'Intermezzo': leia o capítulo do novo livro de Sally Rooney
Sally Rooney conta história comovente sobre luto, amor e laços familiares em seu novo livro, "Intermezzo". Splash teve acesso exclusivo a um capítulo da obra (leia na íntegra abaixo).
Na trama, Peter Koubek é um advogado bem-sucedido de Dublin. Após a morte do pai, ele enfrenta dificuldades ao administrar a relação com Sylvia, seu primeiro amor, e Naomi, uma universitária que leva a vida na brincadeira.
Ivan Koubek é jogador profissional de xadrez. Sem muito traquejo social e se considerando uma antítese do irmão mais velha, ele tem a vida entrelaçada com a de Margaret, mulher mais velha que deixa para trás um passado turbulento.
Irmãos e pessoas amadas por eles vivem um novo intermezzo: interlúdio de desejo, desespero e possibilidades. Personagens têm a oportunidade de descobrirem o que uma vida pode conter sem se quebrar.
"Intermezzo" lança em 24 de setembro. Porém, exemplares já podem ser adquiridos por meio da pré-venda.
Intermezzo - Sally Rooney
Teoria de abertura
Ivan está sozinho no canto enquanto os homens do clube de xadrez arrastam as cadeiras e mesas. Dizem uns aos outros coisas como: Vai um pouco pra trás, Tom. Cuidado. Ivan está sozinho, com vontade de se sentar, mas sem saber quais cadeiras ainda devem ser movidas e quais já estão nos devidos lugares. A dúvida surge porque a forma como os homens reorganizam os móveis não atende a nenhum método específico que Ivan tenha conseguido identificar. Uma disposição conhecida aos poucos começa a surgir — um U centralizado composto de dez mesas e dez cadeiras do lado de fora da estrutura, com uma área de assentos livres em volta —, mas o processo pelo qual os homens estão chegando a essa configuração parece desordenado. Sozinho no canto, Ivan pensa meio distraído no método mais eficaz de organizar, digamos, a distribuição fortuita de um dado número de mesas e cadeiras na tal estrutura. É algo em que já pensou antes, parado em outros cantos, observando outras pessoas arrastarem móveis semelhantes em espaços internos semelhantes: as diferentes abordagens que podiam ser usadas, digamos, se estivesse escrevendo um programa de computador para maximizar a eficiência do processo. A precisão desses homens em específico, em relação aos lances recomendados por tal algoritmo, seria, Ivan pensa, bastante baixa, realmente baixíssima.
Enquanto ele pensa, uma porta se abre — não a porta principal, mas uma espécie de saída de incêndio na lateral — e uma mulher entra. Segura um molho de chaves. Os outros homens mal percebem sua chegada: só dão uma olhada na direção dela e se voltam para outros cantos. Ninguém lhe diz nada. Provavelmente é uma daquelas situações que os outros acham natural, e todo mundo menos Ivan já descobriu exatamente quem é a mulher e por que está ali. Ela por acaso é muito bonita, o que torna sua presença na sala naquela ocasião ainda mais curiosa. Ela tem um belo corpo e seu rosto de perfil é lindo. Um instante depois, Ivan percebe que os outros homens, embora não tenham registrado a presença da mulher explicitamente, parecem se comportar de outra forma com ela ali, levantando as mesas com movimentos mais fortes dos braços e ombros, como se as mesas tivessem ficado mais pesadas desde que ela chegou. Exibem-se na frente dela, ele percebe, e tem até a impressão de que a vê sorrindo sozinha, talvez por ter chegado à mesma conclusão, ou talvez só porque todos fingem ignorá-la. Agora, talvez percebendo que Ivan a observa, ela de repente olha para ele, um olhar simpático meio aliviado, e com as chaves na mão ela vai falar com ele no canto onde ele está.
Oi, ela diz. Me nome é Margaret, trabalho aqui. Desculpe a pergunta, mas você sabe se o menino já chegou? O prodígio do xadrez. Acho que é pra gente ficar de olho nele.
Ivan olha para ela. Ela disse tudo isso num tom de voz sorridente, divertido, quase de desculpas, como se contasse uma piada. Parece um pouco mais velha do que ele, Ivan acha, não muito mais velha — seu palpite é de que está na casa dos trinta. Ah, ele diz. Você está falando do Ivan Koubek?
Ele mesmo, ela diz, com expectativa. Ele chegou?
Chegou. Sou eu.
Ela dá uma risada constrangida, de vergonha, levando a mão ao peito, balançando o molho de chaves. Meu Deus do céu, ela diz. Mil desculpas. Uma confusão, claro. Eu achava? não sei por quê. Eu achava que você tinha uns doze anos.
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Quero receberBom, eu já tive, ele diz.
Ela ri de novo, ao que parece com sinceridade, e a sensação de fazê-la rir é tão boa que ele também sorri, embora saiba que assim ela vai ver o aparelho nos dentes. Ah, isso explica tudo, ela diz. Não, me desculpe, que bobagem a minha. A viagem pra cá foi tranquila?
Ele continua olhando para ela por um instante e então, como se ouvisse a pergunta com atraso, vai logo respondendo: Ah, sim, tranquila. Eu vim de ônibus.
Ainda com um sorriso gentil, ela diz: E eu soube que talvez você precise de uma carona depois do evento até onde você está ficando, não é isso?
Ele faz outra pausa. Os olhos dela são amistosos e convidativos. Seria mesmo estranho ver coisa demais naqueles olhares simpáticos, já que ela está literalmente trabalhando, sendo paga para ficar ali conversando com ele. Mas, Ivan se lembra, ele também meio que está no trabalho, sendo pago para ficar ali conversando com ela, ainda que na verdade não seja a mesma coisa. É, ele diz.
Não sei exatamente onde fica esse lugar. Mas posso pegar um táxi.
Ela está enfiando as chaves no bolso da saia. Não, não, ela diz. A gente toma conta de você, não esquenta a cabeça.
O capitão do clube enfim se aproxima e se apresenta. Seu nome é Ollie; foi ele quem buscou Ivan na rodoviária mais cedo. A mulher repete que se chama Margaret, e então Ollie levanta a mão na direção de Ivan, dizendo: E este é o nosso convidado, Ivan Koubek. Ela troca um olhar com Ivan, só um relance de diversão compartilhado pelos dois, e depois responde: É, eu sei. Ollie começa a falar do evento com ela, a que horas vai começar e terminar, e qual das salas vão usar na manhã do dia seguinte, para a oficina. Em silêncio, Ivan observa os dois conversando. Ela trabalha aqui, a mulher chamada Margaret, aqui no centro de artes: isso explica seu visual meio artístico. Está de blusa branca, saia estampada volumosa de várias cores e sapatilha bailarina. Começa a vivenciar, enquanto ela está ali parada na frente dele, uma imagem mental involuntária em que a beija na boca: não é nem exatamente uma imagem, mas a ideia de uma imagem, a percepção de que vai ser possível visualizá-la mais tarde, como seria beijá-la, uma promessa de deleite apenas ao se imaginar fazendo isso, algo bastante inofensivo, só um pensamento secreto. No entanto, também sente ao mesmo tempo um desejo abrupto de recuperar a atenção dela na vida real, o que suspeita ser possível fazer só de se dirigir a ela, só de dizer algo ou de fazer uma pergunta em voz alta, qualquer que seja.
