'Ser gorda socialmente é outra coisa': por que body positivity perdeu força

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O movimento body positivity surgiu em 2015 no Instagram como uma crítica ao ideal magro, atlético e musculoso, valorizando corpos de todos os tamanhos, formas e aparências. Mas essa onda de autoaceitação, em especial de corpos gordos, parece ter perdido força na internet, dando lugar a discursos pejorativos e preconceituosos, como indica uma análise de publicações em redes sociais.
O que diz o estudo
Das referências a pessoas com sobrepeso ou obesidade, 54% tiveram conotações negativas, 27% foram neutras, e 19%, positivas. O estudo foi feito pela consultoria Ilumeo a pedido da farmacêutica Merck, entre junho e agosto do ano passado, e monitorou conversas no Instagram e Twitter, além de dados do TikTok (veja metodologia abaixo).
Das interações negativas, 46% falam de autoestima e autoimagem negativa, indicando que as pessoas não se sentem mais confortáveis com o próprio corpo. Os dados indicam a retomada do body shaming (vergonha corporal) e a perda de relevância do body positivity.
Os termos mais associados à palavra "gordo" eram nojo (44%), preguiça (36%) e falta de vontade (6%), uma ideia errada sobre obesidade, cujo tratamento não depende apenas de ação individual.
A doença crônica resulta de múltiplos fatores, alguns deles impossíveis de controlar, como:
- Genética. Há genes que aumentam a probabilidade de se desenvolver obesidade.
- Sedentarismo. Pessoas em vulnerabilidade social têm menos oportunidades para fazer exercícios físicos.
- Ambiente obesogênico. De modo geral, há acesso facilitado a alimentos mais calóricos e não saudáveis, também relacionado com as camadas sociais.
- Histórico pessoal. Obesidade na infância tende a persistir na vida adulta, e eventos adversos, como abusos e violência, aumentam o risco.
- Gravidez. Nessa fase, o aumento de peso é normal e necessário, mas pode ser o início de um problema se não houver como voltar ao peso de antes da gestação.
- Menopausa. Alterações hormonais levam ao acúmulo de gordura em regiões específicas do corpo, como na cintura.
- Uso de medicamentos. Algumas drogas usadas no tratamento de outras doenças provocam ganho de peso.
Mas a aversão ao corpo gordo é acompanhada de preconceito às formas de tratamento. No estudo, 56% das menções a remédios que tratam obesidade e a quem os usa são negativas. Para os críticos, elas estariam "roubando" no processo de emagrecimento. Um consenso internacional publicado na Nature Medicine em 2020 cita que quem faz bariátrica corre o risco de um preconceito ainda mais forte.
Impacto na saúde mental
O estudo identificou que a imagem de pessoas com obesidade estava relacionada a depressão (20%), ansiedade (16%), vergonha e culpa (10%). Estudos confirmam que o preconceito está ligado a sintomas depressivos, maiores níveis de ansiedade, menor autoestima, isolamento social, estresse e uso de substâncias. De modo paradoxal, expor pessoas ao estigma do peso pode levá-las a comer mais e aumentar comportamentos sedentários.
"Observamos um aumento significativo de conteúdos sobre perda de peso, com celebridades, influenciadores e até pacientes compartilhando suas jornadas de emagrecimento a qualquer custo, muitas vezes desordenadas, sem acompanhamento médico e pouco saudáveis. Essas postagens retratam frequentemente o corpo gordo como um 'passado', no clássico 'antes e depois'", comenta Otávio Freire, sócio e fundador da Ilumeo.
Com esse alerta, as redes sociais tendem a entrar na rota de avaliação dos médicos. "É crucial que, como profissionais de saúde, comecemos a avaliar o consumo digital dos pacientes com sobrepeso e obesidade e seus impactos psicológicos ao atendê-los no consultório, para que as recomendações sejam individualizadas e realmente eficazes", diz Maria Augusta Bernardini, diretora médica da Merck para Brasil e América Latina.
Fim ou continuidade?
Embora se fale da volta da magreza, a nutricionista e pesquisadora Pabyle Flauzino diz que "não se pode voltar a algo que nunca se foi". Doutoranda em saúde coletiva na UECE (Universidade Estadual do Ceará), ela estuda o estigma do peso e diz que o Ocidente nunca valorizou o corpo gordo.
"Nossa relação com a gordura é tão disfuncional que porque uma mulher tem gordura na barriga e nos quadris, o que é perfeitamente normal se considerarmos a fisiologia humana e a anatomia do sexo feminino, a gente caiu no conto de que ela é gorda", disse no seu podcast Nutri Desconstruída.
Ela conta que quem encabeçou o movimento body positivity foram pessoas gordas, mas não aquelas que estavam no extremo. "Foram as mulheres magras, quase sendo confundidas com gordas. Não eram pessoas que passavam pela experiência que é ser gorda socialmente."
O advento de tratamentos revolucionários para tratar diabetes e obesidade, como Ozempic e Mounjaro, e outros como o Contrave, também encorajou a divulgação do método por pessoas que não têm indicação para uso. Assim, houve banalização dos medicamentos nas redes. "Não é que a magreza voltou, é que o corpo magro, valorizado, desceu algumas escalas e agora está mais magro", diz Flauzino.
Metodologia do estudo
A metodologia do social listening consiste em monitorar o que as pessoas comentam, curtem e compartilham espontaneamente nas redes sociais Instagram, X e Facebook. Por meio de uma plataforma chamada Brandwatch, a Merck, em conjunto com a Ilumeo, definiu 230 palavras-chave com base em literatura científica, agrupadas em categorias como estigmas, fome emocional e dicas milagrosas, para acompanhar, ao longo de três meses, o comportamento dos usuários das redes sobre esses termos.
Ao longo desse processo, avaliamos os conteúdos pela valência, quantidade e efeitos potenciais nos usuários. Esse monitoramento cobriu mais de 270 milhões de interações (posts, curtidas e compartilhamentos). O monitoramento também identificou "bolhas de comportamento", os quais são grupos semânticos das palavras-chave, ou seja, cinco palavras citadas concomitantemente, antes ou depois do termo principal.
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