Flavia Guerra

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Opinião

'Baby' é a prova de que existe desejos, amores e famílias possíveis em SP

"Baby" é um drama, que por vezes é melodrama, que trata de desejo, mas também de amor, de seres solitários em uma São Paulo que engole, mas também acolhe, em que famílias nada convencionais, mas reais, são formadas para que a vida seja possível e até mesmo bonita. É o segundo longa de Marcelo Caetano (de "Corpo Elétrico") e traz seu olhar cheio de afeto e desejo pela vida de quem está à margem, mesmo vivendo no centro da maior e, talvez, com muita controvérsia e citando Caetano Veloso, na "melhor cidade da América do Sul".

No entanto, para falar de "Baby" é preciso falar de desejo. Escrito por Marcelo Caetano e Gabriel Domingues, o filme acompanha a jornada de Wellington (João Pedro Mariano), o Baby, um jovem que acaba de completar 18 anos e de sair da Fundação Casa. De volta ao apartamento em que morava com os pais, no centro de São Paulo, descobre que está vazio e que se mudaram sem deixar nem mesmo o endereço.

Enquanto anda pelas ruas da cidade com amigos que fazem voguing em ônibus para ganhar uns trocos, acaba parando em um cinema pornô da região central. Lá, ele conhece Ronaldo (Ricardo Teodoro), um garoto de programa que atende os clientes do local. Mais velho e experiente, Ronaldo acolhe Wellington, mas também o controla, pois o introduz tanto nos programas quanto nas entregas que faz para um traficante local.

É aí que entra o desejo em cena. Há desejo, cuidado e poder na relação dos dois. Talvez haja até mesmo amor. Não necessariamente o amor romântico ideal, mas, sim, como em um bom melodrama, um amor torto, desencontrado, mas palpável. Baby encontra em Ronaldo um porto seguro, mas a relação entre os dois também traz perigos.

Em conversa com Splash, Marcelo Caetano falou de referências como o cinema de Pedro Almodóvar e Wong Kar Wai, dois cineastas que sempre pisaram firme no terreno do melodrama, mas sempre com muito estilo em filmes com atmosferas únicas. "Tem uma frase muito interessante dele (Almodóvar) sobre 'Lei do Desejo' (filme de 1987), que traz dois homens com uma diferença de idade, um diretor de cinema e um ator. E perguntaram para ele o que é a lei do desejo. Ele falou: 'A lei do desejo é que dois corpos que se encontram nem sempre vão se amar no mesmo momento, na mesma hora, no mesmo lugar'."

João Pedro Marianio (Baby) e Ricardo Teodoro (Ronaldo) em cena do filme "Baby", de Marcelo Caetano
João Pedro Marianio (Baby) e Ricardo Teodoro (Ronaldo) em cena do filme "Baby", de Marcelo Caetano Imagem: Divulgação

É esse desencontro que também une Ronaldo e Baby. Eles se encontram, amam-se a seu modo e se desejam, mas não necessariamente juntos. "Então pode ser que eles se amem no início e um deixe de amar quando o outro começa a amar. E eu achei bonito. A lei do desejo talvez seja isso. Talvez exista o amor ali, exista intensidade, exista desejo. Mas desencontrou, temporalmente desencontrou", completou Caetano.

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"Eu, Ricardo, acho que uma história de amor. Isso porque os personagens não pensam como o diretor, eles vão viver a vida. Então, se você parar para pensar naquela cena que o Ronaldo chega com o Baby em de casa e eles estão tocando violão, eles jamais vão parar e pensar que aquilo não vai dar certo. A gente nunca sabe o que vai acontecer", comentou o ator.

"Toda história de amor que aparece na nossa vida a gente sempre acha que vai ser para sempre. Talvez seja nossa grande utopia. Eu acho que eles vivem nesse lugar. Eu como ator, sempre encarei dessa forma. Nosso diretor está vendo a obra inteira, entendeu? Mas eu como ator, essa cena, eu estou apaixonado", completou.

Bruna Linzmeyer, Ana Flavia Cavalcanti, Ricardo Teodoro e João Pedro Mariano: uma família não convencional, mas possível, em "Baby"
Bruna Linzmeyer, Ana Flavia Cavalcanti, Ricardo Teodoro e João Pedro Mariano: uma família não convencional, mas possível, em "Baby" Imagem: Divulgação

Ainda que o desejo esteja em pauta em "Baby" —e não somente o carnal, mas o desejo pela vida, a gana de encontrar seu caminho que o jovem Wellington tem—, "Baby", o filme, fala também das famílias que formamos ao longo da vida e do afeto que torna possível a vida em grandes cidades.

Ronaldo, a priori, parece apenas estar à deriva em uma São Paulo periférica, ainda que central (uma das grandes ironias da metrópole que marginaliza seu próprio centro), mas ele também trabalha para ajudar a criar seu filho adolescente, que mora com sua ex, Priscila (Ana Flavia Cavalcanti) e Jana (Bruna Linzmeyer), que são casadas. Ronaldo leva Baby à seu núcleo familiar, que acaba acolhendo também o jovem e uma relação de afeto nasce naturalmente. A casa de Priscila e Jana se torna um lugar seguro para Baby, um lar postiço, mas em que há, como em toda família, amor e limite.

