'Nos conhecemos em um convento e hoje somos noivas'
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Maria Francilia Costa, 29, e Luiza Kellen, 23, noivas há pouco mais de um ano, se conheceram quando o romance beirava o impossível: elas seguiam a vida religiosa em um convento.
As duas abandonaram a vocação meses antes de começar a namorar. E afirmam que a mudança no estilo de vida não abalou a fé. "[Somos] as meninas que se conheceram no convento, e hoje estão noivas", resumiram em um vídeo nas redes sociais.
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O caminho de Fran
De Brejo do Piauí, cidade com menos de 4 mil habitantes, Francilia encontrou na vida religiosa uma forma de mudar seu futuro. Aos 15, se aproximou das irmãs de um convento, que a fizeram pensar na vocação religiosa.
Na minha cidade, a realidade é de meninas que crescem, casam e têm 10 filhos. Não queria isso para mim.
Maria Francilia Costa
Fran teve em casa o primeiro exemplo de dedicação à religião: a avó, católica fervorosa. Mas, apesar da fé, a idosa foi contra a decisão da neta de virar freira.
"Meus avós não se acostumaram. Sempre falavam: 'a gente quer que você vivencie outras coisas'"
Para seguir o sonho de ser freira, a piauiense teve de deixar o estado e passou por vários cantos do Brasil: seu destino era comandado pela Igreja.
Ela ficou oito anos na vida religiosa e, quando deixou o convento, estava na penúltima etapa da formação de uma freira, quando a mulher faz os primeiros votos de pobreza, obediência e castidade, que antecedem os votos perpétuos.
O caminho de Luiza
Luiza não foi tão longe quanto Fran na vida religiosa: morou três anos com as freiras.
Como Fran, também teve a avó como primeira referência religiosa, mas sua aproximação com o catolicismo aconteceu para preencher um "vazio" que sentia quando adolescente.
"Comecei a participar de grupos de jovens, renovação carismática, com todo aquele fervor de jovem que, quando entra em alguma coisa, se joga de cabeça."
Luiza enxergava nos projetos da religião a chance de alcançar um sonho: fazer trabalhos solidários.
Queria doar minha vida a Deus.
Luiza Kellen
A mineira de Pouso Alegre se assustou com a ideia de ficar enclausurada em um convento, mas mudou de ideia após a primeira visita. Depois de um ano de "ambientação", com reuniões com as irmãs, decidiu que queria seguir a vida religiosa. A primeira parada foi uma casa de formação no Paraná.

O encontro: 'Não fui com a cara dela'
Luiza e Fran se conheceram em 2019, quando a piauiense estava no noviciado, etapa que acontece por volta do terceiro ano de formação. É uma fase de oração e recolhimento em que a mulher passa a pertencer oficialmente à congregação.
Em um dos retiros pelo Brasil, se viram pela primeira vez.
Estava em uma casa com as irmãs que davam formação, teve um encontro, e a Luiza foi participar. De primeira, não fui com a cara dela, parecia uma menininha muito mimada. Julguei de cara.
Maria Francilia Costa
Já Luiza, que ainda estava conhecendo a rotina das freiras, ficou intimidada com a falta de conhecidas no retiro.
"Teve o momento do filme à noite, e a Fran se sentou ao meu lado, me olhou meio 'assim', e saiu. Pensei: 'poxa, o que eu fiz para essa freira?'. Não gostei, mas não verbalizei."
Luiza conta que sua aparência "arrumadinha" era resultado da filosofia religiosa: na época, ela era adepta da tradicionalidade, usava saias longas e até véus nas missas.
O reencontro e amizade entre as duas aconteceu em 2020. Quando a mineira foi mandada para o Paraná, Fran também estava por lá.
A piauiense foi escolhida para apresentar a nova casa à novata e, mesmo contrariada, seguiu as ordens. "Estava na correria e esqueci de arrumar o quarto. Fui uma péssima anfitriã. À noite a gente foi assistir filme, pedir pizza, e fui entendendo que ela não era tão insuportável."
As duas seguiram rumos diferentes nos meses seguintes, mas mantinham contato por mensagem —inclusive com algumas "DRs", bem antes de sequer pensar em namorar.
Fran, com rotina mais agitada, demorava para responder as mensagens de Luiza, o que deixava a novata irritada. O problema só acabou em 2021, quando elas foram para a mesma casa, em Pouso Alegre.
Na época, estavam em crise com a vida religiosa, mas não falavam sobre isso.
"Estava em uma fase louca. Queria ser amiga, mas não podia ser muito, não podia partilhar muito, porque senão ela ia desanimar [da vida religiosa]. Mas isso foi sem saber que ela estava pior que eu. Quando decidi que ia sair, a Luiza já tinha decidido."
'O mundo estava acabando'
Fran e Luiza mencionam o mesmo motivo pelo qual saíram da Igreja: saúde mental.
Em 2021, a piauiense começou a ter crises de ansiedade mais intensas. "Descobri que estava com síndrome do pânico, além de depressão. Saía na rua e não conseguia voltar pra casa. Tinha de ligar pra alguém me buscar, porque pra mim o mundo estava acabando", conta.