Você joga xadrez?, ele pergunta.
Ambos olham para ele. Já tarde demais, percebe que está sendo esquisito. Ele vê, é perceptível no rosto dela e até no de Ollie. Que bizarro, perguntar sem motivo nenhum se ela joga xadrez, e nem tem a ver com o assunto de antes. Animada, no entanto, ela responde: Não, infelizmente não. Não tenho cabeça pra esse tipo de coisa. Acho que eu sei o que cada peça faz, mas só.
Com um arrependimento amargo de ter aberto a boca, Ivan assente com a cabeça.
Indicando o salão atrás deles, Ollie diz: A gente não tem muito do que se gabar na questão de igualdade de gênero, infelizmente.
Ah, eu não me preocuparia com isso, ela diz. Outro dia veio aqui um grupo de tricô que também estava indo mal nesse quesito. Bom, não quero atrapalhar vocês. Se precisarem de alguma coisa, estarei lá em cima, no escritório.
Ollie agradece. Ivan não diz nada.
Olhando depressa para ele, ela acrescenta: E boa sorte na sua partida mais tarde. Se eu tiver um tempinho, venho assistir.
Ele a encara por um instante a mais antes de dizer: Está bem. Obrigado.
Ela sai pela porta lateral, fechando-a depois de passar.
Que moça legal, Ollie comenta. Ivan diz: É.
Eles seguem parados junto à parede, vendo os outros homens arrumarem as cadeiras e mesas. O que significa quando as pessoas dizem essas coisas, tipo "que moça legal"? Seria um jeito cifrado de dizer que a pessoa é bonita? Ivan se pergunta se Ollie também sentiu certa excitação quando a moça chamada Margaret o encarou. Então por que demorou tanto para se aproximar e falar com ela? Mas talvez, como Ivan, ele fique tímido perto do sexo oposto. Ollie é baixinho e corpulento, usa óculos e deve ter uns cinquenta anos. Também usa aliança: é casado. É difícil imaginá-lo sentindo excitação ao conversar com uma mulher bonita. Mas a aparência exterior de uma pessoa não define os limites de seus sentimentos internos, Ivan sabe. Se a mulher chamada Margaret estava usando aliança, Ivan não reparou. Era impossível não reparar no fato de ser tão bonita: certamente está de saco cheio de ouvir homens falando disso.
Ivan entende que deve ser estranho ouvir comentários e convites sexuais indesejados, e teve aquela vez mesmo no caso dele, que também é homem, o que provavelmente só demonstra que sim. Ele seria capaz de qualquer coisa para evitar encontrar de novo com aquele cara, não que ele tenha feito alguma coisa ruim, mas por mero constrangimento. Então imagine ser uma mulher bonita e não ter só um homem para evitar, mas quase todos. Ao mesmo tempo, como proporcionar uma situação agradável para os dois sem que uma pessoa tome a iniciativa com a outra, que pode se revelar indesejada? É como o problema das mesas e cadeiras. De maneira fortuita e ineficaz, sem método definido, é possível obter soluções e, evidentemente, acontece com frequência, levando-se em conta que alguém como Ollie seja casado. As pessoas se conhecem, as coisas acontecem, é a vida. A questão para Ivan é como se tornar uma dessas pessoas, como viver esse tipo de vida.
Agora, diz Ollie ao lado dele. O que a gente pode fazer por você antes das coisas começarem? Quer um café? Tem uma cafeteria bacaninha ali na frente.
Ivan assente devagar. As cadeiras e mesas estão todas organizadas agora, dez mesas, igualmente espaçadas, dez cadeiras. Um dos homens está até colocando os tabuleiros de xadrez em cima das mesas. Claro, diz Ivan. Um café cairia bem, obrigado. Vou querer um expresso, se eles tiverem.
Vou lá buscar um pra você, diz Ollie.
Ivan observa Ollie sair do salão, atravessar a porta principal e se dirigir ao saguão. Em breve vai voltar com o café de Ivan, e então o evento vai começar, e Ivan vai jogar dez partidas de xadrez ao mesmo tempo. A experiência lhe diz que é melhor não ficar sofrendo por antecipação. Pensar muito sobre um evento de xadrez que vai ocorrer lhe causa uma sensação física intensa, ou melhor, uma série coordenada de sensações físicas: no peito, nas mãos, na barriga, um calor, um aperto, náusea, beirando até a tontura, a sensação de que não está enxergando direito, de que tem alguma coisa errada com os olhos, e então ele sente que vai vomitar. Em certas ocasiões de fato passou mal ante a iminência de um evento marcado. Ao mesmo tempo, não é o xadrez que o deixa nervoso. Essa parte vai ser fácil e, ele sabe, no fim das contas vai ser divertido. Nada vai, ou sequer pode, dar errado. A angústia física que acompanha os eventos de xadrez — partidas de exibição, torneios — não tem nenhuma relação significativa com os eventos em si, a não ser do ponto de vista cronológico: chega antes e some depois. Sua mente sabe disso, mas o corpo não.
Por essa e outras razões, Ivan considera o corpo um objeto fundamentalmente primitivo, um vestígio dos processos evolutivos suplantados pelo desenvolvimento do cérebro. Basta comparar os dois: a mente humana não tem peso, é abstrata, capaz de uma racionalidade total; o corpo humano é pesado, deprimente em sua especificidade, não faz sentido nenhum. Ele apenas faz coisas: ninguém sabe o porquê. Por algum motivo começa a se atacar ou fazer com que as células proliferem fora de seu devido lugar. Sem explicação. A mente faz isso? Não. Bem, no caso de transtornos mentais, ele pondera, ok, é claro, ela pode fazer coisas parecidas, mas é diferente. É diferente? Enfim. A mente de Ivan está longe de ser perfeita, volta e meia incapaz de completar as tarefas relativamente simples que se apresentam, mas pelo menos a mente reage ao raciocínio. Consciência, ele pensa. O corpo é um objeto inconsciente, animado por uma consciência de que não compartilha, assim como um carro inconsciente é animado pelo motorista consciente. Em geral todo mundo aceita a morte tanto do corpo como da mente depois de certo ponto, como depois dos noventa anos, digamos, ou pelo menos é aceitável em tese se a pessoa não pensar muito no assunto. Mas aceitar que, assim como o corpo morre, a certa altura do tempo, a mente também morre, literalmente a qualquer momento?
O irmão de Ivan, Peter, que tem trinta e dois anos e fez mestrado em filosofia, diz que essa escola de pensamento sobre as relações entre corpo e mente já foi refutada. Para Ivan, soa como quando alguém diz que o gambito do rei foi refutado. As pessoas vivem usando a palavra "refutado" só porque a leram em algum fórum, "Gambito do Rei é Destruído com um Lance" ou sabe-se lá o quê, e então o lance é 3? d6. Valeu, Bobby Fischer! Não que Peter seja do tipo que diz coisas só porque leu a respeito em fóruns. É um homem adulto com vida social e talvez nem saiba o que são fóruns. Mas mutatis mutandis. Ele provavelmente ouviu em aula que mente e corpo não são mais considerados coisas separadas e pensou, entendi. Peter é do tipo que se move com suavidade pelos percalços da vida. Fala muito ao telefone e come em restaurantes e diz que as escolas filosóficas foram refutadas. De qualquer modo, precisa admitir que Peter organizou praticamente tudo o que dizia respeito ao velório e tudo mais, Ivan não fez nada, ele admite sem titubear. Talvez devesse demonstrar mais gratidão nesse aspecto.
