca a outra", argumentou.

A obesidade é frequentemente acompanhada de sofrimento psicológico, mas isso é mais atribuído ao estigma e discriminação do que a uma patologia psiquiátrica. Neuton Dornelas, endocrinologista

Hilton Libanori, cirurgião bariátrico e do aparelho digestivo, foi pragmático e literal. "Obesidade é acúmulo excessivo de gordura corporal. Doença psiquiátrica é um transtorno que afeta o pensamento, o comportamento, o humor ou uma combinação desses fatores. Não fala nada de acúmulo de gordura corporal."

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Os tratamentos das condições são diferentes. "O tratamento psiquiátrico não trata a obesidade. O paciente vai precisar de um tratamento específico para obesidade", disse.

A psiquiatria é especialidade adjuvante no tratamento da obesidade que, portanto, não pode ser considerada doença psiquiátrica. Hilton Libanori, cirurgião bariátrico

Para Libanori, não há quaisquer médicos de uma única especialidade em número suficiente para tratar pessoas com obesidade. A doença e suas consequências deveriam ser diagnosticadas e tratadas por todos os especialistas que tenham a chance de atender alguém com a doença, encaminhando casos especiais para o devido especialista.

"Acho que deveria ter um movimento estimulando toda a comunidade médica a diagnosticar e levar a sério o tratamento da obesidade", disse o cirurgião.

*A repórter viajou a convite da Associação Brasileira de Psiquiatria.

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