Rafael Tonon

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Opinião

Pressão e suicídio: precisamos falar sobre a saúde mental na gastronomia

De tempos em tempos, a notícia devastadora sobre um chef que decidiu tirar sua própria vida chega aos jornais.

Talvez não com a mesma frequência de atentados em escolas ou acidentes com aviões, mas infelizmente trata-se de uma tragédia que é também tristemente recorrente.

O tema ganhou uma ampla repercussão quando Anthony Bourdain, um dos mais famosos nomes da gastronomia moderna, morreu em junho de 2018, aos 61 anos.

O cozinheiro e apresentador foi encontrado em um quarto de hotel em Kaysersberg, na França, onde estava gravando um episódio de sua série Parts Unknown para a CNN. A causa, revelou a polícia, foi suicídio.

Sua morte gerou grande comoção no mundo gastronômico e além, reacendendo discussões sobre saúde mental, depressão e os desafios enfrentados por chefs e profissionais da indústria da hospitalidade.

Nesta semana, foi um chef paulistano de 36 anos: cozinheiro inovador, ajudou a difundir a cena de hambúrgueres em São Paulo (e em outras partes do Brasil), tinha sucesso, era reconhecido —e muito querido— por seus pares.

Ainda que a causa da morte não tenha sido divulgada oficialmente, amigos próximos afirmam que ele tirou a própria vida. Posts de tristeza e consternação tomaram as redes sociais: "Por que tão cedo?", questionaram alguns dos mais próximos.

O que leva alguém a tirar a própria vida é uma questão amplamente debatida por especialistas. Trata-se de um problema de saúde pública que merece atenção e um olhar mais sensível para os sinais de alerta.

Na gastronomia, onde a pressão, a rotina exaustiva e a busca incessante pela perfeição são constantes, as taxas são ainda mais preocupantes.

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Uma pesquisa no Reino Unido realizada em agosto de 2024 revelou que 59% dos trabalhadores da hospitalidade enfrentam dificuldades psicológicas no trabalho e 50% já pensaram em suicídio, automutilação ou tiveram pensamentos autodestrutivos.

Outro estudo australiano (publicado em 2022) mostrou que os chefs eram significativamente mais propensos do que a população em geral a cometer suicídio.

Nos EUA, as preocupações são as mesmas: um levantamento dos CDCs (Centros de Controle e Prevenção de Doenças) indica que a indústria de serviços alimentícios tem uma das maiores taxas de suicídio entre grupos ocupacionais.

O suicídio na indústria de restaurantes é uma preocupação crescente, exacerbada por altos níveis de estresse, longas horas de trabalho, baixos salários, abuso de substâncias e ambientes tóxicos.

Muitas estatísticas, da América à Europa, mostram que os trabalhadores da hospitalidade enfrentam maiores taxas de problemas de saúde mental, incluindo depressão, ansiedade e esgotamento.

A pressão do perfeccionismo, instabilidade financeira e uma cultura que frequentemente normaliza o consumo excessivo de bebidas alcoólicas e drogas contribuem para o problema.

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Um relatório de 2023 da Umbrella Wellbeing que analisou a percepção dos profissionais neozelandeses sobre seus ambientes de trabalho e qualidade de vida, mostrou que entre os chefs entrevistados, quase um em cada dez relatou sofrimento mental, além de altos níveis de fadiga física e emocional.

Muitos enfrentam distúrbios do sono e estilos de vida pouco saudáveis, com 15% consumindo álcool cinco ou mais vezes por semana e 11,4% admitindo o uso de drogas ilícitas (LSD, cocaína, heroína, metanfetamina ou ecstasy) no último ano.

Com a morte de Anthony Bourdain, muitas associações passaram a tratar o tema da saúde mental na gastronomia de maneira mais direta, buscando abrir um diálogo mais franco para prevenir novas tragédias.

Em 2018, Charles Ford, gerente de um restaurante de alto padrão em Chicago, decidiu romper o silêncio sobre suas próprias tentativas de suicídio. Aos 31 anos, revelou publicamente que havia tentado tirar a própria vida três vezes entre o final de 2015 e a primavera de 2016.

Para Ford, o sofrimento emocional é frequentemente mascarado no ambiente profissional da gastronomia, e falar abertamente sobre o assunto é o primeiro passo para mudar essa realidade.

Seu depoimento refletiu uma crescente preocupação com o bem-estar dos profissionais do setor. No rastro da pandemia, diversas instituições foram criadas para abordar o tema. A Me, Myself in Mind, fundada por Merly Kammerling, surgiu com o objetivo de oferecer suporte psicológico e reduzir o estigma em torno da saúde mental na indústria da hospitalidade.

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Segundo Kammerling, embora haja hoje mais abertura para discutir o tema, a mudança na cultura dos restaurantes ainda acontece lentamente. Em reuniões com chefs e profissionais do setor, a associação reforça pontos essenciais para evitar novos casos.

Entre os "lembretes" que propõem, estão frases como "opiniões não definem sua realidade" e "julgamentos são uma confissão de caráter", destacando desafios recorrentes da indústria, como críticas excessivas e competição extrema.

Muitos chefs se sentem pressionados pela necessidade de relevância: integrar rankings e premiações, figurar entre os melhores, receber elogios de críticos e clientes. Com as redes sociais, essa pressão se intensificou: o aumento de "críticos" que se especializam em resenhas negativas e a ilusão de pertencimento a uma bolha gastronômica que exclui muitos só agravaram o problema.

Para piorar, muitos projetos voltados à saúde mental na gastronomia, criados durante a pandemia, já encerraram suas atividades. Alguns perderam patrocínio; em outros, os próprios chefs precisaram retomar suas rotinas exaustivas, sem tempo para se dedicar a iniciativas sociais.

No entanto, projetos liderados por departamentos de saúde pública vêm ganhando força, evidenciando que o problema precisa ser tratado como uma questão de saúde pública e envolver governos.

Nos EUA, a GRA (Georgia Restaurant Association), em parceria com o Departamento de Saúde Comportamental e Deficiências do Desenvolvimento da Geórgia e a organização sem fins lucrativos Giving Kitchen, lançou uma campanha para prevenção do suicídio na indústria de restaurantes.

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A iniciativa não apenas conscientiza trabalhadores e clientes sobre a existência de linhas de apoio, mas também incentiva o uso efetivo desses serviços. Apenas na Geórgia, entre 2017 e 2021, 224 suicídios foram registrados entre profissionais da indústria alimentícia.

Além disso, um estudo apontou que esses trabalhadores têm alto risco de morte por overdose, ficando atrás apenas dos trabalhadores da construção civil. A taxa no setor é alarmante: 130 mortes para cada 100.000 trabalhadores.

A campanha já conta com 40 restaurantes participantes, impactando mais de 3.000 profissionais. Para aderir, os estabelecimentos precisam apenas permitir a divulgação da campanha e disponibilizar materiais promocionais e de apoio, como mensagens de incentivo e formas de contato com especialistas.

No Brasil, é fundamental que associações e entidades do setor pressionem as autoridades para a realização de campanhas semelhantes.

Os dados mostram que, nesta indústria, mais do que em qualquer outra, o suicídio é um grave problema de saúde pública.

Além disso, os próprios chefs podem se mobilizar e pensar em ações conjuntas com suas equipes para prevenir o problema. Acima de tudo, falar abertamente sobre o tema ajuda a romper estigmas e a criar um ambiente mais acolhedor para todos.

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Procure ajuda

Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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