Quanto à história toda de Peter fazer o discurso no funeral e Ivan não, a decisão foi tomada pelos dois. É óbvio que agora Ivan se arrepende, já remoeu isso, o arrependimento, várias vezes, mas a culpa é dele mesmo, não de Peter, não é nem compartilhada, mas sim exclusivamente dele. Ele não pensou muito de antemão, é claro. Mas de que vale remoer? O pai não vai ganhar um segundo velório em que Ivan pode se desculpar pelo erro dizendo todas as coisas que mais tarde passaram pela sua cabeça.
A mente humana, apesar de toda a importância que lhe deu um minuto atrás, é muitas vezes repetitiva, vira e mexe empacada em um ciclo conhecido de pensamentos improdutivos, que no caso de Ivan costumam ser da natureza do arrependimento. Arrependimentos banais, como perguntar àquela mulher, Margaret, se ela jogava xadrez — horrível — e arrependimentos grandiosos, como se recusar, ou melhor, não conseguir dizer nada no velório do pai. Arrependimentos grandiosos como dedicar a vida ao xadrez competitivo só para ver sua pontuação cair regularmente ao longo dos anos, chegando ao momento em que etc. Ele já remoeu tudo isso, a irrecuperabilidade do passado, o que está feito está feito, e agora não é hora, de qualquer forma. Ele vai é comer a barrinha de chocolate que levou na mala e tomar uma xícara de café. É bom visualizar essas ações de antemão, como ele vai desembrulhar a barra de chocolate, qual vai ser o gosto do café, se vai ser servido com pires ou só na xícara. É nisso que se deve pensar nesta altura: coisas exatas, tangíveis, coalhadas de detalhes sensoriais. E então os jogos vão começar.
Quando Margaret termina de jantar, está escuro do lado de fora do bistrô, a vidraça azul como tinta molhada. Garrett atrás do balcão pergunta qual a programação de hoje e ela diz que é a noite do clube de xadrez. Ele responde animado: Cada um com seu gosto. A cada quinze dias, mais ou menos, a mesma rotina: outra apresentação e, depois, outro desconhecido sentado no banco de carona de Margaret, tagarelando sobre algum assunto, e depois indo embora. Comediantes, atores shakespearianos, palestrantes motivacionais. E agora jogadores de xadrez. Engraçado. Ela de fato gostou dele, do rapaz de aparelho nos dentes. Seu engano em pensar que ele seria um menino foi vergonhoso, mas ele tirou sarro disso e ela gostou. Meio sem jeito, é claro: essas pessoas com QI alto em geral são assim. Embora, ela pensa, saindo do restaurante, abotoando o casaco impermeável por cima do cardigã, ele ainda fosse muito mais educado do que os outros, sobretudo aquele homem inconveniente Oliver Lyons, basicamente um tanto grosso. O jogador de xadrez, ela pensa, é um exemplo de pessoa simpática, fácil de gostar, talvez carente de algumas nuances sociais mais refinadas, já Oliver Lyons é um homem que apenas aproveita o pequeno poder de sua liderança no clube de xadrez local.
Chove lá fora, a água entorna das calhas e Margaret arruma o cachecol sobre o cabelo. Engraçada, a sensação que teve, conversando com os dois, como se ela e o jogador de xadrez estivessem juntos de um lado e Ollie do outro. Por quê: a sensação de se estar fora do grupo, talvez. Pegando as chaves do fundo da bolsa, ela segue em direção ao escritório, cumprimentando com um aceno o homem gentil da padaria. Com os dedos, acha a chave externa e entra no prédio, fechando a porta com delicadeza. A chuva tamborila no telhado, em silêncio goteja do casaco nos azulejos, enquanto ela atravessa o corredor frio e, destrancando a porta lateral, entra no salão.
Lá dentro, todas as luzes muito claras estão acesas, e trinta ou quarenta espectadores estão sentados em um silêncio tenso, murmurante. Os enxadristas na parte externa das mesas arrumadas em U. E, no interior, Ivan Koubek está sozinho e de pé, debruçado sobre uma das mesas, com um braço cruzado sobre o peito, usando a outra mão para esfregar o maxilar. Ele parece muito alto e pálido, se avultando ali sobre o tabuleiro de xadrez, enquanto o oponente, um homem mais velho de pele avermelhada, está acomodado na cadeira da frente. Ivan move uma peça — Margaret, parada na porta, não vê qual — e em seguida vai para a outra mesa. Encostando nas peças, suas mãos são precisas e inteligentes como as mãos de um cirurgião ou de um pianista. Quando ele segue adiante, o oponente rabisca algo numa folha de papel. Os espectadores estão sentados em cadeiras de plástico, observando, alguns tirando fotos ou fazendo vídeos com o celular.
O próximo oponente de Ivan é uma criança, uma menina, que não deve ter mais do que onze anos. Seu cabelo dourado está preso com um elástico roxo. Quando Ivan chega à mesa dela, de costas para a porta onde Margaret está, a menina move uma peça e ele reage na hora, sem nem titubear. Margaret espera que ele vá para a mesa seguinte antes de escapulir escritório adentro, fechando a porta com um clique. Algumas pessoas erguem os olhos ao ouvir o barulho, mas Ivan não. Ele continua no mesmo caminho, às vezes parando, calado, por dez segundos, vinte segundos, a mão no maxilar, e depois movendo uma peça e indo para a mesa seguinte. Sem tirar os olhos dele, ela se senta em uma das cadeiras mais próximas, pondo a bolsa e o casaco no colo.
Ao analisar as mesas, Margaret conclui que duas partidas já terminaram. Os jogadores estão sentados, encabulados, e no tabuleiro diante de cada um deles o rei branco ocupa o centro. Ivan é o rei, ela pensa, visto que ele está jogando com as peças brancas, e até se parece com ele, alto e magrelo, o que é engraçado. Será que jogadores de xadrez se veem assim, como a peça do rei? Mas, pelo que Margaret se lembra sobre xadrez, o rei é fraco e covarde e passa boa parte do jogo escondido no canto. Na mesa seguinte, Ivan estica o braço acima da cabeça e põe a palma da mão entre os ombros, coçando a base do pescoço com a ponta dos dedos. Nas axilas há dois círculos escuros de suor. Como a sala não está muito abafada, apesar de muito iluminada, é provável que esteja suando por pura força da concentração.
Nos fundos do salão, alguém diz uma coisa que Margaret não escuta, ao que se segue um murmúrio de risadas. Ollie, sentado a uma das mesas, e cuja partida ainda está em andamento, se vira para fazer cara feia na direção de onde vem a risada, que aos poucos cessa. De novo parado diante da mesa da garotinha, Ivan desloca sua rainha e com a voz monocórdia diz: Xeque-mate. A menina se vira e olha para os dois adultos sentados atrás dela, um homem e uma mulher que devem ser seus pais. Margaret os vê sorrindo para a menina e erguendo o polegar, balbuciando: Muito bem! A menina se volta para o tabuleiro e escreve alguma coisa na folha de papel, e então ela o empurra sobre a mesa e entrega sua caneta a Ivan. Ele se debruça para escrever algo no canto inferior da folha e em seguida se levanta e lhe estende a mão. Com um sorriso largo cheio de dentes de leite, ela a aceita e os dois trocam um aperto de mãos.
