'Meu ex era diplomata, me espancou e recomecei vendendo picolé na praia'
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Por muito tempo, Joyce Paiva tentou seguir em frente sem falar sobre o que viveu. Hoje, aos 30 anos, ela decidiu contar sua história. Vítima de violência doméstica, Joyce foi agredida pelo companheiro —um ex-diplomata que, anos depois, seria condenado pela Justiça.
O processo de denúncia, apesar de necessário, não foi simples e nem trouxe alívio imediato. O que veio depois foi uma longa travessia: deixar para trás uma vida aparentemente estável, em São Paulo, lidar com os traumas e, aos poucos, reconstruir a própria identidade longe de tudo.
A Universa, Joyce narra o ciclo de violência, o afastamento forçado da vida que planejou e a escolha radical de recomeçar em Porto de Galinhas (PE) —onde, pela primeira vez em muito tempo, se sentiu em paz.
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'Começou como um conto de fadas'
"Eu não tenho tabu nenhum de falar sobre isso, embora esse assunto tenha me causado muita dor. Meu nome é Joyce Paiva, e esse é meu relato de violência doméstica.
No meu último relacionamento, eu quase morri. Sempre achei que nunca estaria em um relacionamento abusivo, pois me considerava uma mulher muito forte, mas era um pensamento errado, qualquer uma pode ser vítima.
Eu me lembro de estar no chão enquanto ele me batia e pensar: 'como eu vou sair dessa situação?'
Conheci o ex-diplomata Renato de Ávila Viana em 2016. Eu ainda trabalhava no Ministério da Justiça, em São Paulo. Tinha terminado um namoro longo, daqueles da adolescência, e me considerei pronta para uma nova história.
Quando conheci o Renato, me senti segura. Era um homem inteligente, cortês, aparentemente gentil. Logo no nosso primeiro encontro, me buscou no trabalho, foi atencioso. Me apaixonei. E ele também --pelo menos parecia.
Joyce Paiva
Mas toda relação abusiva começa assim, né? Como se fosse um conto de fadas. E aos poucos, sem a gente perceber, o conto vira pesadelo.
'Quebrou meu celular no meio'
Com o tempo, o "cuidado" virou controle. O ciúme era extremo.
Uma vez, ele achou uma mensagem de um colega da faculdade perguntando sobre um trabalho em grupo e quebrou meu celular no meio, numa crise de fúria.
Depois, apareceu com um contrato dizendo que só me daria outro se eu assinasse. Nele, cláusulas absurdas: que eu não poderia responder mensagens depois das 22h e nem conversar com homens. Rasguei o papel. Comprei meu próprio celular. Mas continuei com ele.
Até que chegou o dia em que tudo passou do simbólico para o físico. Na época, ele tinha ido para São Paulo e pediu para eu cuidar das plantas da casa dele. Plantei um jardim na varanda, limpei a casa, troquei os lençóis.
Peguei o carro dele —uma BMW— e fui ouvir música, dirigir, aproveitar. Nada demais, mas, para ele, foi um gatilho.
Quando voltou, surtou ao ver o Bluetooth do carro conectado no meu nome e os lençóis trocados. Disse que eu "tinha dado pra outro homem" na casa dele. Me empurrou. E eu, sem entender, tentei ir embora.
Mas aí veio o choro. Ele dizia que era um lixo, que não merecia meu amor, e eu, por incrível que pareça, senti pena. Ainda não tinha apanhado de verdade. Ainda achava que podia consertar.
Até o dia em que ele me agrediu com tanta força que meu dente da frente quebrou.
Joyce Paiva
É muito difícil superar isso. Porque é o tipo de violência que deixa marca. Não só física. Eu me olhava no espelho e via aquilo. Não dava para esquecer. Eu sempre fui uma pessoa sorridente —e de repente, sorrir virou vergonha.
Fui atrás de dentista. Coloquei um implante. Mas, um dia, o dente caiu de novo —depois de outra cabeçada que ele me deu. Ele sorriu. Disse algo como: "Bem feito". Ele se sentia vitorioso por isso ainda me atingir. E atingia. Muito.
