Cientistas finalmente definem quando a obesidade é uma doença

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A partir desta terça (14) muita coisa deve mudar no entendimento do que é obesidade e na forma como ela é diagnosticada. Após uma longa espera, sai finalmente o resultado do trabalho de uma comissão composta por 58 especialistas do mundo inteiro para definir o que é obesidade clínica. Eles trabalham arduamente nisso há exatos três anos.
Em outras palavras, agora a ciência determina quando ter excesso de gordura no corpo é uma doença, derrubando alguns conceitos e preconceitos e ajudando os sistemas de saúde a priorizar quem realmente precisa tratar essa condição.
Os profissionais de saúde envolvidos em uma comissão criada para isso pela revista The Lancet, que inclui ainda dois pacientes, chegaram a 18 sinais capazes de indicar quando obesidade é doença em adultos — e outros 13 sinais, em crianças e adolescentes.
O artigo, publicado hoje na internet, será apresentado a médicos e cientistas ao redor do globo em uma videoconferência com duração prevista de três horas, marcada para a próxima quinta-feira (16).
Sinais de mudança
Um exemplo de conceito que pode despencar com a divulgação do estudo: o de que o IMC (índice de massa corporal) serve para dizer quem tem e quem não tem obesidade e, pior, qual a sua gravidade. Vá pegando a fita métrica, por exemplo, porque ela promete ter muito mais valor do que esse cálculo e, de certa forma, pode desbancar até a balança em importância.
Exemplo de preconceito que deve cair? O de que toda pessoa com obesidade está mal da saúde. Algumas têm o que agora se define como obesidade pré-clínica, ou seja, carregam excesso de gordura no corpo, sim. Só que, no momento, não mostram qualquer sinal ou sintoma de que isso esteja atrapalhando o funcionamento de seus órgãos e tecidos. Estão, portanto, com a saúde preservada.
Obesidade pré-clinica é sobrepeso, então? "Nada disso! É obesidade mesmo", dispara o médico Ricardo Cohen, confessando que, por ele, a palavra "sobrepeso" seria riscada para sempre. "Até porque ela lembra 'peso' e não é disso que se trata", justifica. Obesidade é excesso de adiposidade, isto é, de gordura corporal pra valer — que, especialmente no abdômen, é capaz de ser um perigo. Peso pode ser outra história.
À frente do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, e atual presidente da IFSO (Federação Internacional de Cirurgia da Obesidade e Distúrbios Metabólicos), Cohen é o único brasileiro na tal comissão e, diga-se, um dos três autores responsáveis pela versão final do artigo, que teve um pouco da mão de todos na elaboração.
Ele, aliás, viu a ideia da comissão nascer, quando participou de uma acalorada discussão em 2021. "Eu e alguns colegas estávamos inconformados. Passava o tempo e os critérios sobre obesidade continuavam os mesmos, imprecisos e obsoletos. Foi aí que um deles, que mora em Londres, resolveu agitar com o pessoal da Lancet", relembra.
Isso porque a publicação britânica tem uma série de comissões científicas para discutir tópicos que ou são controversos ou são bastante atuais. "A obesidade seria as duas coisas", diz o médico, que nos ajuda a entender o que pode mudar.
Como deverá ser feito o diagnóstico
Foi ainda na década de 1970 que a OMS (Organização Mundial da Saúde) adotou o IMC para avaliar se alguém tem obesidade ou não. Mas o cálculo não dá a menor noção de quanta gordura está acumulada no corpo, muito menos onde ela se concentra.
Talvez você encontre duas pessoas com o mesmíssimo resultado entre 30 e 34,9 kg/m2 de IMC, por exemplo. Seriam dois casos de obesidade grau 1 por esse jeito velhusco de olhar. No entanto, uma delas pode ter, de fato, uma circunferência abdominal larga, acumulando bastante gordura na região da barriga. E outra, quem sabe, é uma atleta cheia de pesados músculos. "Logo, são incomparáveis", observa Cohen.
Ele e seus colegas não levantaram essa bola. Ela vem quicando faz tempo nos congressos de Medicina. "Todo mundo reclamava desse modo de diagnosticar um indivíduo, mas ninguém fazia nada de diferente", nota o médico.
O que artigo publicado propõe é que o IMC seja sempre complementado por, pelo menos, uma medição corporal. Ou, se preferir, você pode deixá-lo de lado e fazer, em compensação, dois tipos de medição. Apenas em pessoas com IMC acima de 40 kg/m2 dá para deduzir que exista obesidade sem pegar na fita métrica — "e olhe lá, porque existem exceções", comenta o doutor Cohen.
A primeira opção de medida corporal é a da circunferência abdominal para checar se está acima dos valores saudáveis, que podem variar conforme sexo, idade e etnia. Mas, se você quer ter uma ideia genérica, assim por alto, a OMS fala que o melhor seria que a cintura das mulheres não ultrapassasse 88 centímetros e a dos homens, 102 centímetros.
Você também pode medir a cintura para ver se ela é, no máximo, a metade da sua altura. É um segundo jeito. Há uma terceira medição, conhecida por índice cintura-quadril, ou seja, o valor da circunferência abdominal seria dividido pela medida do quadril e, aí, há tabelas para conferir o resultado.