Em silêncio, as partidas continuam. Outro jogador parece desistir, aperta a mão de Ivan, e depois outro: homens do clube de xadrez que mais cedo arrumavam as cadeiras. Por fim, o único que resta é Ollie. Ele pôs terno e gravata, Margaret repara — não estava de gravata mais cedo, mas agora está, uma vermelha de listras claras. Ivan Koubek não trocou de roupa, está com a mesma camisa de botão verde-clara e a calça preta de antes. O tênis está sujo e Margaret vê a sola do calçado esquerdo se descolando. Ollie ergue os olhos para Ivan, faz um pequeno aceno com a cabeça e Ivan retribui o gesto. Ollie escreve algo em sua folha de papel, assim como Ivan, e eles trocam um aperto de mãos.
Os outros jogadores aplaudem e então todo mundo começa a aplaudir. Margaret solta a bolsa que segurava no colo para aplaudir junto. Pela energia geral da aclamação, entende que Ivan derrotou Ollie e venceu todas as dez partidas. Ivan assente para agradecer os aplausos, que em vez de irem parando vão ficando cada vez mais altos, e alguém nos fundos do salão dá um longo assobio. Ivan fica parado, inclinando a cabeça, com um sorriso educado sem mostrar os dentes, tomado pela vibração dos espectadores. Ollie se levanta de trás da mesa e aos poucos os aplausos se acalmam. Ele agradece a todos pela presença, agradece a Ivan e o parabeniza pela "limpa", e, depois de mais alguns aplausos e agradecimentos a várias pessoas, o evento acaba. As pessoas começam a se levantar da cadeira, conversando, recolhendo os pertences, e um dos homens do clube de xadrez escancara a porta principal para a plateia sair em fila.
Margaret vê que Ivan foi falar com a menina de elástico no cabelo. Está de costas para Margaret, mas ela ouve o que ele fala. Foi uma ótima partida, ele diz. Sabe onde foi que você errou? A menina faz que não. Vou te mostrar, ele diz, e aí você não vai errar de novo. Para os pais dela, ele diz: Vocês não se importam, né? Só um minutinho. Fora isso, ela jogou bem. Ele está arrumando o tabuleiro enquanto fala. Em volta deles, os espectadores vão embora, olhando o celular, fechando o zíper do casaco. Margaret está de pé ao lado da cadeira, passando o polegar na alça da bolsa, distraída, o impermeável comprido frouxo, desabotoado. Lembra dessa posição?, Ivan diz. A menina assente, fitando o tabuleiro na frente dela. Alguns segundos depois, ele pergunta: Agora você entende por que foi uma ideia péssima mexer naquela torre? Ela ergue os olhos para ele solenemente e torna a fazer que sim. Não tem problema, você está aprendendo, ele diz. Você jogou muito bem. Quem sabe a gente não joga a revanche daqui a alguns anos? Os pais dela sorriem, o pai com a mão no ombro da menina. Que gentileza a sua tirar um tempo pra isso, a mãe diz. Imagino que esteja exausto. Ivan se levanta da mesa. Estou bem, ele diz. O pai agora olha para algo às costas de Ivan, para Margaret, e Ivan acompanha o olhar e a vê parada ali. Ela sorri e ele a olha sem dizer nada. Ela percebe que a testa dele ainda está úmida.
Parabéns, ela diz.
Ah, ele responde. Bom, sei lá. Obrigado.
Ele enxuga a testa com a manga da camisa — percebendo que talvez ela tenha percebido. O salão ao redor deles está se esvaziando, a menina e seus pais se despedem e vão embora. Desatento, Ivan lhes diz: Ok, tchau.
Pelo visto vou ter a honra de te dar uma carona pra casa, Margaret diz.
Ivan a encara, um olhar bem direto até, ela acha, intenso: com aquela sensação, de novo, de que estão, calados, do mesmo lado. Certo, ele diz. Acho que o pessoal vai sair pra beber. Mas eu não preciso ir, não faço questão.
Você quer beber alguma coisa?, ela diz. Você merece tomar alguma coisa depois do que enfrentou. Me surpreende você ainda estar de pé.
Ele sorri para ela, de novo mostrando o aparelho nos dentes, o aparelho novo de cerâmica branca que os jovens usam hoje em dia. É, tem que andar muito, ele diz. É isso o que as pessoas dizem: Esqueça o xadrez, treine pra caminhar. Você estava? Ele se detém neste ponto, com uma expressão de orgulho acanhado. Você estava assistindo ou?, ele pergunta.
De repente Margaret sente uma enorme simpatia por ele, uma onda de simpatia, de vê-lo tão orgulhoso de si. Ah, eu fiquei fascinada, ela diz. Não que eu tivesse alguma noção do que estava acontecendo. O que você acha, está a fim de sair pra comemorar?
Ele continua olhando para ela. Claro, ele diz. Vou pegar as minhas coisas.
Ela vai ao encontro do grupo que está à porta. Ollie informa que eles vão tomar alguma coisa no Cobweb e ela diz que vai junto. Ela conhece um dos homens por alto, o farmacêutico aposentado Tom O'Donnell, e outro homem diz que se chama Stephen, e outro, Hugh. Quando Ivan se junta a eles, todos saem do salão. Os homens falam de xadrez, usando um vocabulário que Margaret compreende por alto — gambitos, sacrifícios — e no longo corredor suas vozes ecoam nas paredes e no teto. Apesar de as falas parecerem ser dirigidas a Ivan, ele não se manifesta, só anda calado com sua malinha preta. A mala tem rodinhas, mas não a arrasta, ele a carrega pela alça. Antes de ganharem a rua, Margaret apaga as luzes e sobe em um banquinho para acionar o alarme, enquanto os outros aguardam, enquanto Ivan aguarda atrás dela. Ele a observa, ela acha, mas como ela sabe sem olhar? E ela não olha, simplesmente sabe, como se os olhos dele disparassem agulhinhas em sua direção e ela sentisse as agulhas perfurando sua pele, indolores.
Sente pena dele, rodeado de pessoas barulhentas de meia-idade, homens que o admiram e ao mesmo tempo o temem e talvez se ressintam dele, homens que querem impressioná-lo, mas também intimidá-lo ou menosprezá-lo. No entanto, ela parece entender que Ivan é bem consciente da dinâmica entre ele e os outros homens, e que essa consciência tem algo a ver com observar Margaret enquanto ela aciona o alarme. Mas como saber, como interpretar essa observação, quando ele não lhe diz nada e nem sequer parece ter vontade de dizer?
Lá fora, a chuva abrandou, se transformando em neblina, e as luzes dos postes estão acesas. O farmacêutico Tom O'Donnell abre o guarda-chuva.
Conta pra gente, diz o homem chamado Stephen, de onde vem o sobrenome "Koubek"?
Da Eslováquia, diz Ivan.
Não dá pra perceber que você é eslovaco, Stephen responde.
É, não, Ivan diz. Sou de Kildare. O meu pai era eslovaco, mas ele veio pra cá na década de 1980. E a minha mãe é irlandesa. O'Donoghue.