'Eu desmoronei'
Anos depois, ele foi condenado pela Justiça. Foram dois processos —um por ameaça e outro por lesão corporal grave. A segunda condenação foi justamente pelo episódio em que ele me espancou e fez meu dente se soltar. Ele me segurou pelo rosto com tanta força que a prótese dentária caiu.
A pena foi de cinco anos e dez meses de prisão em regime fechado, mas ele ficou apenas cinco meses preso —de outubro de 2018 a março de 2019— e conseguiu progredir para o regime aberto. Ainda tentou recorrer com um habeas corpus, mas o pedido foi negado.
Quando isso aconteceu, eu desmoronei. Tinha feito tudo certo. Denunciei, prestei depoimento, encarei audiência, enfrentei o medo. E, no fim, ele ficou pouco mais de cinco meses preso e voltou para a rua como se nada tivesse acontecido.
Eu não me sentia segura. Não conseguia continuar minha rotina como se aquilo fosse normal.
Joyce Paiva
'Comecei do zero'
Larguei tudo, no oitavo semestre de direito, com um concurso público na bagagem e um futuro todo estruturado na teoria. Mas eu já não me reconhecia ali fazia tempo. A cada dia, parecia que eu ia me afastando mais de mim.

A conta não fechava: eu tinha feito tudo "certo", mas acordava triste, ia dormir esgotada, e a sensação era de que eu estava vivendo a vida de outra pessoa.
Então eu fui embora. Vim para Porto de Galinhas sem grandes planos, só com uma urgência dentro do peito: eu precisava recomeçar.
Precisava me dar a chance de construir uma vida que fosse minha, de verdade —ainda que parecesse loucura aos olhos de quem ficou. Aqui eu comecei do zero, vendendo pizza artesanal e picolé na praia. Pode parecer pouco, mas aquilo foi meu respiro, meu retorno ao corpo. Era simples, mas era meu.
Chamo esse tempo de exílio porque foi um afastamento necessário do mundo que me adoecia —e também de tudo que eu fingia ser. Viver aqui me obrigou a encarar a solidão, os traumas, o silêncio. Mas foi também onde eu comecei a limpar as feridas com sol, sal e coragem. Se era para estar no fundo do poço, que fosse perto do mar, com o pé na areia e alguma alegria possível no fim do dia. Joyce Paiva
Hoje eu entendo: empreender aqui não foi só uma mudança de rumo. Foi um ato de sobrevivência, um gesto de amor por mim mesma. Ainda carrego dores, marcas, mas também levo comigo a certeza de que fiz o que precisava ser feito. Escolhi viver. Escolhi me escutar. Escolhi a liberdade, mesmo que isso significasse abrir mão de tudo que parecia "garantido". E nunca mais olhei pra trás.
Hoje, sou casada com um homem gentil, que me respeita. Tenho um filho maravilhoso. E mesmo que a lembrança daquele dente quebrado ainda exista, ela já não dói como antes. Porque agora ela também carrega a história de uma mulher que sobreviveu —e que escolheu ser feliz."
Defesa negou acusações
Renato ocupava o cargo de primeiro-secretário do Ministério das Relações Exteriores quando foi demitido, em 2018. Na época do processo, a defesa negou as acusações e disse que não havia provas suficientes para a condenação. A reportagem tentou entrar em contato novamente com a defesa de Renato, mas não obteve retorno —o espaço segue aberto.
Como procurar ajuda
Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia.
22 comentários
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Aldo Batista dos Santos
Essa mulher é um exemplo de coragem e superação. Enquanto o ex, com título de diplomata, usava o prestígio para esconder covardia e violência, ela renasceu das cinzas com trabalho honesto e dignidade. Nenhum cargo, por mais pomposo, justifica impunidade. Chega de sistema que protege agressores com foro e influência enquanto vítimas precisam vender pizza para sobreviver. Justiça de verdade pune o agressor — não passa pano com título e sobrenome. Toda solidariedade a ela. Que sua história inspire outras a romperem o ciclo de abuso e reconstruírem a própria liberdade.
Márcio Della Rosa
"Reprimidos" que odeiam mulheres formam "fraternidades de mútuo socorro"...
Antonio Luiz de Melo
Pensou em mamar na teta do diplomata infelizmente se lascou, podem falar um monte do meu comentário mas é a mais pura verdade várias mulheres para terem uma vida boa se sujeita a qualquer coisa