E, sim, um último modo de diagnosticar a obesidade, dispensando todos os outros, é um exame de imagem, o DEXA, que avalia a quantidade e a distribuição da gordura corporal. Mas, claro, esse método é menos acessível.
"Essas abordagens — o DEXA e as medições corporais — podem indicar a obesidade", esclarece o doutor Cohen. "Porém, isso ainda não quer dizer que a pessoa tenha uma doença."
Os 18 sinais da obesidade clínica em adultos
Segundo Ricardo Cohen, uma vez constatada a obesidade, a pessoa deverá ser avaliada por um médico, para ver se apresenta algum dos sintomas capazes de entregar órgãos ou tecidos que deixaram de funcionar como deveriam por causa da infiltração de gordura. Saiba, a seguir, do que os autores estão falando:
- Dores de cabeça recorrentes e perda de visão. Às vezes, têm a ver com a pressão intracraniana aumentada.
- Apneia do sono. Quando você se deita e dorme, a gordura em excesso no abdômen e na garganta faz o ar ter encontrar resistência para passar. A respiração sofre breves (e ruidosas) interrupções.
- Falta de ar. Ela mostra que os pulmões e o músculo da respiração, que é o diafragma, têm dificuldade para se expandir.
- Insuficiência cardíaca de fração reduzida: o coração não se contrai direito para bombear o sangue.
- Fadiga e inchaço nas pernas. Esses sintomas podem indicar outro tipo de insuficiência cardíaca, a de fração preservada. Nela, o coração não relaxa direito. O bombeamento do sangue também fica prejudicado.
- Palpitações e ritmo cardíaco irregular. São sinais de arritmias.
- Hipertensão pulmonar: quando sobe demais a pressão da artéria que leva o sangue do coração até os pulmões para ser oxigenado.
- Trombose venosa: quando surgem coágulos nas veias das pernas.
- Hipertensão. Isto é, pressão sanguínea acima dos valores saudáveis.
- Alterações metabólicas: quando o exame de sangue acusa aumento do colesterol LDL ou dos triglicérides ou, ainda, dos níveis de glicose, por exemplo.
- Doença hepática gordurosa: quando exames de imagem encontram gordura infiltrada no fígado, o que é capaz de inflamá-lo.
- Excesso da proteína albumina na urina: este é um dos sintomas de rins que não estão funcionando a contento.
- Escapes de xixi: se os episódios de incontinência urinária se tornam frequentes.
- Menstruação irregular, falta de ovulação e síndrome dos ovários policísticos: são sinais de problemas reprodutivos em mulheres.
- Deficiência de testosterona nos homens e baixa produção de espermatozoides: indicam problemas reprodutivos no público masculino.
- Dores nos joelhos e/ou na bacia. Elas acusam problemas articulares.
- Linfedema. Ele causa inchaços e dores crônicas.
- Limitações em atividades básicas do dia a dia: se a falta de mobilidade dificulta tarefas como tomar banho, vestir-se e outras.
Nas crianças e nos adolescentes, vale lembrar, são 13 critérios, muitos deles em comum com a lista dos mais velhos. "Infelizmente, a partir da adolescência as complicações do excesso de adiposidade são as mesmas, como pressão alta e apneia do sono", informa o doutor Cohen. "Daí que seria até irresponsável não abordarmos a obesidade infantil."
O estudo não entra no mérito do tratamento — se deve ser com remédios, com cirurgia ou com mudanças no estilo de vida. Só deixa claro que, não importa a idade, quando a obesidade é clínica, com sintomas, ela precisa ser tratada.
E quem tem obesidade pré-clínica?
"Quem tem excesso de adiposidade, mas nenhum dos sintomas listados, em princípio não tem motivo para fazer um tratamento contra a obesidade do ponto de vista médico", declara o doutor Cohen, prevendo o alvoroço que irá causar.
Ele e seus colegas reconhecem, porém, que os indivíduos nesse grupo correm maior risco de desenvolver doenças, como diabetes e a própria obesidade clínica. "Por isso, não devem ser deixados de lado. Precisam de acompanhamento, repetindo exames de tempos em tempos", explica.
Avaliar o risco e diminuir o estigma
Com todos esses critérios, o que o estudo busca é descobrir o risco de cada um. "À frente na fila para tratamento não deve estar quem simplesmente chegou primeiro, mas quem tem obesidade clínica. E, entre essa gente, devem ser priorizados aqueles com maior número de sintomas ou com sintomas mais graves. Assim como, em um segundo momento, podem ser priorizados indivíduos com obesidade pré-clínica, mas que tenham, por exemplo, histórico familiar de doenças do coração."
Segundo o médico, uma preocupação é que, diante da altíssima prevalência, oferecer tratamento para todas as pessoas com obesidade do planeta explodirá o caixa das seguradoras e da saúde pública. "Nesse contexto, selecionar aqueles pacientes que precisam de tratamento mais urgente é uma forma de aliviar os custos e viabilizar o cuidado", pensa.
Mas, acima de tudo, ele e os outros autores esperam que o estudo reduza do estigma em relação ao peso: "Vamos parar de dizer que alguém tem um problema só pela corpulência, pela aparência, pelas formas do seu corpo. A obesidade precisa ser avaliada por critérios médicos bem mais objetivos, como qualquer outra doença crônica", opina Cohen.
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