Atravessam o estacionamento, passam pelo carro de Margaret, e ela o destranca para que Ivan deixe a bagagem no porta-malas. Os outros continuam conversando. O cabelo dela já está meio molhado e ela tira o cachecol e o amarra sobre a cabeça de novo enquanto Ivan fecha o porta-malas em silêncio e diz: Obrigado. Por um instante, ela sente um desejo estranho de se virar para os outros homens, dizer algo no estilo: Eu disse que ia levar o Ivan. Seria, ela pondera, um comentário estranho. Ninguém está questionando por que Ivan está colocando a mala, calado e obediente, no porta-malas do seu carro. Dar explicações seria uma insinuação de que é preciso explicar alguma coisa, aumentando a amplitude de outras explicações, alternativas, que ainda não ocorreram a ninguém. Uma coisa terrível de se dizer. Ela não diz nada. Todos continuam a andar juntos, por uma viela pavimentada rumo ao Cobweb Bar, e Ollie segura a porta para Margaret entrar primeiro.
O bar está aquecido e sossegado. Junto às paredes há bancos acolchoados com as mesas na frente, e anúncios antigos, mal iluminados. Margaret desamarra o cachecol do cabelo, deixando os olhos quase se fecharem, inalando a atmosfera familiar. É sexta-feira, ela pensa, a semana de trabalho acabou, não é tão ruim assim ir a um bar com todos aqueles homens por um tempinho, ser por um instante a única mulher no salão quente fechado. Deixa eu pedir uma bebida pra você, Ollie diz. Margaret diz que vai querer uma limonada. E você, Ivan?, Ollie pergunta. Imagino que você já tenha idade pra beber, né? Ivan solta uma risada constrangida e responde: Tenho, eu tenho vinte e dois. Ollie pergunta o que ele quer, nesse caso, e ele pede uma cerveja italiana. Tirando o casaco dos ombros, Margaret acha um lugar para se sentar em um dos bancos macios de couro sintético, com uma mesa baixa entre ela e Ivan. Um dos homens pergunta se ela viu os jogos e ela diz: Vi, sim, que atuação. Ollie se levanta para fazer o pedido no bar e os outros o acompanham para ajudá-lo, ou para insistir em pagar suas bebidas, deixando Margaret e Ivan a sós no canto. O fato de terem sido deixados sozinhos lhe causa uma sensação constrangedora, persistente, e, querendo puxar um assunto leve, ela diz em voz alta: Então, você já teve alguma dificuldade?
Por um instante, ele permanece calado. Você está falando tipo no xadrez?, ele pergunta.
Sim, me desculpe. Isso que eu quis dizer.
Ele dá um sorriso envergonhado, e está de novo esfregando o ombro com a ponta dos dedos. Claro, óbvio, ele diz. Não, não é que eu tenha tido alguma dificuldade séria. Quer dizer, eu empato de vez em quando, quando tem muito mais gente ou os jogadores são melhores. Mas com esses jogadores de clubes locais, não esquento a cabeça. Ele engole em seco, olhando para o bar, e então diz em tom simpático: Mas talvez seja melhor você não contar pra eles que eu falei isso.
Ela também sorri diante da olhadela que ele dá e de seu tom amistoso, quase conspiratório. Não, não se preocupe, ela diz. Mas você nunca perde?
Em exibições? Não é muito comum porque eu só jogo contra pessoas abaixo de certa classificação, que é bem mais baixa do que a minha. Mas perco partidas em competições. O tempo todo. Na verdade, não sou tão bom assim no xadrez.
Ela começa a rir, e ele sorri, o que ela acha encantador: o prazer genuíno de ser engraçado. É difícil de acreditar, ela diz.
Ele olha para as próprias mãos. As unhas estão roídas, ela repara. Bom, relativamente, ele diz. Ainda examinando as mãos, franzindo a testa, ele acrescenta: A gente não precisa falar de xadrez, aliás. Eu sei que você não joga.
Não, mas é sempre interessante ouvir as pessoas falarem de coisas que despertam paixão nelas.
Ele volta a olhar para ela. É?, ele indaga.
Insegura, sorridente, ela responde: Você não acha?
Não sei, ele diz. Para ser sincero, nunca pensei nisso. Mas vou pensar, agora que você falou. Imagino que dependa do que você quer dizer — "despertar paixão". Eu acho que tem gente que é muito chata quando fala, mas talvez seja porque na verdade elas não são assim tão apaixonadas. Ele sorri de novo. Nem sei se eu sou tão apaixonado assim por xadrez, ele completa, mas imagino que todo mundo acredite que eu seja.
O que você acha que te desperta paixão?, ela questiona.
Nisso, ele enrubesce. Ela vê, mesmo à meia-luz, que ele está enrubescendo, e ele diz algo que soa como: Humm. Embaraçada, ela diz com uma alegria forçada, alto demais: Deixa pra lá, não precisa me dizer. Então ela também se arrepende de ter falado isso. Os outros estão voltando do bar, finalmente. Ollie se curva para entregar um copo gelado e úmido a Margaret, dizendo: Uma limonada pra moça. Eles estão se acomodando em volta da mesa, bebendo, falando, mas Ivan continua em silêncio, só fita a lateral do rosto dela, que evita seu olhar. Talvez ele a esteja olhando porque não sabe mais o que fazer, ela pensa, porque está se sentindo esquisito ou desconfortável. Talvez queira chamar sua atenção porque deve haver algo especial que deseja dizer, e ao evitar seu olhar ela esteja apenas prolongando o intervalo durante o qual ele acha necessário continuar olhando. Ou talvez — a ideia invade seus pensamentos — talvez esteja olhando para ela por motivos sexuais.
Margaret não acha possível eliminar completamente de sua vida esses pensamentos, por mais que em certas circunstâncias ela queira. Há ideias intrometidas que são vergonhosas, tristes, até obscenas e imorais. Em geral, ela consegue viver entabulando interações agradáveis com gente ao seu redor, agradáveis e superficiais, sem nunca pensar ou querer pensar sobre a personalidade sexual muito bem escondida e profunda do interlocutor. Mas nem sempre é possível ser tão indiferente aos outros, aos aspectos encobertos da vida deles. Esse jovem de aparelho nos dentes que passa os fins de semana visitando centros de artes para jogar xadrez diante de uma plateia, carregando uma mala preta barata e deixando-a no canto das salas, esse jovem também tem sensações e pensamentos sexuais, ela tem quase certeza, quase todo mundo tem, ainda mais aos vinte e dois anos. Ele continua olhando para ela. Por que ela falou a palavra "paixão" para ele quando estavam conversando? E por que a repetiu tantas vezes, talvez três ou até quatro vezes? Será que a palavra "paixão", ou será que não, é basicamente uma peça obscena do vocabulário? Não, não é. Mas é como um pequeno curativo em uma peça de vocabulário que na verdade é obscena? Talvez sim. Uma palavra com sangue pulsando, uma palavra vermelha. Em conversas casuais é melhor usar palavras que sejam cinza ou bege. De onde ela veio, então, essa palavra "paixão"? Ela sabe de onde. Daquele sentimento abafado de forma tão incisiva, presente o tempo inteiro, de que quando ele olha para ela, quando fala com ela, está se dirigindo não apenas às partes superficiais como também às profundamente dissimuladas de sua personalidade — sem querer, sem saber como evitá-lo.
