'Transfóbicos saíram do armário': como volta de Trump afeta pessoas trans

Medo de andar na rua, de frequentar ambientes públicos e de realizar atividades cotidianas passou a ser uma realidade na vida de pessoas transgênero que moram nos Estados Unidos, desde a volta de Donald Trump à Presidência.

Já nas primeiras horas de governo, o presidente tomou uma série de medidas contra esta comunidade, incluindo a eliminação do termo "transgênero" em agências governamentais, assinatura de um decreto no qual sua administração reconhece a existência de apenas dois gêneros, além da proibição da participação de pessoas trans nas Forças Armadas —esta ordem foi suspensa pela Justiça em março.

Por causa dessas ações, pessoas transgênero afirmaram a Universa se sentirem inseguras, num cenário em que a transfobia está mais em evidência. Desde 20 de janeiro, quando Trump tomou posse, o número de chamadas para a ONG Trans Lifeline, que oferece suporte telefônico a pessoas trans, aumentou 800%, segundo Nat Moghe, membro do conselho administrativo da organização.

A brasileira Pauleteh Araújo, 29, que nasceu em Salvador, mas mora em Nova York há cerca de dez meses, conta que começou a sentir os efeitos do novo governo logo de cara. No segundo dia do novo mandato do republicano, ela foi surpreendida com uma mensagem transfóbica em um aplicativo de relacionamentos.

Homem disse à Pauleteh em mensagem que só existem dois gêneros
Homem disse à Pauleteh em mensagem que só existem dois gêneros Imagem: Arquivo pessoal

"Um homem me escreveu que o Trump havia decretado a existência de apenas dois gêneros e que eu deveria me jogar da janela", recorda.

Estou pensando em comprar uma arma de choque. Se eu já precisava de uma antes, agora a necessidade é muito maior. Infelizmente, as pessoas estão se sentindo confortáveis o suficiente para abordar pessoas trans de forma agressiva. Pauleteh Araújo, 29

Pauleteh iniciou sua transição hormonal de gênero ainda no Brasil, há cerca de três anos. Apesar disso, sua trajetória de autoconhecimento é mais longa —ela sempre experimentou se vestir com roupas femininas às escondidas. Filha de pais evangélicos, levou um tempo para se aceitar.

Em 2020, ela foi eleita vereadora suplente no município de São Sebastião (SP) pelo PP e vinha sofrendo ameaças de opositores. Em abril de 2024, foi aos Estados Unidos para gravar um documentário e, por questões de segurança, decidiu ficar no país. Atualmente, trabalha com faxina e pensa em um plano para viabilizar os estudos.

Continua após a publicidade

'Transfóbicos estão saindo do armário'

Jess Elwood cogita mudar de país caso situação se torne insustentável nos EUA
Jess Elwood cogita mudar de país caso situação se torne insustentável nos EUA Imagem: Arquivo pessoal

A empreendedora Jess Elwood, 48, natural de Chicago, se assumiu trans em junho de 2024. Em setembro do mesmo ano, deu início ao tratamento hormonal.

Jess conta que demorou a ter a coragem necessária para se assumir como trans. Um dia, quando assistia à Parada do Orgulho de Chicago pela televisão, teve um estalo. "Eu pensei: 'Sabe, eu tenho 48 anos. Geralmente, os efeitos completos da terapia hormonal levam de dois a cinco anos. Se eu não começar agora, daqui a pouco terei 50 anos. Vamos fazer isso'", relata.

Desde que Trump venceu a eleição, Jess se empenhou em acelerar o processo de mudança de nome e de gênero em seus documentos de identificação. A retificação do passaporte, com o gênero feminino, foi inicialmente negada. No início de março, ela passou por audiência e conseguiu mudar legalmente seu nome.

Embora tenha sentindo na pele os efeitos das medidas adotadas por Trump, Jess considera que os eleitores do republicano são ainda mais assustadores. Ela nunca sofreu um ataque transfóbico, mas teme o que o pode vir a ocorrer.

Continua após a publicidade

Para mim, o mais assombroso é saber que mais da metade do país se identifica com o discurso de Trump. A transfobia não aumentou —os transfóbicos é que estão saindo do armário. Jess Elwood, 48

Filha única, Jess não tem parentes próximos. Hoje, os únicos que se mantêm por perto são os amigos. Em novembro, dois meses depois de dar início ao tratamento hormonal, ela perdeu a mãe.

Jess chegou a contar a ela sobre a mudança de gênero, mas não sabe se ela entendeu, uma vez que, no final da vida, já apresentava sinais de senilidade. O pai morreu em 2016.

Por enquanto, ela não pensa em deixar os Estados Unidos. Se a situação ficar insustentável, considera se mudar para um país mais seguro para pessoas trans —segundo suas pesquisas, Portugal seria uma opção. "Meu pai é da Letônia. A família dele atravessou a Europa durante a Segunda Guerra Mundial para evitar os soviéticos. Arriscaram tudo para chegar aqui", diz. "Não posso ir embora agora."

'Me sinto desamparado'

Vicenzo diz temer não conseguir se casar ou adotar um filho nos EUA
Vicenzo diz temer não conseguir se casar ou adotar um filho nos EUA Imagem: Arquivo pessoal
Continua após a publicidade

Vincenzo Pires, 28, nasceu em São Paulo e mora em Los Angeles desde 2021. À época, foi aos Estados Unidos para cursar graduação em Mercado Musical. Terminou a faculdade e hoje trabalha na área de marketing.

A transição de gênero de Vincenzo teve início em março de 2020 —foi nessa época que ele se reconheceu como homem trans. Pouco tempo depois, em junho, deu início ao tratamento hormonal de gênero.

Vincenzo afirma que esta é a primeira vez, desde a transição, que se sente inseguro por ser uma pessoa trans. Não só pelo discurso de Trump, como pelas medidas adotadas por ele para tolher seus direitos e de seus iguais.

Esta é a primeira vez que me sinto vulnerável diante de políticas que nos atingem diretamente. A comunidade LGBTQIA+ sai prejudicada, de forma geral, mas sinto que existe um ódio maior direcionado a nós. Vincenzo Pires, 28

Vincenzo sente que a transfobia está mais disseminada e que discursos e crimes de ódio agora parecem ter mais legitimidade. Apesar disso, isso não é o que mais o aflige neste momento.

Como está em tratamento hormonal há cinco anos, é percebido como um homem cisgênero —a condição, descrita como "passabilidade", o poupa de ataques transfóbicos. O maior medo do brasileiro é perder os direitos civis que seus iguais tanto lutaram para conquistar.

Continua após a publicidade

"Eu tenho esse privilégio da passabilidade. Por isso, não tenho tanto receio de andar na rua", diz. "Temo não conseguir me casar, adotar um filho ou fazer inseminação, constituir uma família", explica.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.