'Peço a Deus que não me leve antes': elas cuidam de adultos com transtornos
Ler resumo da notícia
A primeira crise de Cláudio, 42, provocada pela esquizofrenia foi aos 11 anos. A mãe, Luiza Silva, 62, lembra como se fosse hoje. Desde então, ela dedica a vida de forma integral aos cuidados com o único filho.
"Fomos pegar um ônibus e ele desceu correndo e gritando pela rua. Daí então as crises foram se agravando. Ele começou a ficar com medo de tudo e das pessoas", conta a mãe.
- ENVIE SUA HISTÓRIA: acha que a sua história de vida merece uma reportagem? Envie um resumo para o email enviesuahistoria@uol.com.br. Se possível, já envie fotos e os detalhes que nos ajudarão a avaliá-la. A redação do UOL pode entrar em contato e combinar uma entrevista.
Segundo Luiza, além da esquizofrenia, Cláudio é diagnosticado desde os primeiros anos de vida com Transtorno do Espectro Autista (TEA). "Quando perguntam quantos anos têm, ele fala dois. A forma de interagir é brincando e dançando do jeito dele."
As crises de Cláudio se intensificaram na fase adulta e ocorrem quase diariamente. "Não são todas que precisam de internação, só quando ele começa a se mutilar, aí tenho de chamar o Samu para levar até o hospital", conta Luiza.
De acordo com a mãe, a agressividade das crises e o medo de Cláudio de sair de casa dificultam o acesso às terapias. Os medicamentos são prescritos pelo psiquiatra, que acompanha a evolução do paciente a partir de vídeos.
Para mim ele é uma eterna criança, depende de todos os meus cuidados: banho, barbear, cortar a unha. Faço tudo com muito amor e carinho, mas, quando ele está em surto, não consigo chegar perto. Tem momentos em que está calmo, canta e dança, mas dá cinco minutos fica agressivo e começa a me xingar.
Luiza Silva
Além do filho, Luiza também cuida do marido, que tem 61 anos e convive com sequelas de um acidente vascular cerebral (AVC). A renda da família, que mora de aluguel, vem da aposentadoria do esposo.
Eu resolvo tudo. Não sobra tempo para mim. Eu não tenho ninguém para desabafar, se eu tivesse condições pagava uma psicóloga para fazer acompanhamento, vir em casa conversar comigo e com o meu filho.
Luiza Silva
Luiza encontrou nas redes sociais uma forma de distração e de divulgar a rotina com o filho. Os vídeos compartilhados mostram crises, desabafos com relação às dificuldades com atendimento especializado na cidade onde mora, momentos de descontração com Cláudio e histórias de humor que a dona de casa cria.
"A única coisa que tira o meu estresse são os vídeos, que acalmam ele. Posto também as crises, que é para mostrar a realidade", disse.
A dona de casa afirma que teme deixar o filho à própria sorte: "Peço muito a Deus que não me leve antes dele."
'Precisam de ajuda para tudo'
A cabeleireira Tatielli Falcão, 42, assumiu o cuidado integral dos irmãos Anderson, 48, e Alexandro, 46, após a morte da mãe há quase dois anos. Ambos são diagnosticados com TEA e deficiência intelectual grave. Ela teve de se mudar com o filho de sete anos para uma casa maior, em Salvador, onde coubessem todos.
São como bebês, precisam de ajuda para tudo. Eu não posso deixar de trabalhar, como muitas mães fazem, porque preciso criar meu filho. Não consigo levar a nenhum tratamento ou acompanhamento terapêutico, a única coisa que temos feito é dar os tranquilizantes que a psiquiatra prescreve.
Tatielli Falcão, cabeleireira
A cabeleireira trabalha durante o dia e, à noite, fica sozinha com os irmãos. A rotina diária exige atenção especial.
"Eu acordo e vou direto ver eles, pois Anderson, às vezes, rasga a fralda e se suja todo. Arrumo meu filho para a escola e deixo eles com a cuidadora. Volto do trabalho e assumo os cuidados. Cuido do meu filho e coloco para dormir, rezando para que nenhum deles acorde de madrugada e eu consiga dormir."

Além do cansaço físico, Tatielli destaca outra dificuldade: a falta de recursos financeiros. O custeio das despesas da família vem da renda do trabalho como cabeleireira e do benefício dos irmãos —mas o valor ainda sofre um desconto devido a um empréstimo feito pela mãe de Tatielli.
"A minha principal dificuldade é cuidar deles com pouco recurso e sem a ajuda de ninguém, que não sejam as cuidadoras. Cuidador não é uma mão de obra barata. Além disso, todas as despesas de uma casa que lava roupas todos os dias, água, energia, material de limpeza e alimentação são enormes. Temos fraldas, medicamentos e descartáveis que são gastos infinitos."