Do lado deles, os outros homens falam de um jogador de xadrez famoso do século XIX. Sabia que ele era irlandês, Ollie diz. O pai dele era irlandês. Murphy. Os outros discordam. Ivan bebe do copo e olha para Margaret: ela sente a pressão dos olhos ainda na lateral de seu rosto, enquanto ela continua fingindo que escuta, fingindo que sorri. Ela enfim se vira e retribui o olhar. Eles se olham em silêncio. Estão, não teria como ser mais claro, do mesmo lado, separados dos outros. E ele deixa o copo na mesa. Pigarreia e diz aos outros: Escuta, obrigado. Vejo vocês amanhã de manhã. Todos o parabenizam de novo e lhe dão tapinhas nas costas, e Margaret precisa de um instante para vestir o impermeável e encontrar o cachecol pendurado no espaldar da cadeira.
Saem juntos do bar e na rua escura caminham com a chuva caindo em volta deles. Durante um tempo, calados, sem nem se olhar, andam lado a lado, e é algo simples e correto. Margaret pergunta onde Ivan está hospedado e ele pega o celular para mostrar o endereço, no condomínio de casas de veraneio à beira do lago. No estacionamento, ela destranca o carro e eles entram juntos, fechando as portas, e todos os atos e gestos dela são apenas os necessários depois de entrar em um carro: enfiar a chave na ignição, acender os faróis, afivelar o cinto de segurança. Esses atos acontecem mais ou menos isolados, num ritual, e ela não tem decisões a tomar, nada a fazer, a não ser sentir e se observar olhando pelo retrovisor, manobrando para sair da vaga. Ivan está sentado com as mãos no colo, sem dizer nada. Lá fora, o estacionamento fulgura sob a luz laranja esquálida dos postes, as superfícies pavimentadas matizadas e cintilantes. Ela liga os limpadores e eles soltam um clique e raspam ritmadamente o para-brisa.
Acontece sempre quando ela leva alguém em casa desse jeito ou deixa na estação, e eles estão juntos no carro, conversando sobre alguma coisa. É só trabalho. E se Ivan não quer papo, se quer ficar ali olhando para as mãos, olhando para ela e olhando de novo para as mãos, tudo bem — ele tem apenas vinte e dois anos, e é muito talentoso em um tipo específico de jogo de tabuleiro, e no fim das contas não existe etiqueta formal para essas situações. Ver-se no carro com uma mulher mais velha depois de um evento público supostamente cansativo, ser levado de volta com sua malinha preta: nunca ensinam ninguém a como se comportar nessas circunstâncias. Se ele quer permanecer em silêncio, olhando para as unhas roídas, tudo bem, não tem problema. Ela também, claro, está em silêncio, e não tem nada a dizer. Eles saem da rua principal e entram em uma viela rumo aos chalés de veraneio, o cascalho se quebrando, barulhento, sob os pneus do carro de Margaret. Ela não fez nada errado, não fez absolutamente nada, na verdade, além do necessário para cumprir o objetivo de levar Ivan do bar ao condomínio. Se ela cometeu algum deslize na conversa mais cedo, se usou uma palavrinha ou expressão dúbia, perguntando o que despertava paixão nele, foi desculpável, até em certo sentido podia ser negado, por ser subjetivo. Ela para na frente de uma das casas, um bangalô branco com tinta descascada e janelas escuras.
Eu acho que é aí, ela diz.
É a primeira vez que um dos dois se manifesta desde que entraram no carro, e dentro do ambiente lacrado a voz dela tem um som comprimido. Ivan olha o bangalô pela janela.
Obrigado, ele diz.
Ela diz que não foi nada. Ele assente e olha mais uma vez para ela. Quer entrar?, ele pergunta.
Em dúvida, ele continua olhando para ela, como se para se desculpar pela pergunta, e espera a resposta. Há muita vulnerabilidade no olhar dele, no tom de voz. Existe algo que ela possa dizer para explicar? Sobre seu emprego, e ser bem mais velha do que ele, e sua situação de vida. Mas suas explicações pareceriam mentiras. Ninguém ao ser rejeitado acredita que seja de fato por razões externas. E quase nunca é por razões externas, pois a atração mútua — que faz sentido até da perspectiva evolutiva — é simplesmente a razão mais forte para se fazer qualquer coisa, passando por cima de todos os princípios contrários e transformando-os em nada. Por uma fração de segundo ela baixa os olhos para as mãos dele, pousadas no colo: são mãos bonitas, delicadas, ela já tinha reparado mais cedo, quando ele estava jogando xadrez.
Ok, ela diz.
A casa é úmida e fria e todos os ambientes estão com a luz apagada. Ivan carrega a mala e Margaret acha um interruptor no corredor. No teto, uma lâmpada à mostra se acende, sem cúpula, e no canto, junto à porta, o papel de parede está mofado. Em tom simpático, casual, ela diz: Eu não diria que a casa é luxuosa. Foi o clube de xadrez que reservou pra você, aliás, não a gente. Ele sorri com o comentário, de novo mostrando o aparelho nos dentes. Já vi piores, ele diz. Às vezes tenho que dormir no chão da casa de alguém. Ela pendura o casaco e o cachecol e ele larga a mala. Atravessam o corredor rumo à sala de estar com uma cozinha pequena. Dessa vez é ele quem acende a luz. Há um sofá de tecido vermelho e uma mesinha de jantar, além de uma porta de correr de vidro que dá em um jardim. Margaret vai dar uma olhada na cozinha e Ivan a acompanha. Na prateleira em cima do micro-ondas há uma caixa de chá e uma lata de café instantâneo, e alguém até pôs leite e manteiga na geladeira.
Talvez o Ollie tenha vindo aqui e abasteceu a geladeira, ela diz. Acho que ele deve ter uma quedinha por você.
Ivan ri, parece satisfeito. Deu pra perceber que ele ficou feliz com o andamento do jogo dele, diz. O que é meio triste, porque a bem da verdade ele cometeu vários erros.
Você não é profissional, é?, ela indaga. Quer dizer, você não joga xadrez em período integral.
Ele diz que não, mas é pago por jogos de exibição e treinamentos. Em seguida, pigarreia e se cala. Ela se lembra de quando ficava nervosa perto dos homens, quando era jovem — mas é claro que é diferente para as mulheres. Impossível imaginar uma garota de vinte e dois anos se comportando como Ivan se comportou esta noite, como está se comportando agora. Não que ele pareça mais poderoso ou dominador do que uma garota, não é isso: na verdade, ele parece ter assumido a responsabilidade total pelo que aparenta ser uma missão muito difícil para ele — a missão, a não ser que ela esteja enganada, de seduzir uma mulher mais velha que acabou de conhecer —, e parece estar frustrado consigo mesmo por não saber como cumprir essa missão, frustrado e culpado. Esses sentimentos não surgiriam em uma garota. Sentimentos diferentes, também desagradáveis, mas diferentes. Ao mesmo tempo, a própria Margaret não está interpretando seu papel nesses sentimentos, nessa peça? Não é, afinal, uma peça com dois atores principais? Ela não está se oferecendo, ela percebe, para aceitar nenhuma responsabilidade compartilhada pelo cumprimento da missão que Ivan estabeleceu para si. Ela indicou, ao entrar no chalé, que pode muito bem estar disposta a ser seduzida; mas não o está ajudando a obter sucesso na empreitada. Ajudar, no entanto, seria obviamente prejudicial para sua dignidade, muito mais do que a atual situação é para a dele. Ela pergunta se ele faz faculdade e ele responde que acabou de se formar em física teórica. Outro silêncio. A casa é fria, as costas dela estão frias apoiadas na porta da geladeira.
