'Sou assexual: beijei aos 31 anos e não faria de novo, é cansativo'
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"Meninas ou meninos?" Essa dúvida ecoou na cabeça da professora Carla*, 32, até os 23 anos, quando ela se entendeu bissexual. No ano passado, porém, ela percebeu que a ideia de desejar alguém sexualmente não lhe trazia prazer, mas pavor.
Avaliando, notou sentir-se assim desde a adolescência. Foi quando se descobriu assexual, aos 31 anos. A assexualidade existe quando há diminuição ou ausência de tesão, sem sofrimento por isso.
Carla se entende como uma assexual estrita, caracterizada pela falta total de desejo. A Universa, ela conta como foi se descobrir assexual e os julgamentos que enfrenta por nunca ter namorado.
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'Não via graça'
"Me identificava como bissexual até o ano passado. Mas era difícil me envolver com outras pessoas. Quando eu era mais jovem, principalmente adolescente, eu pensava: será que sou a pessoa mais feia do mundo? Mas, olhando para trás, percebi que as pessoas se interessavam por mim, só que eu travava e fugia, tinha pavor de ficar com alguém.
Hoje, vejo que deixava chances de me envolver passarem, porque não via graça, não tinha interesse. Achava que era muito trabalho para algo que não daria retorno e satisfação.
Eu tinha 'paixonites' por meninos e meninas. Eram pessoas com quem queria passar tempo, mas nada além disso. Acho que era só um sentimento por alguém que eu achasse legal, bonitinho, mas, se quisesse algo comigo, eu ia sair correndo.
Sempre fui 'fanfiqueira' [leitora de 'fanfictions', textos escritos por fãs com base em personagens ou pessoas reais] e muito romântica, mesmo não me imaginando no lugar da protagonista.
As fanfics me ajudaram a entender diferentes sentimentos e sexualidades. Lendo as histórias, entendi que nunca senti o que aqueles personagens sentiam. Com uns 25, 26 anos, achei ser demissexual (quando a atração só surge depois de se estabelecer uma intensa conexão pessoal), aí passei a dizer que eu precisava ter conexão para me sentir atraída.
'Não sabia o que era beijar'

Eu não sabia o que significava sair com uma pessoa e beijar alguém até o ano passado. Baixei aplicativos de relacionamentos, porque eu nunca flertei na vida, já tentei várias vezes. Se alguém 'chegava' em mim na vida real, era muito ruim. É algo que agora trato na terapia, sobre ser vista de um jeito que eu não vejo as pessoas, com desejo.
Eu estava em uma fase psicologicamente boa e ainda assim foi cansativo conhecer alguém. [A pessoa que conheci] era super respeitosa, a conversa fluía, estávamos próximas, mas era cansativo, como se eu estivesse trabalhando nas férias.
Foi muito mecânico, não tinha atração para mim. Nos beijamos, e eu não me senti bem, foi uma performance. Beijar não foi horrível, mas não faria de novo.
Um dia, quando nos despedimos, eu só pensei que não queria fazer aquilo de novo, porque estava performando. Saímos por um mês inteiro, e eu performando. Foi quando me entendi assexual, percebi que não tenho atração sexual por ninguém, porque agora conheço mais sobre a sexualidade em comparação com o período da adolescência.
Disse à mulher com quem eu estava saindo que eu não conseguia seguir em frente, mas não falei que tinha me descoberto assexual, porque achei que ela poderia se ofender de alguma forma. Tenho tentado aceitar, porque tem muita pressão de fora e de dentro, ainda mais quando se é mulher.

'Me envolver com intimidade sexual não é para mim'
Sou a única assexual que conheço, é algo difícil de expor. As pessoas não acreditam, e eu também estou aceitando, me entendendo. A minha mãe sabe que sou assexual e respeita, assim como o meu pai, mesmo ele sendo evangélico.