"A partir disso, comecei a pensar: as irmãs sempre falavam da importância da saúde mental para continuar ali dentro, sem isso não dá para seguir."
Foi então que Fran decidiu pedir desligamento. O processo levou cerca de um ano.
"A decisão de deixar minha família para entrar foi difícil, mas a de sair, vendo tanta coisa que estava construindo, foi muito mais. Mas, quando decidi, foi um alívio."
Já para Luiza, a experiência na vida religiosa também foi afetada pela inexperiência ao entrar no convento. Na época, ela não tinha nem terminado o ensino médio.
"Me deparei com uma vida parada. A gente não tem autonomia. E eu sempre fui muito independente, desde novinha, de sair, resolver as coisas. Lá, tinha de entregar meu dinheiro para a irmã e pedir só quando precisava. Nem meu computador ficava comigo. Aquilo foi me incomodando e comecei a ter crises de ansiedade mais fortes."
A gota d'água para a mineira foi uma crise durante uma missa, em que ela ficou "paralisada". Luiza teve de recorrer a remédios e decidiu deixar o convento.

Cheguei à missa e minha vida parou, como se o mundo estivesse rodando e eu ali, parada, sem saber para onde ia. Foi uma semana paralisada. Não dormia, não conseguia comer, não conseguia rezar. Quando a poeira baixou, entendi que não precisava estar lá para fazer o bem às pessoas, e aquele sentimento de que algo estava faltando começou a voltar.
Luiza Kellen
'Lá dentro vocês já não se gostavam?'
Luiza e Fran moravam em Pouso Alegre quando saíram do convento. A piauiense chamou a amiga para dividir um apartamento —inicialmente, apenas com a ideia de poupar dinheiro.
As duas não sabem em que momento começaram a se olhar com outros olhos, mas garantem que o romance não era nem mesmo uma possibilidade nos tempos de convento.
"Perguntam: 'lá dentro vocês já não se gostavam?'. A gente não sabe, porque estávamos vivendo de forma tão intensa aquilo que, por mais que eu soubesse que sentia atração por meninas, não foi uma coisa que parei para pensar quando estava lá. Quando a gente começou a dividir apartamento, muita coisa que não passava pela cabeça começou a surgir", diz Fran.

Elas demoraram a se declarar uma para a outra com medo de perder a amizade que tinham construído, até que Luiza tomou a iniciativa. Agora, são quase três anos de união.
"Dentro do convento, não podíamos nos ajudar. Quando a gente saiu, começou a poder falar: 'estou mal, estou triste, preciso de ajuda'. Isso favoreceu nossa amizade e cresceu para além disso", refletem.
Assumir o relacionamento com uma mulher foi menos difícil que entrar na vida religiosa, diz Fran —pelo menos quando o assunto é a reação da família.
"Fui super armada para falar com meus avós, mas foi bem natural. Minha avó é apaixonada pela Luiza." Hoje, elas frequentam uma igreja com um grupo de diversidade, que apoia fiéis da comunidade LGBTQIAP+.
'Vida religiosa me fez ser quem eu sou'
Fran estuda publicidade e trabalha no marketing de uma rede de cinemas. Luiza começou a faculdade de psicanálise, mas acabou trancando. Hoje, trabalha em uma imobiliária e pensa em retomar os estudos.
As duas confessam que já se sentiram atrasadas em relação a outros colegas.
"Trabalho com uma menina da minha idade que tem duas faculdades. Ela começou a fazer a primeira quando entrei no convento. Estudei teologia e filosofia no convento, mas não tinha nenhum rabisquinho na carteira [de trabalho]."
Apesar das dificuldades, se dizem gratas com a repercussão da história que vivem —o que fez com que ganhassem seguidores nas redes sociais e a chance de ajudar outras pessoas.
"A gente recebe mensagem de meninas que querem entrar para o convento e sempre falamos: se realmente é o que você quer, vai e faz a experiência. Se não for, não tenha medo de voltar. "
Se tem uma experiência que agradeço a Deus por ter vivenciado, foi a de estar no convento. Se não tivesse entrado e entendido tanta coisa sobre mim, sobre a figura de Deus, de como Deus nos vê, não estaria vivendo tudo isso e tendo coragem de falar da nossa história.
Maria Francilia Costa
"A vida religiosa me fez ser quem sou hoje. Foi lá que entendi que não só o cristianismo, não só o catolicismo vai salvar o mundo, mas o amor", completa Luiza.
11 comentários
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Bruna Santos
Deus é amor!
Fabio Benitez Correa
Parabéns ao casal que vive seu amor. Amor constrói. Melhor do que o ódio e o preconceito que só servem para destruição.
Jorge Pinola
Encontraram suas vocações. Sem hipocrisias.