Me desculpa se eu estou esquisito, ele diz.
Não acho que está, não mesmo.
Bom, eu sem dúvida sou muito mais esquisito do que você, ele rebate. Quando você está falando, sabe, tudo o que você diz soa muito normal e tipo, fluido. Eu nunca consigo fazer as palavras saírem com essa fluidez. Você é do tipo que consegue chegar numa pessoa e puxar conversa. É muito? Ele se cala, e então depois de uma pausa continua: Eu ia dizer que é muito bonita, mas talvez eu não deva dizer isso.
Ela desvia o olhar, agora estranhamente confusa. Ah, ela diz. Bom, sei lá.
Ele está de novo olhando para as mãos, examinando os tocos rosados que são as unhas. Me desculpa, ele diz. É óbvio que não é porque você foi legal comigo que isso quer dizer? sabe. Passou pela minha cabeça, ou sei lá, mas é bobagem. Tipo, é, Ivan, claro, sem sombra de dúvida ela achou muito legal e sexy você ganhar de todos aqueles caras mais velhos no xadrez.
Ela tem uma sensação estranha, leve, divertida diante de suas palavras: como se, ao concluir que as negociações não deram em nada, ele queira mostrar como aceita bem a derrota. Não eram só caras mais velhos, ela retruca. Você também venceu uma menina de dez anos.
Ele dá uma risadinha. É, ela não foi tão mal assim pra quem tem dez anos, ele diz. Mas deu uma derrapada grave. Eu fui conversar com ela depois. Foram três ou quatro lances inteligentes e depois um erro horroroso.
Eu imagino que você só faça lances bons, ela diz. Eu não cometo erros horrorosos, ele responde.
Eu cometo.
Olhando para ela, ele volta a sorrir — reconsiderando, ela imagina, a suposição de fracasso. Sob a luz turva do teto ela vê os arames do aparelho úmidos e reluzentes. Ok, ele diz. Interessante. Eu acho muito interessante.
Tem certeza de que você tem vinte e dois anos?, ela pergunta. Sim. Quer ver a minha identidade?
Posso ver mesmo?
Ele enfia a mão no bolso e pega a carteira para lhe mostrar a idade. Ela percebe a mão dele um pouco trêmula.
A foto não é muito boa, ele diz. Ou sei lá, vai ver que é assim mesmo que eu sou.
Ela tira o cartão de plástico fino da carteira e o estuda sob a luz. Nascido em 1999, ela diz. Caramba. Eu comecei a faculdade em 2004.
Sério? Quantos anos você tem, então? Trinta e cinco.
Trinta e seis, ela corrige. Ela ainda está olhando para o cartão, para a imagem do rosto de Ivan, sério e melancólico. Eu achei mesmo impressionante quando você ganhou aquelas partidas todas de xadrez, sabe, ela diz. Achei fascinante.
Ele dá um sorriso doce, bobo. Ah, uau, ele diz. Legal da sua parte dizer isso. Eu não me sinto nada fascinante. Mas legal você ser tão gentil.
Ela devolve o cartão e ele o põe na carteira. Seus pais jogam xadrez?, ela pergunta.
Bom, não, na verdade não, ele diz. A minha mãe não joga nada. E o meu pai jogava um pouquinho, mas ele, hum? ele acabou de falecer. É bem recente, foi três ou quatro semanas atrás. Quatro semanas, acho.
Meu Deus, ela diz. Ivan, eu sinto muito.
É. Ele estava com câncer há muito tempo. Então não foi inesperado.
Ela está olhando para ele, mas ele olha para o chão. Ela diz: O meu pai? não que seja a mesma coisa, desculpa. Mas o meu pai morreu faz alguns anos. Imagino como você deve estar se sentindo.
Ele torna a olhar para ela, os olhos escuros serenos, e ela o sente bem próximo. É meio complicado, ele diz. E tipo, esquisito e tal. Não sei se você se sentiu assim.
Claro que me senti.
Os meus pais também eram separados, ele diz. E eu convivi mais com o meu pai. Não que eu queira te contar a minha vida inteira, desculpa.
Não precisa se desculpar. Você tem irmãos?
Um irmão mais velho. Que é bem mais velho, coisa de dez anos. Mas não somos próximos nem nada. Antes que ela tenha a chance de dizer alguma coisa, Ivan pigarreia e acrescenta: Na verdade, ele? Você estava me perguntando se mais alguém joga xadrez na minha família. O meu irmão joga, mas não é muito bom.
Hesitante, ela sorri. Ah, ela diz. Em comparação a você, eu imagino que não.
Pois é. Mas se você quer saber de uma coisa bem triste, eu atingi o meu auge uns quatro anos atrás. Passei um tempo jogando muito bem, muito bem mesmo. Mas não consigo mais jogar desse jeito. Não sei por quê. Fico triste quando penso nisso. Você sonha em melhorar cada vez mais. E na realidade você começa a piorar e nem entende por quê. É chato isso que estou falando?
Margaret diz: Não, não é. Ele está olhando para as mãos outra vez.
Sei lá, ele diz. A única coisa que eu disse pra mim mesmo no carro é, Se ela entrar com você, não vá falar de xadrez. Ele já toma espaço demais na minha vida, pra ser bem sincero. Sendo muito sincero, eu passo tempo demais pensando nisso porque não sou tão bom assim. Embora me deixe muito triste admitir. Muita gente me disse que eu estava deixando isso tomar muito do meu tempo, e pra mim essas pessoas não entendiam. Mas agora eu penso, talvez eu tenha mesmo perdido muito tempo da minha vida. Quando os outros estavam saindo, se divertindo, arrumando namoradas e tal, eu estava em casa, basicamente lendo. Você tem que ler muita teoria de abertura — é o começo da partida, os primeiros lances. Que já foram todos feitos, então você tem que aprender sobre eles. Não é nem muito interessante, mas é necessário. Então tem um monte de aberturas tiradas dos livros, e você tem que saber todas as estratégias de fim de jogo, que pode ser, sinceramente, bem previsível. E você aprende tudo isso pra quê? Só pra alcançar uma posição boa no meio da partida e tentar jogar um xadrez mediano. E nem isso eu consigo fazer, na maioria das vezes. Às vezes penso, se desse pra voltar aos meus quinze anos, teria desistido. Eu já era bastante bom na época, não melhorei muito. E eu podia ter usado esse tempo pra ter mais vida social. Não vou dormir à noite e fico pensando em xadrez, sabe. Não vou entrar em detalhes sobre o que eu penso, mas garanto que em geral não tem nada a ver com xadrez.
Ela está sorrindo, ouvindo, assentindo, e, no entanto, as palavras dele lhe dão uma sensação estranha, uma sensação na boca do estômago.
Mas você não acha que aproveitou?, ela pergunta. Todo o tempo que passou praticando, você não acha que às vezes te fez feliz?
