David Lynch: cineasta das águas profundas e de ideias como peixes bizarros

"Ideias são como peixes", disse David Lynch. "Se você quiser pescar peixes pequenos, pode ficar na água rasa. Mas se quiser pescar o peixe grande, você tem que ir mais fundo. Lá no fundo, os peixes são mais poderosos e mais puros. São enormes e abstratos. E são muito bonitos."
Curiosamente, não foi em um filme, mas em um livro, que o diretor, que foi pintor antes de ser cineasta, resumiu tão bem seu cinema. Seus filmes sempre foram esses peixões coloridos, estranhos, com um olho meio esbugalhado, outro transparente e elétrico, outro opaco e esquisito. Uns assustadores e impossíveis de se pescar e outros mais fáceis de se aproximar. Mas jamais sem graça, jamais entediantes.
A frase acima o próprio cineasta norte-americano escreveu em "Catching the Big Fish" (Pescando o Peixe Grande, em tradução livre), ou "Em Águas Profundas - Criatividade e Meditação", como o livro se chama no Brasil.

No livro, um dos maiores cineastas já existentes quis dividir com os leitores e seus fãs seu processo criativo. Lynch, que praticava meditação transcendental, veio ao Brasil, com membros de sua fundação, a Lynch Foundation, em 2008, lançar o livro em que ele conta como e de onde vêm suas ideias, se é que é possível explicar isso.
Mas principalmente, no livro ele tratava de contar como ele nunca tinha medo e nós não devemos ter, de mergulhar fundo em tudo, sair do raso, do medíocre e pegar aquele peixão que queremos.
Lynch nunca teve medo de mergulhar, sem tanque de oxigênio, fundo em seu subconsciente para trazer à tona nossos lados mais sombrios, fascinantes, horrendos, contraditórios, estranhos, mas tão humanos e fascinantes.
Talvez seja a humanidade por trás de toda aparente bizarrice o que realmente faz do cinema de Lynch algo assustador. Afinal, filmes com trilhas bizarras, caras e bocas, suspense e nonsense há aos montes. Algo que há de genial no cinema lynchiano é sua capacidade de contar para nós o que nós mesmos temos medo de nos dizer.
Aquele desejo que escondemos atrás de um sorriso amarelo, a hipocrisia atrás de um olhar de viés. Aquela pulsão de morte escondida atrás de um mero bom dia no trabalho. Aquela raiva escamoteada atrás de um despretensioso boa noite que damos ao vizinho.
Lynch não tinha medo de ter essas ideias, ou pensamentos intrusivos, e, mais, de escrever sobre eles em seus roteiros, de filmar e de projetar na tela grande algo que temos muitas vezes vergonha, repulsa, medo, nojo.
A lista de sensações é imensa quando se fala de obras como "Eraserhead" (1997), "Homem Elefante"(1980), "Twin Peaks" (1990), "Coração Selvagem" (1990), "Estrada Perdida" (1997), "Mulholland Drive - Cidade dos Sonhos" (2001), "Império dos Sonhos" (2006), entre tantas outras.
A palavra gênio não deve ser jamais banalizada, mas para Lynch ela deve ser usada em letras garrafais. Gênio. Mas não por oferecer às plateias experiências mais satisfatórias, lineares, em que tudo se encaixa como numa caixinha de música.
Seu cinema era muitas vezes dissonante, quase como a música concreta, cheio de arestas, notas até fora do tom, incômodo, mas sempre instigante. Não há um que fique indiferente diante de Isabella Rossellini em "Veludo Azul".
Ninguém sai ileso de uma sessão de "Mulholland Drive". Há quem esteja até hoje tentando explicar a relação entre Betty (Naomi Watts) e Rita (Laura Harring) e seus sonhos de brilhar em Los Angeles, a cidade dos sonhos e das ilusões.
Para trazer à tona seus peixões, suas ideias e nosso inconsciente coletivo, o mestre do suspense psicológico mergulhou fundo no horror, no surrealismo pós-moderno e investiu sempre em um desenho de som e em trilhas sonoras que funcionam como personagens.
A atmosfera sempre foi crucial em seu cinema. "Twin Peaks" que ele lançou em 2017 no Festival de Cannes, 25 anos após o original revolucionar o gênero policial na TV, era tão esdrúxulo e surreal que muitos chamaram de impenetrável.
Bastava ter mergulhado de olhos fechados e abrir só lá, no fundo, de uma trama que brinca com nossa noção de tempo e espaço. Andrei Tarkovski, outro gênio do cinema, também escreveu um livro sobre seu cinema e o processo criativo.
"Esculpir o Tempo" trata justamente de como contar histórias, fazer cinema, é esculpir as histórias, ideias e o tempo. Pois Lynch também esculpiu o tempo como poucos. Mais que esculpir, ele bagunçou nossa noção de tempo, de presente, passado, futuro, realidade e sonho (ou pesadelo).
"Estrada Perdida" (1997), Lynch brinca até mesmo com a noção de quem somos ao fazer com que o saxofonista Fred (Bill Pullman), após ser preso, acusado de matar sua mulher, acorde um dia no corpo de um jovem mecânico.
Obviamente que quando queria, Lynch fazia, sim, filmes mais clássicos, humanistas, como "História Real" (1999), que conta a história, baseada em fatos reais, de Alvin Straight, um senhor de 73 anos que percorreu quase 400 quilômetros de estrada nos Estados Unidos a bordo de um cortador de gramas para visitar seu irmão que havia tido um derrame.
O roteiro do filme é linear como a trajetória de Alvin, mas nem por isso simplista. É honesto e emocionante, um dos filmes menos lembrados do cineasta, que com "Homem Elefante" também contou outra história real com simplicidade, mas nem por isso menos sofisticação.
"Homem Elefante", que teve oito indicações ao Oscar, incluindo melhor diretor, é uma pequena joia. Ainda que mais conhecido por seu cinema de estranheza e sonhos, ele não era como Federico Fellini, que anotava e desenhava os sonhos quando acordava.
Lynch sonhava acordado mesmo e dizia que não se lembrava muito de seus sonhos, mas sim que eles iam se revelando em seus sets. De fato. Muito por isso, às vezes o que vemos é um pesadelo, como o de Fred em "Estrada Perdida".
Ainda assim, nunca foi exatamente um cinema de horror. Seria reducionista rotulá-lo assim. O horror em Lynch é a sensação de que algo está fora do lugar, que pensamentos intrusivos penetram nossa mente e a tela do cinema.

