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Opinião

'Babygirl': o masoquismo feminino é uma fantasia só dos homens?

O personagem de Antonio Banderas é um talentoso diretor de teatro que flagra sua esposa, interpretada por Nicole Kidman, com o jovem garboso vivido por Harris Dickinson. Ela é a chefe suprema da companhia, ele um estagiário júnior. O marido está inconformado com o que vê, mesmo ela tendo confessado o caso e sua "fantasia sombria": a submissão.

Durante muito tempo, ela lutou para se livrar do desejo e associo-o à uma terrível infância. Fez todas as terapias, mas nada adiantou. Ela disse ao marido de várias maneiras, pediu variações sexuais que ele não acompanhava, falou que nunca tinha tido um orgasmo com ele. Masturbava-se com filmes pornôs, meio pedofílicos, meio masoquistas, que vez ou outra queria dividir com ele.

Assim como no divã, na cama, nada avançou. Ela continuava com suas performances magistrais, para ele, seguidas de satisfação solitária.

Na cena derradeira, o marido declara durante uma briga: o masoquismo feminino é uma fantasia dos homens. De modo calmo, professoral e esclarecedor, o amante rebate: você está enganado. Essa é uma teoria sexual ultrapassada.

O filme "Babygirl" é uma produção conceitualmente europeia, dirigida por Halina Reijn, mas rodada em New York, com atores norte-americanos. O plot não é muito original, retomando os filmes de Adrian Lyne como 9½ Semanas de Amor (1986), Proposta Indecente (1993) e Lolita (1997). Mas agora a trama da mulher poderosa que tem fantasias de dominação é abordada por uma diretora.

Erotizar a vida profissional requer talento

Frequentemente encontramos pessoas que erotizam sua vida profissional, encontrando nisso uma energia motivacional "adicional". As vidas pessoal e profissional adquirem um canal de continuidade. Mas, como o do Panamá ou de Suez, não se constrói um canal sem riscos, exploração e perdas.

Pode ser injusto comparar quem atua em tempo integral com sua banda libidinal laboral e quem separa, a duras custas, a vida penosa e sem sentido do trabalho da vida realmente interessante e sexualmente investida, depois do trabalho.

É como avaliar Clark Kent como repórter, que faz seu trabalho de modo atrapalhado, tímido e meio forçado, diante do Super-Homem que ele vira fora do trabalho. Ou com comparar a Mulher Maravilha, no trabalho, como a Mulher Elástico, na família, e a Mulher Invisível, na cama.

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Mas os riscos deste dopping erótico não são pequenos. A aptidão para praticar este esporte não é para todos, pois depende de certas fantasias inconscientes.

Para ser um bom especialista em marketing e comunicação, é desejável uma pitada de bipolaridade (com prevalência no polo hipomaníaco).

Para exercer o poder no trabalho, é preciso certo grau de masoquismo, narcisismo ou fetichismo.

Ora, as práticas neoliberais de desempenho, avaliação e identificação exploram isso de modo metódico, desde o processo seletivo até o momento de "descontinuar a relação de colaboração" (urgh!).

Tudo isso é banal na clínica psicanalítica, mas "Babygirl" traz um percurso e um momento histórico.

Em 1924, Freud publicou um artigo confuso (1) defendendo que o masoquismo podia ser dividido em três tipos básicos: erógeno, moral e feminino.

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  • O masoquismo erógeno se apresentaria de forma evidente em pacientes fetichistas, nos quais o prazer tem como condição a dor, o sofrimento e a humilhação.
  • O masoquismo moral é aquele que acontece quando o Eu se amolda para atender a exigências infinitas, intransigentes e culposas do Supereu.
  • O masoquismo feminino, longe de acontecer só em mulheres, estaria relacionado à passividade radical associada ao prazer e ao retorno da agressividade contra si, servindo à dessexualização.

Mulheres também fantasiam

É esse expurgo da sexualidade que leva à negação brutal da sexualidade infiltrada no exercício de poder e autoridade e também nas situações de purificação moral e de amorosidade terna.

Por exemplo, aquele devoto convicto que tem pensamento eróticos quando contempla o sofrimento de Jesus pregado em sua cruz. Ou aquele funcionário padrão, insípido, inodoro e incolor, cuja paixão pelo subalterno se transforma em exercício sádico ou masoquista. Ou aquela pessoa que encontra na eficiência laboral a admiração, geralmente de subalternos, que não encontra mais no casamento.

Esta teoria foi fortemente repudiada pelo feminismo, porque parecia soldar a fantasia masoquista na mulher, naturalizando ou patologizando, a situações de abuso e extrapolação do poder "laboral" para o poder "sexual".

É daqui que o marido de Babygirl tirou a convicção de que o masoquismo feminino é uma fantasia dos homens.

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Pois eles sonham com mulheres que gozam infinitamente com sua crueldade, quando não com sua "infantilidade e folga". No fundo, são rituais de reafirmação, ativados quando seu narcisismo entra em crise.

Mas a resposta do jovem garanhão recupera o básica do conceito: mulheres também podem fantasiar serem dominadas, humilhadas e submetidas sem que isso signifique uma posição de inferioridade na vida laboral, familiar ou social.

Muitas vezes, estas fantasias são particularmente negadas.

Fantasias não se curam, como nossa protagonista parecia querer fazer. Fantasias se constroem ou se atravessam. Elas podem ganhar ou perder força, podem ser praticadas de inúmeras formas. Elas podem se ligar com padrões de fixação libidinal (oral, fálico, anal, visual etc), mas não podem ser eliminadas ou convertidas em outras fantasias.

Não dá para adaptar ao que achamos que os outros esperam de nós.

Tentar curar uma fantasia é o erro clínico básico daqueles que durante séculos quiseram curar a homossexualidade.

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Fantasias são como brinquedos que levamos vida afora: ou encontramos um lugar para que elas nos divirtam ou elas farão peso na bagagem, empobrecendo nossa vida libidinal.

Realizar fantasias que "tomam conta" da gente é particularmente doloroso para aqueles que têm uma fixação em controlar processos, pessoas, afetos e relações, como esperamos de nossos líderes.

Pense em como deve ser chato "ter que decidir" tudo em todas as áreas da sua vida. Não seria razoável que, em algum lugar, uma pessoa assim deseje ser mandada? Só obedecer, nem que seja uma vez na vida.

A reaparição da tese psicanalítica é absolutamente compatível com a emergência de uma nova "moralidade Trump", que, para uns, soa como a abertura dos portões do sadismo e, para outros, como a imposição compulsória de fantasias masoquistas.

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1. Freud, S. (1924) O Problema econômico do masoquismo. In Metapsicologia. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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