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Opinião

Comer cães e gatos é raridade e na política só alimenta a xenofobia

"Eles estão comendo os cachorros, as pessoas que chegaram, estão comendo os gatos". As acusações do ex-presidente americano Donald Trump ressoaram durante o primeiro debate televisionado em que ele participou com sua adversária, Kamala Harris.

Trump respondia uma pergunta sobre imigração. "Eles estão comendo os animais de estimação das pessoas que vivem lá, e é isso que está acontecendo em nosso país, e é uma vergonha."

"Eles", no caso, eram imigrantes haitianos que se estabeleceram em Springfield, cidade do estado de Ohio, que tem recebido um grande fluxo de estrangeiros vindos do país da América Central.

Durante o debate, Harris ironizou e o moderador David Muir interveio, dizendo que não houve relatos confiáveis.

Mas o estrago já estava feito: nos dias seguintes, as redes sociais foram tomadas com as afirmações de Trump. De um lado, seus defensores, replicando o discurso falso.

Do outro, opositores em posts reprovando suas declarações. Até mesmo restaurantes se aproveitaram da situação, de forma bem humorada, e memes explodiram no X (ex-Twitter), Instagram e outros meios.

Mas há pouco sobre o que rir com relação ao que disse o ex-presidente. Infundadas (a polícia de Springfield negou todas as alegações), as afirmações têm um objetivo muito direto: criar imagens atrozes sobre imigrantes, gerando comoção da opinião pública sobre eles.

Criança espera doração de comida em Porto Príncipe, Haiti
Criança espera doração de comida em Porto Príncipe, Haiti Imagem: Andrew Lichtenstein/Corbis via Getty Images

Estereótipos à mesa

Os imigrantes seriam bárbaros, capazes de entrar no quintal, pegar um gato e comê-lo para se alimentar. Precisamos detê-los, precisamos mantê-los o mais longe possível das nossas casas, impedir que entrem nos nossos países.

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Poucos elementos são tão eficazes para reforçar essas imagens quanto a comida e os hábitos alimentares. O medo e a repulsa pelo que comem os imigrantes têm um efeito histórico importante para gerar xenofobia.

Quando uma população se comporta diferente à mesa, o estereótipo é quase sempre de falta de civilidade, de algo que beira o grotesco, ou até ameaçador. Como podem comer tanto alho? Como assim eles comem com as mãos? Por que se sentam ao chão para fazer uma refeição?

No caso dos imigrantes que comem gatos e cachorros, a imagem quase sempre é atribuída aos asiáticos, como chineses e coreanos, que historicamente foram os povos mais ligados ao consumo desses animais em dietas.

Histórico e, hoje, raro

Na China Antiga, assim como na Coreia, os cães foram parte da dieta por milênios, particularmente em regiões específicas, desde o período Neolítico — restos de cães foram encontrados em sítios arqueológicos na Ásia, frequentemente mostrando sinais de abate para alimentação.

Na América pré-colombiana, alguns grupos indígenas, como os astecas e os maias, também consumiam carne canina. Em alguns casos, algumas raças, como os xoloitzcuintli, que não tinham pelo, eram criados para alimentação por carregarem um significado sagrado.

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 Xoloitzcuintli, o cão adorado pelos astecas
Xoloitzcuintli, o cão adorado pelos astecas Imagem: Hans Proppe

Nas últimas décadas, a prática de comer cães e gatos se tornou menos comum à medida que a posse destes animais como de estimação aumentou, e que novas gerações desenvolveram visões e atitudes diferentes em relação ao consumo destes animais, hoje vistos mais como pets.

Em 2017, Taiwan foi o primeiro país asiático a banir a venda e consumo de cães e gatos para alimentação, sob pesada multa de cerca de R$ 50 mil para pessoas que forem pegas. Uma mudança de perspectiva sobre uma prática que já foi mais comum.

Porém, ela continua sendo presenciada em alguns países como China, Coreia do Sul, Tailândia, Laos, Camboja e na região de Nagaland, na Índia. Em alguns países, há festivais que ainda acontecem para venda e consumo destes animais.

A ONG de proteção de animais Humane Society calcula que aproximadamente 30 milhões de cães e 10 milhões de gatos são mortos todos os anos para consumo de carne na Ásia — ainda que esses dados sejam impossíveis de confirmar, já que muitas vezes o comercio, a forma que se faz, é ilegal.

Mas é, sobretudo, um estereótipo, que tem sido historicamente usado para menosprezar imigrantes — especialmente asiáticos. Até porque, num panorama mais geral, é uma prática (cada vez mais) rara, que não representa a dieta padrão dos povos que vivem no continente.

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Comida para xenofobia

Em entrevistas recentes, Trump também tem comparado imigrantes ao personagem de ficção Hannibal Lecter, o canibal do filme O Silêncio dos Inocentes. É um discurso que tenta impingir a atrocidade que atinge aqueles que queremos evitar, que podem acabar com tudo aquilo que conhecemos e amamos.

Em muitos países, os comunistas eram aqueles que eram capazes de comer criancinhas, uma visão de horror absoluto sobre quem poderia ter uma ideia de mundo diferente.

Família chinesa divide a mesa em Pingzi
Família chinesa divide a mesa em Pingzi Imagem: CFOTO/Future Publishing via Getty Images

Em relação aos haitianos, não existe nenhuma tradição estudada no país sobre o consumo destes animais na dieta. Tampouco há casos conhecidos de consumo da carne desses animais, mesmo em situações de desespero ou fome extrema — que boa parte da população nacional sofre nos dias de hoje, o que os obriga a emigrar.

Ao invés de discutir políticas para acabar com a fome e a desnutrição que ainda assola algumas nações, seguimos em discussões que eram a tônica dos anos 1800, quando os chineses eram vilipendiados nos países para os quais emigraram pelo alegado ato de comerem cachorro.

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Os ingredientes mudaram — alho, curry, "comida mal cheirosa" — mas a mesa continua a ser um espaço para manifestação maior da discriminação e xenofobia, mais do que um lugar para nos colocar próximos. Isso, sim, é uma vergonha.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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