Médicos criticam novas regras do CFM para transição de gênero em crianças

A aprovação do CFM (Conselho Federal de Medicina) da nova resolução sobre como profissionais de saúde devem tratar crianças e adolescentes transgênero, na última sexta, é alvo de críticas do movimento LGBTQIA+ e de profissionais de saúde. O documento afeta os três passos da transição de gênero.

A nova resolução do CFM determina o fim do bloqueio puberal para crianças transgênero. Aprovado pela resolução anterior, de 2019, ele não será mais permitido.

Além disso, altera as idades mínimas para protocolos hormonais e cirúrgicos, revertendo a definição do próprio órgão, de 2019. A terapia hormonal passa a ser permitida a partir dos 18 anos — antes era a partir dos 16 anos — e procedimentos cirúrgicos que podem interferir na fertilidade deixam de ser permitidos aos 18 anos e passam a ter como idade mínima os 21 anos.

Na tarde desta segunda, o Ministério Público Federal instaurou um procedimento para investigar a legalidade da resolução, ainda não publicada no Diário Oficial da União. Também foi encaminhado ofício para explicações sobre as mudanças e, a partir da resposta, o MPF deverá analisar medidas a serem tomadas.

Procurado pela reportagem, o CFM não se manifestou até a publicação.

Inspiração em resolução britânica

Segundo o documento, divulgado pela Folha de S.Paulo, as mudanças são pautadas pelo que acontece no exterior, citando nominalmente o Reino Unido, que fez alterações similares em seu código de conduta médico.

Sem novas estatísticas sobre o tema, a resolução britânica diz que, com a chegada da puberdade, maior parte dos jovens com disforia de gênero se conecta com seu "sexo biológico". A informação vem de um estudo de 2008 da Universidade de Surrey, na Inglaterra. Além disso, o documento cita aumento em casos de "destransição" para mudar os protocolos.

As conclusões da resolução britânica são contestadas, por exemplo, por Saulo Vito Ciasca, psiquiatra do Núcleo Trans Unifesp - Famílias, Adolescências e Infâncias, que nega aumento de casos e afirma que, em seus 12 anos de trabalho com crianças e adolescentes transgênero, apenas um jovem destransicionou após a terapia hormonal.

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"Parar a transição de gênero não necessariamente ocorre por arrependimento ou falha do acompanhamento", disse.

Outro estudo mostra que menos de 2% das pessoas que iniciam transição de gênero antes dos 18 anos se arrependem. Publicada na The Lancet Child & Adolescent Health, esta pesquisa feita por clínica de identidade de gênero na Holanda é a maior já realizada até o momento sobre a continuação do tratamento hormonal em menores de idade.

Ainda segundo o mesmo estudo, mais de 90% das pessoas que mudam de ideia em relação à transição o fazem por falta de aceitação da família, pressão social ou dificuldades financeiras, e não por deixarem de se identificar com outro gênero.

Preocupação médica

Ciasca se diz preocupado com as consequências da nova resolução.

"Atendo crianças e adolescentes que chegam ao serviço de saúde com transtornos de ansiedade, sofrimento intenso e frequentemente risco de suicídio porque querem ter sua identidade de gênero legitimada. Muitas vezes, esses jovens chegam com desejo de modificação corporal ou com medo da chegada da puberdade", afirma

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Entendo que essa nova resolução poderá refletir na piora da saúde mental desses jovens.
Saulo Vito Ciasca, psiquiatra do Núcleo Trans Unifesp - Famílias, Adolescências e Infâncias

Ciasca explica que, diferentemente do que se imagina, não é só chegar no ambulatório e dizer que quer fazer terapia hormonal ou bloqueio da puberdade. Segundo ele, bloqueio puberal e terapia hormonal só são iniciados após anos de protocolo de atendimento.

Além de ser necessário tempo adequado de acompanhamento avaliando caso a caso, os jovens são consultados por médicos especializados e equipes multidisciplinares, que analisam a real necessidade e o momento certo para iniciar os tratamentos.

O médico explica, ainda, que pais e responsáveis também são ouvidos e acompanham o tratamento dos filhos, sendo responsáveis por autorizar ou não o início dos procedimentos.

Mesmo após a resolução de 2019, quando o CFM definiu 16 anos como a idade mínima para terapia hormonal, Ciasca conta que a maior parte dos pacientes chegava ao ambulatório fazendo uso de hormônios por conta própria.

Temo que essa resolução volte a aumentar os casos de automedicação, que adolescentes comecem a terapia hormonal sem acompanhamento médico por conta própria.
Saulo Vito Ciasca, psiquiatra

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"Retrocesso total"

Presidente da ONG Minha Criança Trans, Thamirys Nunes se diz surpresa com "o retrocesso que o CFM está promovendo".

À reportagem, ela cita que a proibição ao bloqueio puberal promove sofrimento na criança que está em acompanhamento e não quer ver características de seu sexo biológico aparecerem.

Thamirys é mãe de uma menina transgênero de dez anos. "Crianças trans não têm tantas normativas que as protejam e garantam esses direitos. Por isso, se tornam alvos mais facilmente. Quando protocolos que já vinham sido trabalhados são negados, essa população é jogada para a automedicação", diz.

Ela conta que o acompanhamento da filha começou há seis anos e, depois desse tempo, ela tinha a perspectiva de fazer o bloqueio puberal quando chegasse o momento. "Agora, vemos isso escorregar na nossa frente."

Advogada questionará CFM na Justiça

Bruna Andrade, advogada especializada em direitos LGBTQIA+ e mestre em direitos humanos, afirma que "há um arcabouço jurídico muito vago" e que "medidas necessárias serão tomadas para garantir às crianças o direito à saúde".

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"Essa resolução do CFM vai de encontro ao que o nosso Judiciário tem estabelecido como necessário para garantia mínima de acesso à saúde às pessoas transgênero. Nossa perspectiva é que a resolução seja afastada, levando em conta uma necessidade mais abrangente", diz.

Nosso trabalho enquanto jurídico é bater na porta do Judiciário assim que a resolução for publicada e pedir um afastamento imediato dessas regras. Pedir que volte à resolução antiga ou que seja criada uma nova, com maior acessibilidade à necessidade desses jovens trans.
Bruna Andrade, advogada

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