Como 'redes antissociais' minam nossa sanidade -- e o papel da IA nisso
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Aqueles que estudam as redes sociais vêm apontando fatores importantes para uma série de novas dificuldades, como mediar argumentos, regular afetos e verificar fatos. Ali, onde incorporamos os algoritmos "inconscientemente", muitos passaram a chamar de "redes antissociais". E isso vem causando prejuízos no campo do sofrimento psíquico.
O ambiente digital não é inteiramente tóxico. Mas, vemos grandes empresas controlando, com pouco transparência, as regras de distribuição de mensagens e monetizando em cima de ódio e notícias falsas e formando "condomínios digitais", administrados por seus síndicos de plantão.
Nesse cenário, as genericamente chamadas "fake news", com sua retórica de manipulação dos afetos, seus cortes espetaculares e suas narrativas de conspiração, nunca encontraram adversário à altura.
Para conter o discurso de ódio, foram feitas proibições massivas e criados centros de checagem, ainda que todos pressentissem tratar-se de recursos paliativos. Mas a regulação das redes sociais está começando, com alguns exemplos de boas práticas no uso de dados, no direito ao esquecimento e na proteção contra abusos de poder digital.
Popular x científico
Escutar pessoas comuns (ordinary people) é dever de todo pensador. Isso amplia pontos de vista, demanda discursos de inclusão, estimula a mediação do saber e promove boa divulgação científica.
Críticas certeiras que partem do bom senso nos fazem reavaliar questões e nos reposicionam sobre um assunto. É o caso daquela boa pergunta feita por um aluno ou iniciante.
Falei sobre isso nas últimas colunas, a partir dos trabalhos de Jonathan Haidt e Anna Lembke, e venho conduzindo, há muitos anos, uma experiência própria, no Canal Falando Nisso, de aproximar o erudito e técnico, de natureza científica ou universitária, do saber popular, que passa pela educação informal, pelo livre-pensar e o senso comum.
Mas o oposto também é verdadeiro. No chamado efeito Dunning Kruger*, pessoas com pouco estudo ou versão muito parcial de um assunto têm mais convicção e confundem a crença pessoal com a verdade.
Quanto menos sabe mais acha que sabe e mais tende a menosprezar aqueles que se dedicam profissionalmente àquele saber.
É longo o caminho que vai da alta cultura institucional, com seus artigos e congressos, convencionalidades e operacionalidades, até o não especialista. Necessariamente gera ambiguidades e mal-entendidos.
Afinal, nem toda complexidade do léxico científico, com seus conceitos específicos e longa história da disciplina, vem do desejo de excluir. Nem toda elite intelectual ou profissional de uma área implica atitude de classe superior, com língua exclusiva e códigos excludentes.
Crítica científica x Liberdade de opinião
Mas o discurso nas redes antissociais se aproveitou disso para propagar uma relação binária de derrogação ou alienação aos saberes institucionais. A corrupção cognitiva, que já devastou configurações políticas, acadêmicas e discursivas, se escora, muitas vezes, na crítica ao atraso das instituições.
Isso torna difícil transmitir algo essencial ao espírito científico: a capacidade de se manter em dúvida produtiva sobre um assunto.
Não é uma surpresa que na psicologia clínica este espaço de indeterminação e construção de diálogos rapidamente tenha sido parasitados por "falsos especialistas", interessados em vender cursos, diagnósticos, carteirinhas, kits e fórmulas e formações de todo tipo.
Ninguém precisa ser especialista para opinar, mas o que dizer de alguém que amealha centenas ou milhares de seguidores, sem qualquer formação específica, dirigindo seu público para compreensões falsas, temerárias ou deletérias sobre o sofrimento psíquico?
O que dizer de alguém que se apresenta, sem qualquer currículo ou qualificação, como "empresário do TDAH" (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade)?
Quando um grupo se volta contra os dispositivos democráticos que tornaram sua opinião possível, ele deve ser confrontado pela autoridade.
Um exemplo é usar a liberdade de expressão para defender opiniões que vão contra os dispositivos que garantem a liberdade de expressão.
