De drogas a KFC: assistente de Anthony Bourdain revela lado sombrio da fama

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Por 20 anos, Laurie Woolever esteve no olho do furacão da gastronomia norte-americana, acompanhando de muito perto tudo o que se desenrolou no efervescente cenário da comida que emanava a partir de Nova York.
Primeiro como assistente pessoal de Mario Batali, talvez o primeiro grande chef celebridade da cidade, que transformou seu Babbo no restaurante mais quente do começo dos anos 2000, e virou uma referência na gastronomia mundial (teve dedo dele a abertura do Eataly, em São Paulo).
Depois, trabalhou também ao lado de Anthony Bourdain, talvez o nome mais famoso da gastronomia no mundo ainda hoje, de 2009 até sua morte precoce, em 2018, quando ele já tinha se tornado um apresentador reconhecido globalmente.
Woolever viu de dentro a fama, o luxo de vinhos caríssimos e refeições inacessíveis, os comportamentos de assédio, o abuso de drogas — algo que ela também foi vítima, como conta em um livro que acaba de publicar no mercado editorial americano.

"Care and Feeding" é um potente livro de memórias, talvez o mais pessoal da jornalista e autora com longa trajetória na gastronomia, que já tinha escrito "Appetites: A Cookbook", com Bourdain, e que lançou o best-seller "Bourdain: The Definitive Oral Biography", sobre sua vida depois que ele faleceu.
O volume mescla relato de carreira, bastidores da fama, uma pulsante juventude nova-iorquina (que passou por trabalho em cozinhas) e confissões sobre o próprio vício em bebidas.
Aqui, com bastante franqueza, ela trata da sua adicção de forma honesta e como uma maneira de explicar como a o mundo da gastronomia atrai tantas pessoas propensas aos vícios, como diz.
Mas o que chama atenção das pessoas sobre o livro é justamente o que viu a mulher que esteve ao lado de duas grandes lendas da gastronomia — e que tiveram desfechos muito tristes e trágicos em suas carreiras.
No caso de Batali, depois de sofrer sérias acusações de assédio sexual a partir de 2017, no contexto do movimento #MeToo, passou por um longo processo de julgamentos, afastando-se de seus negócios e programas de televisão.
Depois de perder contratos, em 2022, ele pagou US$ 600 mil para encerrar um processo civil movido por mais de 20 ex-funcionárias de seus restaurantes, que o acusavam de criar um ambiente de trabalho hostil e sexualmente abusivo.
Woolever mesma foi alvo de assédios do antigo patrão: ela contou ao The New York Times que foi agarrada por ele e teve que pedir para que ele não voltasse a repetir a tentativa.
No caso de Bourdain, ela soube da morte prematura do patrão quando ele foi encontrado morto em um quarto de hotel Kaysersberg, na região da Alsácia, em 8 de junho de 2018.
Embora a escritora tenha vivido intensamente o mundo da gastronomia e trabalhado com grandes nomes, seu livro não se pretende um tratado sobre comida — não há muitos relatos culinários, ainda que ela conte pontos interessantes dos bastidores do mundo gastronômico.
Por exemplo, Woolever tenta quebrar alguns mitos sobre seus chefes, especialmente Bourdain, que se tornou uma figura adorada em todo o mundo: ela conta que nem sempre o cozinheiro queria comer pratos 'autênticos' de cada país.
Ela se lembra uma vez que ele quis servir um banquete de KFC à sua equipe de gravação. Em meio a um festival religioso em que pessoas estavam suspensas em ganchos pelas próprias peles e que faquires caminhavam sobre pregos, o homem que ficou conhecido como o cara que comia durian, olhos de foca e reto de javali só queria chegar à loja de fast food mais próxima.
Naquela noite, Woolever lembra, eles montaram um verdadeiro banquete regado a frango frito no terraço do hotel em que estavam hospedados e celebraram um dia intenso de trabalho ali.
Nas partes em que narra o trabalho com Mario Batali, Laurie Woolever centra sua perspectiva no esforço de reconhecer mais profundamente o impacto emocional e profissional de ter estado em um ambiente permeado por assédio e desequilíbrio de poder.
Ela destaca que, na época, o contexto não permitia falar abertamente sobre os comportamentos do chefe — as denúncias contra Batali só vieram a público anos depois, em uma série de reportagens do portal Eater, publicadas em 2017.
Woolever retrata o ex-chefe como "tirânico, irracional e cruel", mas busca trazer contexto para seu comportamento — ainda que em nenhum momento justifique ou relativize os abusos.
O humor afiado, a franqueza (que, nesse aspecto, a aproxima de Bourdain) e a riqueza de detalhes com que narra sua trajetória conduzem o leitor por suas décadas turbulentas na indústria gastronômica.
Mais do que revisitar suas próprias memórias, Woolever nos permite espiar pela fresta de uma porta entreaberta para um momento muito específico da gastronomia, a partir das experiências que viveu ao lado de dois dos chefs mais renomados (e controversos) da história.
Entre refeições com figuras influentes, amores, maternidade, as muitas transgressões de Batali e a tragédia da morte de Bourdain, ela oferece um retrato nada glamouroso da indústria gastronômica — e de sua permissividade corrosiva.
Escancara a cultura de trabalho hipermasculina que domina esse universo, sem se colocar como vítima. Fala dos vícios e das crises de saúde mental com a mesma naturalidade com que reconhece o quanto esses dois homens foram decisivos para sua carreira.
E, duas décadas depois, transforma tudo isso numa biografia potente, publicada com destaque pela imprensa e sucesso de vendas. Para alguém que começou servindo os bastidores, não é pouca coisa — é um lugar de fala conquistado com coragem e sem romantismo.
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