Quem tem diabetes tipo 1 deveria ser considerado pessoa com deficiência

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Na última segunda-feira (13), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou o projeto de lei nº 2.687/2022, propondo que pessoas com diabetes tipo 1 se encaixem nas regras estabelecidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Não deixou passar nem sequer uma linha do texto que tramitou em passos de tartaruga por mais de ano na Câmara dos Deputados, onde se originou, para ser aprovado pelo Senado no apagar das luzes do ano passado. Pois é, uma longa expectativa até ser vetado.
Nas redes sociais, a decisão resultou na pancadaria virtual de sempre, sobrando golpes covardes até para a neta do presidente, Bia Lula, que tem uma criança com diabetes tipo 1. Com educação, ela rebateu à baixaria admitindo-se igualmente frustrada, mas dando a resposta certa: "o presidente não pode aprovar algo por conta da bisneta". Realmente não poderia e isso é ponto positivo. Ela lembrou, ainda, que o presidente Lula consultou ministérios antes da negativa. Mas isso só demonstra um tremendo desconhecimento de muita gente no governo sobre diabetes tipo 1.
Entre os argumentos publicados no Diário Oficial está que a convenção internacional só reconhece uma deficiência quando ela "resulta da interação entre a pessoa e barreiras sociais, e não de uma condição médica específica." No entanto, as barreiras no diabetes tipo 1 são muitas. Elas, muitas vezes, impedem o jovem de ir às aulas. Adiante, na vida adulta, servem de muros que não permitem uma entrada fácil no mercado de trabalho.
Claro, isso tudo quando a pessoa com diabetes tipo 1 é de classe social menos favorecida. Ora, pacientes vulneráveis economicamente é que seriam beneficiados com o projeto de lei vetado.
Todo mundo conhece o diabetes tipo 1?
A maioria das pessoas com diabetes — nove em cada dez — tem o tipo 2 da doença, que pode até ter um componente genético, mas é disparado principalmente pela obesidade. Nele, a insulina produzida pelo pâncreas encontra resistência para fazer a glicose que estava na circulação entrar nas nossas células. Afinal de contas, essa seria a grande função desse hormônio: garantir abastecimento de energia para todas elas, dos pés à cabeça.
O pâncreas tenta compensar a resistência à insulina, mas começa a trabalhar de forma irregular. De todo modo, na maioria das vezes o indivíduo ainda tem um pâncreas funcionando aos trancos e barrancos. Tanto que muita gente — cerca de 30% dos brasileiros com diabetes tipo 2 — demora além da conta para descobrir sua condição. Alguns passam anos sem ter sintoma algum.
No diabetes tipo 1, isso não existe. Impossível ignorá-lo. "Nesse tipo, há uma falência abrupta do pâncreas. É aquele indivíduo que hoje está bem e que, amanhã, sente muita sede, começa a urinar a todo instante, passa muito mal, pode precisar até de UTI (unidade de terapia intensiva) e, se duvidar, será diagnosticado por lá", descreve o endocrinologista Ruy Lyra, professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e atual presidente da SBD (Sociedade Brasileira de Diabetes), que emitiu nota manifestando surpresa e indignação diante do veto presidencial.
Sim, sem aviso prévio — e, na maioria das vezes sem qualquer outro caso na família — , o sistema imunológico ataca e destrói as células beta do pâncreas, que são as produtoras de insulina. Não sobra nenhuma. Daí, nem uma gota do hormônio é liberada. Com a glicose do lado de fora, todas as células do organismo sofrem pelo corte de energia. O ataque ao pâncreas costuma acontecer na infância e na adolescência.
A vida sem produção de insulina
"O esquema para repor esse hormônio deve, então, ser intensivo", diz o professor Lyra. "E na quantidade que o pâncreas produziria." Para isso, não há outro jeito: são necessárias de cinco a seis medições da glicemia , isto é, dos níveis de glicose no sangue ao longo do dia. Por baixo. Na prática, como as oscilações acontecem o tempo inteiro, costumam ser muito mais.
Sem dosar a glicose com frequência, o paciente pode injetar insulina de menos. Então, fica sobrando esse açúcar no sangue. Isso vai criando consequências terríveis. Uma delas é a retinopatia diabética, um estrago no fundo dos olhos que é a maior causa de cegueira entre nós. Sem contar danos nos rins e no sistema cardiovascular, multiplicando o risco de infarto precoce.
Mas, talvez até pior — sendo o terror de mães e pais —, é quando o jovem injeta mais insulina do que deveria ou se alimenta menos do que o esperado. O que não é incomum nessa idade. Aí, a glicose despenca do nada no sangue. O quadro, conhecido por hipoglicemia, faz a pessoa passar muito mal. No mínimo, a criança fica agitada e a concentração nas explicações do professor vai para o brejo. Muitas vezes, precisa faltar à escola pelo mal-estar. Em última instância, ela pode morrer em uma crise dessas.