Isso leva ao paradoxo de que qualquer um pode falar o que quiser, menos dizer que o outro está errado e que seu erro pode prejudicar outras pessoas. Foi o que aconteceu recentemente quando duas cientistas foram condenadas por criticar uma influenciadora que afirmou que havia relação entre vermes e diabete.
Um claro desserviço à saúde pública, à ciência e à civilidade do debate apoiado pela desinteligência jurídica.
A IA veio nos salvar?
Eis que surge no horizonte a inteligência artificial (IA). Será que ela é capaz de servir como posição terceira e nos despertar alguma esperança de regulação? Poderia ajudar a mediar debates binários e reduzir falsas equivalências entre opinião, crença e conteúdo especializado?
Sendo cada inteligência artificial treinada por seu dono, seria ela capaz de traduzir as controvérsias entre coaches e professores, além de reintroduzir e sustentar o alongamento do debate?
Esta enciclopédia coletiva chamada Wikipedia poderia fazer esta mediação. Especialmente na versão em inglês, ela costuma trazer boas introduções aos tópicos mais intrincados da ciência, mostrando consensos e dissensos básicos.
Mas as Desinteligências Naturais podem ser tão arrogantes quanto os especialistas universitários que pretendem criticar.
A retórica dos coaches apoia-se fortemente no extremismo e repudia qualquer autoridade que se pretenda imparcial. Daí o risco da IA se tornar a "sua" ou a "minha" IA.
Na retórica do "empresário do sofrimento mental", tudo se resolve pelo "quem é mais homem" ou quem "junta mais artigos científicos".
Quando a Desinteligência Artificial se articula com as Redes Antissociais, a lógica da equivalência geral dos saberes vence. E uma "cadeirada" vale tanto quanto uma "carteirada".
* Kruger J, Dunning D. Unskilled and unaware of it: how difficulties in recognizing one's own incompetence lead to inflated self-assessments. J Pers Soc Psychol. 1999 Dec;77(6):1121-34.
16 comentários
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Roberto David Martinez Garcia
A nossa sanidade não, a deles (os que dão bola às redes "antissociais"). Eu estou ótimo.
Ricardo Santa Maria Marins
Quando a construção imaginária se transforma em individualidade e autonomia coletiva, sem perceber estamos abandonando nossa liberdade e trocando-a por uma tutela que no universo em I.A., será comandada por alguns humanos em postos chaves e que direcionarão nossos comportamentos. Essa modelagem situacional se ocorrer SEM LIMITES bem definidos e a todos muito clara, compreensível e transparente levará a sucessiva perda de humanidade entre os humanos. A construção imaginária coletiva, contém os símbolos que agregam pessoas e aí está a problemática. Se essa construção for científica com pessoas evoluindo em inteligência e cultura muito bom. Mas se for, para obliterar raciocínios e ampliar o imaginário sem fundamentos lógicos e científicos será deletéria e destruidora. Nossa sociedade brasileira vive esse dilema hoje.
Ricardo Santa Maria Marins
A maneira como será solucionado o imbróglio jurídico que envolve o X, Starlink e SpaceX, pelo STF, poderá sinalizar ao Congresso Nacional, instituição completamente OMISSA e IRRESPONSÁVEL, que precisa trabalhar seriamente e dar os contornos legais e o recheio legal em proteção à Segurança Nacional do Brasil. que hoje demonstra-se frágil e sem qualquer ação no sentido preventivo. O GRUPO do MUSK, vai enveredar com apetite no modelo I.A., promovendo crescimento exponencial dessa tecnologia. O que preocupa num primeiro momento é sua maneira de pensar desonesta e ditadora. Num segundo momento é que esse crescimento exponencial poderá trazer ao Brasil, perda de sua capacidade em soberania, autonomia, induzir via redes sociais um caminhar tipo manada coletiva reativa, que já acontece hoje. Portanto, há necessidade de autorregulação, regulamentação e gerar instrumentos que permitam o rastreamento em tempo real. Pessoas. empresas e governos. segue...