E quase ganham corpo em 3D saindo para nos assombrar, feito seus personagens bizarros. Um dos mais queridos e até engraçados? A Mulher do Tronco de "Twin Peaks". O que é a mulher que carrega um pedaço de madeira como se fosse um bebê?
Catherine Coulson, a Mulher do Tronco e parceira de trabalhos e amiga do cineasta, conversava com o tronco e pedia que outros, como o agente especial Cooper (Kyle MacLachlan) também fizesse perguntas ao "bebê".
Lynch, com seu humor peculiar de sempre, dizia que ela era a pessoa mais normal da série. Recentemente, em 2020, inventou o programa "What Is David Working on Today?", disponível no YouTube, em que explicava os projetos em madeira que estava construindo, como um suporte para seu telefone celular, que serviria de câmera em um projeto, um urinol, uma casinha, uma pia.
Documentou também em "Interview Projetct" (Projeto Entrevista) tipos e personagens muito reais, mas muitas vezes tão bizarros quantos os de suas ficções, dos EUA. Com interesse genuíno, ouvia as pessoas sobre suas vidas, trabalho e, claro, sonhos.
Em seu universo de personagens reais ou ficcionais - muitas vezes esquisitos e demasiadamente humanos, que desafiam a ordem vigente, o bom gosto e os chamados bons costume - o bizarro muitas vezes é a regra e o normal é não se encaixar em um status quo que nos enquadra e limita à superficialidade.
Viva David Lynch, suas ideias e seus bizarros e grandes peixes das fossas abissais da mente humana!
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