Psicanálise decolonial: é preciso um debate sobre perspectivismo indígena
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Há quase vinte anos, iniciamos no Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP um levantamento de críticas à psicanálise, feitas por filósofos e cientistas, para transformar nossas práticas. Um dos pontos mais importantes tem sido a mobilização pelo pensamento decolonial brasileiro —sistematizado por Eduardo Viveiros de Castro, Tania Stolze e muitos outros a partir do pensamento amazônico das populações ameríndias.
Recentemente, a Revista Contemporânea da Ufscar (Universidade Federal de São Carlos) se dedicou ao pensamento indígena, à psicanálise e à crítica da modernidade com um ótimo apanhado das discussão sobre o impacto do pensamento perspectivista nos métodos de pesquisa e procedimentos clínicos.
O pensamento perspectivista sustenta que há apenas um ponto de vista, compartilhado por humanos, inumanos, seres presentes e ausentes, que disputam diferentes mundos. É uma virada em relação ao naturalismo clássico, que enxerga um mundo (ontologia) fixo (único, objetivo e universal) onde incidem vários pontos de vista (epistemologia).
Por exemplo, diante da crise ecológica, o naturalismo divide ou soma os pontos de vista —da religião ou ciência, da biologia ou física. Já os perspectivistas perguntam: Qual mundo virá a acontecer? Qual mundo estamos criando?
Esse método, chamado equivocação controlada, transforma o pesquisador em um diplomata e intérprete, fluente em múltiplos mundos. Sua tarefa é comparar diferenças e equívocos que surgem da interpenetração de realidades distintas.
E como diferenciar a leitura por equivocação de uma leitura equivocada (mal-intencionada, imprecisa ou falsa)?
O perspectivista —que não é relativista, mas relacional— tem como desafio de incorporar os saberes e as práticas dos povos originários sem distorcê-los, corrompê-los ou apropriar-se indevidamente deles.
No artigo "Narcisismo Ontológico e Etnocídio na Área Psi" (2024) da revista, a terapeuta junguiana e professora de antropologia Amnéris Maroni, da Unicamp, acusa os psicanalistas assassinarem os saberes dos povos originários (etnocídio) ao ficarem enclausurados no naturalismo clássico.
Segundo ela, meu texto 'Mal-Estar, Sofrimento e Sintoma' (2005) associa "a ontologia animista à diagnóstica da psicopatologia moderna", tornando, nas palavras dela, o modo de existir dos indígenas irrelevante, resíduo no diagnóstico moderno e uma explicação para a psicose.
Defendo o contrário: que a psicopatologia moderna, não só a psicose, apoia-se excessivamente em estratégias naturalistas e totemistas. A afirmação correta teria sido: "o autor tenta criticar e refazer a razão diagnóstica moderna, inclusive a da psicanálise, baseando-se no perspectivismo ameríndio".
Segundo Maroni, a psicanálise não se atualizou nem revisou as teses de totem e tabu —que o próprio Lévi-Strauss criticou em seus primeiros trabalhos sobre o totemismo. Mas ela critica o volume "Antropologia e Psicanálise", de 2013, ignorando trabalho posterir de 2020, chamado "Psicanálise e Antropologia", do qual participei com meu aluno João Felipe Domiciano.
Ali estão vários textos criticando a hierarquia dos saberes, presente em Freud, que coloca no nível mais baixo o animismo (como análogo do infantil e psicótico), depois o totemismo e no topo o pensamento da ciência.
Maroni aponta ainda uma "impertinência da aplicação das metodologias psicanalíticas às ciências sociais".
Não é a primeira vez que uma forma de pensamento questiona o princípio de identidade. Dá para considerar o pensamento ameríndio a partir de análogos imperfeitos, como a indeterminação ontológica, em filosofia, ou o conceito psicanalítico de real, em Lacan — capturando "elementos da metafísica canibal para incorporá-las a metafísica moderna".
Freud inaugurou uma longa tradição de importar conceitos antropológicos para a psicanálise —como a noção de narcisismo das pequenas diferenças.
Não se trata de aplicar o método psicanalítico às ciências sociais, mas de desdobrar o método estrutural da teoria social crítica na teoria psicanalítica.
É curioso que uma teoria que foi sistematicamente interpretada com crítica da modernidade seja agora usada para criticar "UM metafísico" ou "autodeterminação ontológica" (aplicado às ideias e não aos povos).
Essa abordagem ignora que a modernidade tem múltiplos ramos, muitos deles autocríticos. Proclama que Lacan é moderno, mas Deleuze e Guattari não são. Que Freud seria etnocida e narcisista, enquanto Jung e sua teoria da individuação nasceriam já pós ou pré-modernos.
Trata-se de uma política que não segue o "léxico" ou a "vocalização" original dos povos originários, apesar de pretender falar por eles.
Como se o autêntico decolonial fosse um ventríloquo com certificado de representatividade — e não um diplomata entre mundos, um tradutor-traidor.
Há uma contradição performativa quando ela diz que os psicanalistas, diante do racismo e especismo, preferem "exercer a negação da crítica canibal dirigida à metafísica moderna" e que a psicanálise moderna padece de "narcisismo ontológico".
Ela patologiza o saber que contesta, usando os termos "modernos" —"metafísica", "narcisismo" e "ontologia"— em vez de recorrer a expressões nativas, como deveria se fosse coerente.
Também confunde autodeterminação das ideias (mais alinhada ao pensamento hegeliano) com a determinação política dos povos, num exemplo de equivocação não controlada.
"Com o propósito de conferir uma existência anti-condominial aos ameríndios, o autor recusou reconhecer o principal: a metafísica canibal é uma metafísica contra o Estado e assubjetiva”, diz.
Critiquei o condomínio, como uma estrutura gerada pela omissão do Estado, como acontece nas prisão ou em comunidades afaveladas. Isso inclui, historicamente, o apresamento de terras indígenas não demarcadas e a ideologia de que a Amazônia é uma terra vazia a ser ocupada.
Dizer que a ontologia ameríndia é contra o Estado não significa ignorá-lo — afinal, queremos que ele reconheça e demarque as terras indígenas.
Isso também vale para a ideia de que a cosmovisão ameríndia recusa a subjetivação. Não é tratar indígenas como não-sujeitos a serem tutelados, mas repensar o conceito de sujeito, não como indivíduo reflexivo e transparente — como explorei com Pedro Lopes no dossiê.
Citar dois autores franceses do pós-estruturalismo, Deleuze e Guatarri, para advogar a pertinência do saber decolonial é outra contradição. Seguindo essa linha, quando Viveiros de Castro chama a cosmologia ameríndia de metafísica, ele pratica "dominação ontológica" e predação do saber —pois metafísica não é uma expressão indígena.
Quem estaria praticando extrativismo intelectual? Aqueles que, para proteger contra o etnocídio-narcísico, se fazem embaixadores e síndicos dos povos originários ou quem pretende trazer o perspectivismo ameríndio para o debate clínico e intelectual, como forma de vida e vigorosa alternativa metafísica e política?
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