A maior pressão é minha, eu acho, porque eu queria que fosse mais fácil. Antes, me sentia muito envergonhada por não me envolver com ninguém. Mas entendo que me envolver com intimidade sexual não é para mim.
Teve um dia no cinema que um casal se beijava o tempo inteiro, e eu pensei: que chato deve ser namorar uma pessoa e ter de ficar lembrando de beijar o tempo todo.
Quanto mais velha, mais peso existe por você nunca ter namorado, estar com alguém. Todo mundo quer namorar, todo mundo tem atração pelas pessoas. Li relatos de pessoas assexuais que se forçaram a transar, então fico aliviada por ter me respeitado. Se eu tivesse, mais nova, me forçado a ir além, isso teria me feito muito mal. Acho que o meu sentimento de não ter namorado é diferente de quem conheço e quer."
Entenda a assexualidade
A falta de desejo sexual não exclui a vontade de ter vínculos amorosos. Assexuais (mesmo os estritos, como Carla) se interessam por pessoas, podem namorar e casar. "O que pauta essa troca é o companheirismo, o afeto, a intimidade, o carinho, tudo o que existe em um relacionamento para além do sexo. A pessoa pode ter interesse de construções de vínculos bastante profundos, intensos", explica a psicóloga Michelle Sampaio, especialista em sexualidade humana pela USP.
É mais comum que adultos se entendam como assexuais, pois já convivem há bastante tempo com ausência do interesse sexual. Mas adolescentes costumam desconfiar mais frequentemente nos últimos anos pelo maior acesso à informação. "O que eu sempre falo para os meus pacientes adolescentes e jovens adultos é que não é para ter pressa, a gente não precisa ter urgência em definir a nossa orientação sexual, até porque ela é fluida."
A falta de prazer sem angústia ou sofrimento é o que caracteriza a assexualidade. Isso difere de quando a perda de interesse é um sintoma de algum problema fisiológico ou emocional. É a chamada disfunção sexual, que causa desconforto à pessoa e é transitória quando tratada a causa.
Pressão social e falta de compreensão nas parcerias são dificuldades comuns. Segundo Sampaio, o estigma é comum contra assexuais, o que causa a sensação de não pertencimento com frequência. Há ainda a dificuldade de cultivar relações afetivas baseadas no respeito e compreensão, mas sem sexo.
Nessa busca de liberdade, parece que todo mundo da sociedade tem de ser muito transante. E aí a pessoa se sente muito não pertencente, excluída quando percebe que não tem desejo e não quer ter e está bem assim. Michelle Sampaio, psicóloga especialista em sexualidade
Existem espectros na orientação sexual, como a demissexualidade (quando a atração só surge depois de se estabelecer uma intensa conexão pessoal). "São nuances que acontecem porque temos formas diferentes de manifestar uma mesma sexualidade, de acordo com a construção sexual de cada pessoa", explica Michelle Sampaio.
*nome alterado para preservar a identidade
19 comentários
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Luiz Fernando Pizzo
Pessoas assim estão casadas consigo mesmas. Se estão bem é o que importa. Cada um com sua cruz.
Paulo Haroldo Ribeiro
Que tristeza... uma pessoa fechada para o amor, o afeto, o sexo, a formação de família. Claro que, no fundo, ela não está bem com isso, senão não estaria fazendo terapia por causa disso. Eu conheço gente assim, e na aparência não são pessoas infelizes, apenas incompletas (a meu ver). Você pode passar a vida sem comer pizza, chocolate e sorvete... mas vale a pena? Imagine com o amor e todos os espectros da paixão e do sexo. E querendo que ninguém "julgue", como se fôssemos obrigados a parar de pensar.
Herbert Luiz Braga Ferreira
Eu gosto imensamente de sexo. Mas nem tudo são flores; o desejo e a paixão não retribuídos podem ser profundamente dolorosos. Assim, sexo só é bom quando o tesão é recíproco e compartilhado. Quanto aos assexuais, é pena (ou talvez não?), mas um aspecto importante da vida humana estará para sempre vedado a eles...