Por esse motivo, segundo o professor Ruy Lyra, as famílias nunca deixam o filho na escola sossegadas — aliás, nem em casa. "Com frequência, as mães largam o emprego para monitorar a glicose da criança", diz ele. "Já se o paciente fosse considerado pessoa com deficiência, ele poderia receber sensores capazes de enviar a informação sobre a sua glicemia para o celular dos pais, que conseguiriam fazer o monitoramento à distância", explica.
Hoje o SUS entrega ao paciente com diabetes o glicosímetro convencional, aquele que mede a glicose a partir de uma gotinha de sangue tirada da ponta do dedo. Também oferece fitas para serem usadas nesse aparelhinho e insulina humana. Logo mais, disponibilizará análogos de insulina, moléculas que se encaixam em nossas células como se fossem o hormônio. "Isso, aliás, é uma vitória, porque esses análogos diminuem o risco de hipoglicemia noturna", reconhece o presidente da SBD, referindo-se ao quadro em que a glicose cai durante o sono, outro pesadelo para os pais.
Diabetes tipo 1 no mercado de trabalho
Um outro apelo para que a pessoa com diabetes tipo 1 seja equiparada em direitos a quem tem deficiência é este: o preconceito. "Se, na escola, a criança é apontada pelos colegas pelos momentos em que passa mal, quando ela cresce e chega ao mercado de trabalho, muitas vezes a porta se fecha", observa Ruy Lyra.
Na percepção do médico, na disputa por uma vaga o empregador tende a preferir quem não tem diabetes tipo 1 pela fama de que a doença vá ocasionar faltas e problemas no desempenho. Ameaça, diga-se, real no caso dos menos favorecidos do ponto de vista socioeconômico, sem sensores para fazer uma medição constante.
Mas o objetivo, nesse ponto, é aumentar a competitividade; "Se forem consideradas pessoas com deficiência, elas irão concorrer no nicho da cota com outros indivíduos com questões de saúde, ficando tudo mais justo", pensa o professor Ruy Lyra.
O médico ainda frisa o seguinte: pessoas com deficiência têm acesso a centros especializados no sistema público de saúde. Ou seja, no caso o paciente seria atendido por um endocrinologista. "Um clínico pode dar conta de alguém com diabetes tipo 2. Mas as oscilações da glicemia são drásticas no tipo 1, mesmo se o indivíduo faz tudo corretamente. Por isso, ele sempre deveria ser acompanhado por um especialista em hormônios, o que não está garantido hoje", nota.
Dois problemas sérios de interpretação
Ao contrário da mais uma justificativa do presidente Lula ao veto, ao escrever que "a proposição contraria o interesse público ao classificar o diabetes mellitus tipo 1 como deficiência sem considerar a avaliação biopsicossocial", o projeto de lei coloca essa exigência desde o início.
"Não queremos tratar os desiguais de forma igual. Há uma avaliação e quem tem dinheiro para investir em sensores, glicosímetros e atendimento especializado não seria beneficiado. Apenas pessoas com diabetes tipo 1 sem recursos financeiros seriam consideradas com deficiência", explica o presidente da SBD. Vale esclarecer: é assim em qualquer condição para alguém se enquadrar no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
O presidente Lula declarou, ainda, "que o projeto cria uma despesa obrigatória sem apresentar uma fonte financeira". O professor Lyra, porém, observa que a análise na qual Lula baseou o seu veto considerou 600 mil pacientes com diabetes do tipo 1 no Brasil. É a estimativa. No entanto, feito o corte dos mais endinheirados e dos que já recebem benefício do governo -- porque tiveram pés amputados como decorrência da doença descontrolada, por exemplo -- sobram apenas 28 mil indivíduos. A lei seria para eles.
"Além disso, a literatura é pródiga em estudos provando que, quando o paciente com diabetes tipo 1 tem condições para controlar sua glicemia e é assistido por especialistas, há uma enorme economia em internações e no custo do tratamento de complicações", assegura o médico. Ou seja, essa conta seria paga fácil.
Países que fizeram esse cálculo não hesitaram e criaram leis para equiparar o diabetes tipo 1 a uma deficiência há bom tempo. Entre eles, Inglaterra, Estados Unidos, Finlândia, França, Canadá, Chile e Colômbia. Aqui, agora, para que o veto presidencial seja derrubado, será necessária maioria absoluta dos votos de deputados federais e senadores, em sessão que será marcada sabe Deus quando.
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