Cris Guterres

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Opinião

Deus tem CNPJ? Porque tem gente faturando alto com o nome dele

Se a fé salva, o engajamento santifica. Nos últimos anos, vimos a espiritualidade se digitalizar e ganhar contornos de influenciador. E, como tudo que entra nesse universo do conteúdo, ela também virou produto. A fé agora tem filtro, borda branca, legenda com versículo e cronograma de postagens. E mais: tem link na bio, precificação e assessoria de imprensa.

Nas redes sociais, proliferam os "influencers de Deus", gente que faz da experiência religiosa uma marca pessoal e da salvação, um ativo de autoridade. São vozes que dizem falar em nome do Pai, mas que se expressam melhor na língua do marketing digital. A fé virou nicho. E dos bons.

A performance da conversão rende. Atrai seguidores, contratos, convites. Não falo aqui de quem vive a fé no cotidiano, com contradição e silêncio. Falo de quem edita até o sagrado pra ficar bom na timeline. De quem transforma o testemunho em storytelling e o arrependimento em estratégia de lançamento. Quem nunca viu um "antes e depois de Jesus" com direito a música de fundo e legenda motivacional?

Nesse mercado espiritual, tudo é vendável: curso de oração, e-book de libertação, planner ungido, jornada dos 21 dias de conexão com o divino. A promessa de transformação espiritual vem acompanhada de boletos, que vencem antes mesmo de o milagre chegar.

O sucesso estrondoso de projetos como Café com Deus Pai, que se define como um "lifestyle cristão" e vende desde devocionais até agendas personalizadas, mostra que há uma sede real de conexão espiritual. Mas também mostra o quanto esse desejo de sentido pode ser canalizado por lógicas de consumo e, mais perigoso ainda, de controle.

Essa lógica de controle também é política. A fé, domesticada e convertida em discurso moralista, virou plataforma eleitoral. Constrói bancadas, elege pastores, influencia decisões no Congresso e sustenta projetos de lei que dizem proteger a família, mas atacam os direitos fundamentais de quem não se encaixa nesse modelo idealizado.

São especialmente as mulheres e as pessoas LGBTQIA+ que sentem esse impacto no corpo, nas escolhas, na maternidade forçada, na criminalização do aborto legal, na negação da existência e da autonomia. Também é sob essa fé de conveniência que o Estado tenta sufocar o livre exercício de outras crenças, principalmente as de matriz africana, como se Deus tivesse CNPJ e CEP fixo em templo evangélico.

Movimentos como o Legendários, por exemplo, têm ganhado força nas redes e em grandes eventos religiosos. Liderado por pastores influentes, o projeto se apresenta como um chamado para homens "voltarem ao propósito de Deus", pregando uma fé que conecta masculinidade, disciplina e liderança espiritual. É um movimento que se autodefine como uma convocação para a guerra espiritual, com estética militar, linguagem de exército e uma clara divisão entre "o que é de Deus" e "o que é do mundo".

O discurso parece inofensivo à primeira vista, mas embute uma fé disciplinadora, que ensina que há um único caminho de redenção, sempre pautado na obediência, na liderança masculina e na submissão feminina. Parece Deus, mas com algoritmo de coach. Um rebranding da fé para os tempos da performance.

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E o que tem por trás desse movimento?

Por trás desse movimento, o que existe é uma disputa por poder travestida de espiritualidade. A fé virou linguagem estratégica para capturar afeto, fidelidade e votos. Não estamos falando só de evangelização, estamos falando de mercado, de influência, de dominação simbólica e política. Esses "influencers de Deus" não existem no vácuo: eles são resultado de uma cultura que monetiza tudo, inclusive a esperança. E mais do que isso: são peças de um sistema que quer controlar comportamento, opinião e até o voto.

É uma fé performada, que vende a ideia de salvação instantânea, prosperidade como recompensa moral e submissão como caminho para o sucesso. Uma fé que não acolhe, mas exige. Que não liberta, mas normatiza e disciplina. E quando essa fé performada se junta a interesses econômicos e políticos, ela se transforma numa máquina de controle, uma ferramenta de marketing eleitoral, de exclusão social e de apagamento das diferenças.

Por trás desse movimento existe uma tentativa muito sofisticada de dizer quem merece ser salvo e, por consequência, quem deve ser silenciado.

E mesmo eu já tendo falado tanto, eu nem citei os influenciadores que usam o nome de Deus para promover jogos de azar. Eles se dizem abençoados, favorecidos espiritualmente, como se a sorte deles viesse de uma unção divina, e não de contratos gordos com plataformas de apostas que empurram milhares de jovens brasileiros para o vício, o endividamento e o desespero.

É o "Tigrinho ungido". O milagre do pix instantâneo. A fé sendo usada como isca para capturar gente vulnerável, carente de dinheiro e esperança. E o mais perigoso: vendida por rostos que deveriam ser referência de ética e cuidado com o próximo.

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Eu mesma já recebi propostas sedutoras. Bastava gravar um story. Bastava dizer que eu confio. Bastava usar o nome de Deus para legitimar o jogo. Mas se tem algo que me inquieta profundamente é ver a espiritualidade sendo manipulada como ferramenta de convencimento, especialmente quando ela serve pra maquiar o que, no fundo, é só ganância travestida de bênção.

Você pode chegar ao fim desse texto acreditando que o problema é a fé, mas não. O problema não é a fé. É o que fazem com ela. O problema é transformar o sagrado em produto de prateleira. É vender transcendência como solução mágica para quem está em desespero. É fazer do medo um funil de vendas.

E aí, num exercício que eu gosto de fazer quando a coisa me parece absurda demais, eu fico imaginando: E se Jesus voltasse hoje? Será que Ele faria uma collab com os influencers de Deus? Gravaria reels com legendas inspiracionais? Daria entrevista sobre "mentalidade de abundância" pro podcast dos convertidos do mês?

Ou talvez, só talvez, Ele virasse a mesa de novo, como fez no templo, quando expulsou os mercadores que lucravam com a fé dentro da casa de oração (Mateus 21:12-13), e dissesse, olhando nos nossos olhos: "Isso aqui não era pra ser vendido."

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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