Cris Guterres

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Opinião

'A Substância' mostra como a obsessão pela juventude destrói as mulheres

De repente, as mudanças no seu rosto parecem te trair. Rugas, fios brancos, marcas do tempo. Em vez de contarem a sua história, te fazem questionar o seu valor. Como se o tempo estivesse jogando contra você, como se cada ano vivido fosse uma derrota. Já se pegou pensando assim ao se olhar no espelho? Porque esse é exatamente o sentimento de Elisabeth Sparkle, vivida por Demi Moore, no filme "A Substância", que está em cartaz pelo país.

Elisabeth foi uma estrela de Hollywood nos anos 80, uma "deusa do fitness", estilo Jane Fonda. Mas agora, a idade chegou, e a indústria, que exalta a juventude, não perdoa. Quando ela perde seu programa de TV por ser considerada "velha demais", começa uma busca desenfreada por uma solução milagrosa. E então, surge a tal substância misteriosa prometendo devolver sua juventude. Só que o preço é alto: ela precisa dividir a vida com sua versão mais jovem, Sue (Margaret Qualley), e, a cada momento, sua essência e identidade escorrem por entre os dedos.

Saí do cinema com a cabeça a mil. O filme não alivia na hora de mostrar a violência da pressão estética. As imagens perturbadoras são uma metáfora clara da destruição física e psicológica que essa cobrança absurda impõe sobre nós, mulheres. O filme não se contenta com uma crítica social suave, ele vai direto ao ponto: a busca incessante pela juventude se transforma em algo grotesco e doloroso, expondo a fragilidade do corpo sob essa pressão impiedosa.

A verdade é que nós, mulheres, somos bombardeadas o tempo todo com a ideia de que só seremos bonitas, desejáveis e relevantes se formos jovens. É uma prisão, uma cilada, como o filme tão bem mostra. Uma armadilha que nunca foi feita para nós.

Essa pressão não nasce de dentro. Ela vem de fora. De uma sociedade que, desde cedo, nos ensina que a juventude é o nosso maior tesouro. E quando ela escapa por entre nossos dedos, parece que nosso valor vai embora junto. A cada sinal de envelhecimento, é como se um pedaço da nossa essência desaparecesse e junto com ele, nossa capacidade de ser amada, respeitada, desejada.

Na trama, Elisabeth é descartada pelo diretor da TV, um homem velho, relaxado e grotesco, que simboliza o poder patriarcal e uma indústria obcecada pela juventude. Ele representa todos aqueles homens que envelhecem sem serem cobrados, mas que impõem às mulheres o dever de serem eternamente jovens e atraentes.

Ao dizer para Elisabeth, no dia do seu aniversário de 50 anos, que ela "para" a partir daí, ele reduz sua existência e valor a nada mais do que sua aparência física. Essa é a metáfora perfeita de como a sociedade trata as mulheres que mostram seus sinais de envelhecimento como descartáveis, ignorando suas habilidades e experiências, em troca de uma juventude que só serve para satisfazer o olhar masculino.

E aqui vai o ponto que "A Substância" me fez ver com tanta clareza: o problema nunca foi o tempo. O problema são os padrões que nos fazem acreditar que envelhecer é o fim, que nosso valor diminui conforme os anos passam. O verdadeiro problema são aqueles que tentam nos convencer de que nossa felicidade, nosso amor-próprio e nossa beleza têm prazo de validade.

E não me venha dizer que você não conhece esses caras. Aqueles que, sem titubear, soltam pérolas como "aos 50 você para" ou que "mulher de 30 já passou da idade de casar". Homens carecas, feios e cheios de ódio, que bebem Campari e acham que podem ditar regras em podcasts medíocres.

Envelhecer não é perder. Envelhecer é viver. Cada marca do tempo deveria ser vista como uma medalha, uma conquista, não uma falha. Que sejamos livres para ser quem somos, em qualquer idade, sem precisar de aprovação de ninguém. Porque a juventude não é o que nos define. O que nos define é a força de rejeitar essas imposições e viver plenamente em nossa própria pele sem medo, sem vergonha e sem precisar agradar a ninguém.

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Demi Moore está incrível em "A Substância", e o que torna sua atuação tão poderosa é justamente o jeito como ela abraça a realidade do seu corpo. Diferente de muitos papéis que exigem perfeição, ela se mostra vulnerável, exibe suas rugas e marcas do tempo sem disfarces ou medos.

É uma performance corajosa que traz à tona uma discussão importante: como nós, mulheres, somos condicionadas a esconder o envelhecimento, a apagar o que o tempo deixa em nossos corpos. Mas Demi desafia essa lógica. Ela mostra que o corpo que viveu, que sentiu, que passou por tantas fases, é belo e merece ser visto em toda sua verdade. Sua atuação vai além da ficção; ela nos lembra que nosso corpo é nossa história e que há poder e liberdade em abraçar isso.

E isso aqui não é sobre criticar quem escolhe fazer procedimentos estéticos. De forma alguma. Se você quer botox, faça. Se quer plástica, vá em frente. A crítica é para o mundo que nos empurra para essas escolhas, ditando padrões impossíveis. O problema é quando essas decisões não vêm de dentro, mas do medo de ser menos, de não se encaixar.

A luta não é contra o envelhecimento. A luta é contra a ideia de que nossa felicidade, nosso valor e nosso amor-próprio têm data de validade. Merecemos viver em um mundo onde podemos ser belas, jovens ou não, aos 50, aos 60, aos 70, sem precisar provar nada para ninguém.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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