Rafael Tonon

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Opinião

A crítica gastronômica morreu? Não. Só virou 'conteúdo'

São hilárias as histórias que a jornalista Ruth Reichl conta dos tempos em que foi crítica de restaurantes do The New York Times.

Reichl ficou famosa por criar disfarces elaborados — incluindo perucas, maquiagem, roupas de brechó e até cartões de crédito com outros nomes — para manter o anonimato em seu trabalho.

Era um tempo em que o crítico era totalmente desconhecido, precisava passar incógnito, não ser identificado. A premissa era uma forma de manter a maior isenção possível nas análises.

Afinal, ser reconhecida poderia influenciar a experiência à mesa: alguns mimos a mais, pratos mais caprichados por parte da equipe, sabendo que a senhora da mesa 4 era a crítica do jornal mais importante do mundo.

As resenhas publicadas podiam "fazer ou quebrar" um restaurante. Por isso, muitos donos de restaurantes tinham dossiês com fotos de críticos e informantes que alertavam a equipe caso ela aparecesse.

Isso só aumentava a necessidade dos disfarces — que às vezes envolviam até dentaduras falsas e roupas de brechó. Reichl desenvolveu personagens completos para cada disfarce — com nome, história de vida, estilo de vestir, até atitudes e gostos diferentes.

Ela chegou a usar mais de 30 perucas durante sua passagem pelo Times, e cada personagem influenciava também a forma como ela era tratada nos restaurantes.

Muitas destas anedotas ela conta no delicioso Alho e Safiras - A Vida Secreta de Uma Crítica de Gastronomia Disfarçada.

Reichl foi uma das mais conhecidas críticas de restaurantes daquele que é considerado o maior jornal do mundo. Ela manteve-se no cargo até 1999, quando o mercado de restaurantes — e a figura do crítico — eram muito diferentes.

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Carreira em mudança

Hoje, o NY Times tem mais de um crítico, todos eles bem conhecidos do público: aparecem em postagens do jornal, fazem reels para o Instagram, acumulam milhares de seguidores.

É o caso de Priya Krishna, que coleciona livros de receita, quase 400 mil seguidores e um fandom que conhece muito bem seu trabalho, sua escrita, sua cara.

Ela é a imagem do crítico gastronômico moderno — dos que continuam a trabalhar nos grandes meios, claro. São pouquíssimos os jornais que ainda podem pagar por um profissional assim em seus times.

Ser crítico de verdade, a sério, demanda uma dedicação de tempo brutal (para fazer diversas visitas a um restaurante, passar muito tempo escrevendo e checando as informações), mas sobretudo, muito dinheiro. Algo escasso no jornalismo de hoje.

Por isso, não existe 'ser' crítico gastronômico; na verdade, se 'está' crítico gastronômico quando se exerce o papel de visitar restaurantes (de preferência mais de uma vez) para escrever sobre eles de forma dedicada e profissional.

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Tchau, anonimato

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Imagem: Angelo/stock.adobe.com

Tal como o chef é um cozinheiro que está no comando de uma cozinha — é uma função, não uma profissão. Sempre acho curioso cozinheiros sem restaurantes terem "chef" na dólmã ou ex-críticos que já não escrevem mais nada ainda insistirem em ser reconhecidos como tal.

O próprio NY Times fez um post engraçado explicando essa função, uma espécie de "starter pack". Diz o jornal que é preciso antiácidos, planilhas e pseudônimos. O primeiro para prevenir o estômago, os segundos para planejar bem as visitas (horários, endereços e informações, além de notas), e os terceiros ajudam a não levantar alertas antes da hora.

Ainda que, reconheçamos todos, em tempos de internet é quase impossível não ter uma foto sua quando alguém digita seu nome no Google. Total anonimato é coisa do passado. Os jornais, aliás, até querem que seus críticos mostrem a cara em busca de engajamento.

Hoje eles concorrem com influencers, tiktokers e outros personagens do mundo virtual, que fazem resenhas e vídeos de avaliação de restaurantes: na guerra pela atenção da audiência, só ter credibilidade não basta; é preciso se mostrar. E isso, por si só, não seria um problema — visibilidade e conteúdo não precisam ser excludentes.

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O risco está justamente quando a forma se sobrepõe ao conteúdo. Devia haver espaço para todos — e há, aliás, pessoas bem sérias e responsáveis fazendo vídeos e legendas de recomendações que vão muito além de notas simplistas, vozes gritadas e um sem-fim de subjetividades vazias.

Jornalismo de influência

Mas, numa era do "todos somos influencers", até profissionais gabaritados estão tirando o pior das redes para realizarem seus trabalhos, nivelando-os por baixo, em troca de alguma migalha de cliques aumentados por algoritmos cada vez mais limitados — e limitantes.

De uma maneira geral, imperam dois tipos de "crítica": aquelas que rasgam elogios ou aquelas escritas na força do ódio, para alimentar a sanha hater da internet. Em um mundo internético polarizado, não há espaço para uma discussão que busque visões equilibradas, pontos de vista reflexivos.

Basta ler as críticas nos maiores jornais do mundo: até a linguagem emula posts e legendas, clichês, expressões da moda e gírias para engajar — e salvar, compartilhar, comentar.

Quando não proferem adjetivos negativos ou usam palavras até chulas para expor opiniões demasiadamente pessoais, dizem então que, no prato, "one could feel the passion of Caravaggio". Falta bom senso, sentido de discussão.

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Perde a crítica gastronômica, que sempre foi um farol — não apenas para nos ajudar a escolher onde comer (ou não), a função primária do jornalismo de serviço — mas, sobretudo, para gerar discussões, ideias e até reflexões nos próprios chefs e restaurantes.

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Imagem: EdNurg/stock.adobe.com

O que há de especial na crítica

Pode perguntar a qualquer cozinheiro, e ele vai apontar como pelo menos um texto sério foi fundamental para mudar os rumos de um prato, de sua cozinha ou até de sua vida profissional. Quando feita com respeito, seriedade e a intenção certa (que vai além de cliques), a crítica é fundamental para todo o segmento.

É muito bom que tenhamos pluralidade de vozes escrevendo sobre comida: mais é sempre melhor, especialmente quando isso torna a crítica mais democrática e acessível. O problema surge quando essas vozes — antes diversas — começam a soar cada vez mais parecidas: nas legendas do Instagram, nos vídeos do TikTok, nas páginas dos jornais.

Ainda prefiro quando Ruth Reichl levava distintos personagens para jantar fora — cada um com suas inseguranças, posturas, traços — mas voltava e escrevia tudo no mesmo computador, sob as mesmas regras: com método, ética e intenção crítica.

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Porque, no fim das contas, mais do que o número de seguidores ou a agilidade do post, o que define um bom crítico não é o quanto ele viraliza, mas o quanto ele entende o que está provando — e sabe comunicar isso com clareza, contexto e responsabilidade.

Numa era em que a gritaria vale mais do que o argumento, uma opinião bem construída, embasada e coerente virou raridade — justamente quando todo mundo tem algo a dizer, mas quase ninguém tem algo a argumentar.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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