Por tudo isso, ainda que Ricardo Teodoro veja a história de Ronaldo e Baby como uma história de amor, que de fato é, à sua maneira, Caetano a vê como uma história de encontro de pessoas muito diferentes. "Eu acho que existe amorosidade, existe o amor. Mas não existe esse amor romântico. Acho que ninguém está ali projetando viver uma vida juntos. É intensidade e, às vezes, até a consciência da efemeridade dessa relação que faz ela tão forte", analisou o diretor.

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De fato, como ele também afirma, um precisa se estruturar e está ainda formando sua personalidade enquanto o outro já tem as marcas da vida, a dureza de quem quer, e precisa, baixar a guarda, mas não sabe como.

"Eles estão ali, juntos, tentando fazer essa coisa acontecer, nessa dificuldade que são as relações de pessoas muito diferentes. E acho que, por isso, o melodrama é uma coisa interessante. Quando eu estava pesquisando o filme, fazendo essa tessitura, eu vi uma realidade muito bruta", concluiu Caetano.

Em "Baby", João Pedro Mariano vive o Centro de São Paulo com suas contradições e afetos
Em "Baby", João Pedro Mariano vive o Centro de São Paulo com suas contradições e afetos Imagem: Divulgação

A realidade bruta chega não só pela natureza de uma sociedade que não acolhe pessoas LGBTQIA+ e seus sonhos, mas também por uma cidade cheia de arestas. Uma mãe que dá colo, mas que é duro e pontiagudo. Caetano, que é mineiro, filma São Paulo, com o olhar de quem sabe ver de fora, mas a conhece em suas entranhas. E vê beleza nesse organismo urbano, que assusta, mas abre portas.

João Pedro, que também é mineiro, comenta: "Acho que vim para São Paulo pra ser gay também, porque tem esse lugar de nós, eu vim para a cidade grande. Lembro quando cheguei... eu olhava tudo com os meus olhos brilhando porque é um grande sonho", comenta ele, que chegou à capital paulista aos 17 para estudar.

"Amo muito esse lugar e amo muito a forma que 'Baby' retrata esse lugar também. Na forma que o filme dá um zoom nessas pessoas. E sinto que também fui uma pessoa que recebeu esses um zoom assim", completou o jovem ator.

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Bruna Linzmeyer, que é catarinense, também se identifica e se encontra no cinema de Caetano. "Sou de uma cidade pequena e vim morar aqui quando tinha 16 anos e quis muito morar aqui. Mas quanta decepção, quanta coisa achei que eu ia conseguir? Não conseguia, sabe? Ao mesmo tempo tinha imenso acolhimento", comenta a atriz.

"Nessa cidade, apesar de ser uma cidade de tanta gente, tanta coisa, um lugar para mim. Encontrei quem eu sou aqui. Eu gosto de quem eu sou e acho que o Marcelo consegue retratar o acolhimento que São Paulo proporciona para a gente que vem de fora, querendo construir um sonho, querendo construir uma vida. Eu vejo isso. Apesar do concreto, apesar do barulho. Tem os afetos", completa.

Ana Flavia Cavalcanti lembra de uma cena do longa em que Baby vai, em companhia das duas, tentar encontrar sua família no interior. "E a tia pergunta assim:"Vocês são da igreja?" Aí eu falo: "Não, a gente é de São Paulo mesmo." E todo mundo ri. Marcelo falou que em todos os lugares as pessoas riem, Não importa o país. Todo mundo sabe o que significa. Ser de São Paulo mesmo já é ser tanta coisa. É uma cidade muito poderosa", relembra a atriz que é de Diadema e cresceu em Atibaia e se formou atriz na capital paulista.

"É dura, mas é uma cidade que favorece a realização de sonhos. Se você tem meta, tem trabalho, tem oportunidade, tem muito carro também, tem muita avenida, tem muito trânsito, muita solidão. Mas tem muitos amigos. E eu acho que o Marcelo encontrou tudo isso porque ele também é um estrangeiro em São Paulo, é apaixonado pelo centro e vive no centro. Esse filme também pode deixar registrada a paixão dele pela arquitetura do Centro. Ele filma de um jeito muito bonito, mostrando e dizendo: "Olha que ele olha esse viaduto, essa galeria."

É esse olhar tão afetuoso, mas não condescendente por São Paulo e seus personagens tão imperfeitos, contraditórios e humanos que faz do cinema de Marcelo Caetano e de "Baby" um cinema dos afetos impalpáveis, mas, ao mesmo tempo, muito concretos.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

1 comentário

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Cesar de Alencar Oliveira Silva

Parece ser muito bom o filme. Vamos ver! 

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