No Instagram, Tatielli compartilha a rotina com os irmãos. Foi nas redes sociais que encontrou apoio para a realização de uma vaquinha, que tem ajudado nas despesas. "Sem as doações não consigo pagar as cuidadoras para trabalhar e criar meu filho. Toda ajuda é bem-vinda".
A cabeleireira, que trabalha cuidando dos outros e não tem tempo para cuidar de si, faz um desabafo:
"Do fundo do meu coração e com bastante medo dos julgamentos, eu não queria ter essa preocupação. Eu não posso correr o risco de morrer e deixar essa carga para o meu filho. Eu dediquei a minha vida toda a eles e à minha mãe. Eu só queria, no fim da vida, cuidar de mim mesma."
Quem cuida de quem cuida?
O psiquiatra Laerte Romualdo, mestrando em educação em saúde pela Unifesp, atua em um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), que recebe pessoas com neurodivergência, importantes limitações e transtornos mentais graves. Com frequência, precisa acolher as angústias e o sofrimento dos cuidadores (grande parte, mulheres), que têm mais risco de sintomas depressivos e ansiosos.
A sobrecarga do cuidador é um problema de saúde pública e merece políticas públicas específicas. Por exemplo, são necessários locais para o revezamento do cuidado, como instituições de saúde do SUS e unidades de ensino estruturalmente equipadas e humanamente capacitadas. O SUS também deve dispor de equipes capazes de acolher adequadamente as cuidadoras e os cuidadores informais.
Laerte Romualdo, psiquiatra
Ela destaca que, muitas vezes, a tarefa fica a cargo de cuidadoras informais. "O papel de cuidado em nossa sociedade é muito direcionado a mulheres, especialmente mulheres pretas e que não recebem um ganho financeiro pelo cuidado."
O psiquiatra reforça ainda a importância de fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (Raps): "Devemos fortalecer o SUS, com boas políticas de formação de profissionais e financiamento adequado dos dispositivos, para que as Raps de todos os municípios estejam adequadamente capacitadas para acolher crises como as descritas na reportagem".
Assim evitamos o retrocesso a épocas não tão distantes em que pessoas eram internadas nos manicômios com critérios pouco definidos e mantidas indefinidamente nesses locais, com graves violações de direitos humanos e nenhuma proposta verdadeiramente terapêutica.
Laerte Romualdo, psiquiatra
O terapeuta ocupacional Victor Hugo Rodrigues Medeiros, mestre em ciências da saúde e pesquisador em saúde mental e deficiências, também atua na saúde pública. Ele destaca a importância da participação da sociedade e do vínculo comunitário no cuidar.
"Tem um autor da reforma psiquiátrica, Benedetto Saraceno, que fala: quanto mais dependente a gente é de coisas da nossa comunidade, da escola, do centro comunitário, por exemplo, mais independente a gente é. Quanto mais rede de apoio temos, mais independentes somos", afirma.
A assistente social Aline Salinas, mestre em políticas sociais, atua na promoção do Sistema Único de Assistência Social (Suas) no âmbito municipal e defende o fortalecimento da rede de apoio nas cidades.
"Geralmente os cuidadores são pessoas economicamente ativas, que estão no mercado de trabalho e, em contrapartida, não têm um serviço que dê suporte para que trabalhem e voltem para casa com o seu familiar", diz Aline.
Política Nacional de Cuidados
No final do ano passado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 15.069, de 2024, que estabelece a Política Nacional de Cuidados, que prevê a garantia do direito ao cuidado e estabelece a corresponsabilidade social entre Estado, família, setor privado e sociedade civil.
Entre os principais objetivos da lei está a integração de políticas públicas nas áreas de saúde, assistência social, trabalho, educação e direitos humanos. Os trabalhadores do cuidado, remunerados ou não, estão entre o público prioritário da proposta.
5 comentários
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.
Carla Nechar de Queiroz
Certo...na prática, essa corresponsabilidade vai ser como? Empressas doarão insumos descartáveis, contratarão cuidadores para quem necessita e não pode pagar? Como essas palavras se concretizararão para quem necessita?
Jose Geraldo Brito Filomeno
Essas senhoras são mais do que heroínas. Abnegadas e conformadas, descuidando-se até mesmo de si próprias. Saúde e muita coragem. Vivo uma situação semelhante, e já idoso. Mas Deus está sempre ao meu lado! E rendo-lhe graças todos os dias.
Ricardo Ribeiro de Castro
Hoje mesmo, no portal do UOL, saiu uma notícia sobre juízes de direito (funcionários públicos) que receberam mais de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), num único mês ....