Com uma expressão sofrida, cutucando a unha do polegar, ele responde: É, tem esse lado. Ganhei muitos jogos. E participei de torneios grandes, derrotei alguns jogadores bons. Já joguei xadrez bem. Em uma ou duas partidas, eu diria, foi mais do que bem. Esse é o outro lado. Você tem razão. E se eu tivesse desistido quando tinha quinze, e tentado ser mais sociável e conversar com mais meninas, talvez não tivesse dado certo. Não acho que eu teria me tornado um cara superpopular só por não jogar xadrez. Dá pra enlouquecer pensando no que você poderia ter feito de diferente. Mas às vezes acho que na verdade não tenho muito controle sobre a minha vida, em todo caso. Quer dizer, eu não poderia adotar uma nova personalidade do nada. E as coisas meio que foram acontecendo comigo.
Ela fica em silêncio quando ele acaba de falar, e seus olhos estão voltados para o chão, um linóleo amarelo simples.
Agora você está morrendo de tédio?, ele pergunta.
Passado um instante, ela responde: De jeito nenhum. É verdade, dá pra enlouquecer pensando no que você poderia ter feito de diferente. Eu também fico louca com isso.
Ele está olhando para ela, ela sabe disso. É?, ele diz. Por quê?
Quando eu tinha a sua idade? Não é verdade, eu era um pouco mais velha que você. Quando eu tinha vinte e poucos anos, conheci uma pessoa. E depois a gente se casou. No papel ainda somos casados, porque é tudo bem complicado. Mas não moramos mais juntos. É como você falou, dá pra enlouquecer pensando nessas coisas. Nas outras vidas que você poderia ter tido. E na vida que teve, depois que ela acaba — onde ela foi parar? Quer dizer, o que você deveria fazer com ela? Bom. Sorte a sua estar pensando em tudo isso agora que você tem só vinte e dois anos. Quando eu estava com a sua idade, a minha vida ainda não tinha começado a acontecer. Mal consigo me lembrar de qualquer coisa de antes, sinceramente, a verdade é essa. Todo mundo tem esses problemas de que você está falando aos vinte e poucos anos — se sentir excluído, achar que os outros não gostam de você. Não são problemas sérios na sua idade, ainda que pareçam ser. Talvez você esteja numa sintonia diferente da de algumas das meninas que conheceu na faculdade. Mas eu posso te dizer que você é muito atraente. É mesmo. As mulheres vão se apaixonar por você, acredite. É aí que começam os problemas.
Ela ergue os olhos para ele, que está olhando para ela, um intenso olhar silencioso. Ela tenta rir, e sua risada soa impotente. Margaret, ele diz, posso te beijar? Ela não sabe o que fazer, se deve rir de novo ou começar a chorar. Ok, ela diz. Ele vai até onde ela está, encostada na geladeira, e lhe dá um beijo na boca. Ela sente a língua dele se mexer entre os lábios. Se afastando um pouco, ele murmura: Desculpa pelo aparelho, odeio ele. Ela diz que ele não precisa pedir desculpas. Então ele a beija outra vez. É claro que é uma situação desesperadoramente constrangedora — uma situação que parece desprover a vida dela de sentido. A vida profissional, oito anos de casamento, suas convicções pessoais, tudo. No entanto, aceitando a premissa, permitindo que a vida não signifique nada por um instante, não é simplesmente uma sensação boa estar nos braços dessa pessoa? Sentir que ele a deseja, que a noite inteira ele olhava para ela e a desejava, não é prazeroso? Encarnar o tipo de mulher que ele acreditava não poder ter — incorporar essa mulher e permitir que ele a tenha. Imprensado contra ela, o corpo dele é magro e tenso e trêmulo. E se a vida for só uma coleção de experiências essencialmente desconexas? Por que uma coisa tem de decorrer de outra, com algum significado?
De manhã, Margaret acorda sozinha no chalé de veraneio com o som do próprio despertador: sábado, 8h30. Depois de achar o celular e se atrapalhar para desligar o alarme, ela se deita a sós, vazia de pensamentos, ouvindo o zumbido baixinho que vem de outro canto, como uma geladeira ou uma lava-louças. O teto tem um acabamento de gesso pontilhado, as pontas e ondulações lançando sombras irregulares à luz da janela. A luz fraca aquosa da manhã. Os minutos passam. Ela se senta e encontra as roupas no chão, úmidas, amassadas, e vira do avesso a calcinha da véspera para usá-la mais uma vez. Com uma curiosidade desapegada, com uma monotonia interna pálida, ela pensa em Ivan, que já foi embora, que a deixou sozinha na cama — lembra-se dele na noite anterior, bem fundo dentro dela, dizendo: Ai, caralho. Bom, é isso o que os garotos da idade dele gostam de fazer nos fins de semana. Por que não com ela? Ela não é feia, é o que dizem, ainda não é velha, não é mais casada na prática, e não impôs a resistência que ele parecia esperar. Sua falta de resistência, tão incomum, o fascinou e instigou. Além do mais, ele estava sofrendo pelo pai, ela acha, e durante o luto as pessoas agem de forma incomum, têm comportamentos irresponsáveis, ficam bêbadas e transam com várias pessoas. Não que ele estivesse bêbado na noite anterior. Ele tinha, se ela se lembra direito, tomado um único copo de cerveja. Será que ele vai falar sobre ela com os amigos, Margaret se pergunta.
O prodígio do xadrez, Ivan Koubek. Quase nada sobre ele foi de fato explicado. Quieto, parecia observar os outros e perceber muitas coisas, e quando falava suas palavras transmitiam uma solidão que a comoveu. Foi muito gentil com ela na cama, ela se lembra: tão gentil que ela acha difícil, mesmo agora, se arrepender completamente do episódio ridículo. Ela nunca tinha dormido com um desconhecido. Mas Ivan não lhe pareceu, naquele momento, um desconhecido: ele parecia, de forma consciente demais, estar do mesmo lado que ela. Sim, isso de novo — e o que isso sequer significa? Agora, em todo caso, sua vida vai voltar, sem explicações, ao que era antes. Mas não, ela pensa, porque agora sua amorfia havia sido revelada, os princípios e sentidos antigos indo embora, soltos, e como ela poderia reintegrá-los? E ao quê? No outro cômodo, o zumbido para de repente e ela ouve algo parecido com uma cortina sibilando no trilho. Ih, ela pensa. Ih, meu Deus: ele estava no chuveiro. Desesperada, ela se levanta, termina de se vestir e com as mãos fazendo movimentos ágeis arruma a cama, ouvindo os passos dele no corredor.
Quando Ivan entra no quarto, está de cabelo molhado e usa um moletom cinza limpo. Ah, ele diz. Você acordou. Fiquei me perguntando se devia te acordar. Ele tosse e prossegue: Bom, é uma situação esquisita, mas eles só me deram uma toalha de banho e agora ela está molhada. Espero que não seja um grande incômodo. Desculpe não ter perguntado antes, mas como eu disse, você estava dormindo.
Ela está parada aos pés da cama de braços cruzados. O rosto parece cansado e inchado, os olhos inchados, vermelhos. Não tem problema, ela responde. Eu tomo banho quando chegar em casa.
Entendi, ele diz. Entendi, era o que eu imaginava. Desculpa.
Perto da orelha ele está com um cortezinho fino, onde ela imagina que tenha se machucado fazendo a barba. Você precisa de carona pra sua oficina?, ela pergunta. Não ligo de te levar.
Ah. Na verdade, seria ótimo, se não for dar trabalho.
Ela está mexendo no botão do cardigã. De jeito nenhum, ela diz. E olha, se você não se importar, eu agradeceria muito se você não contasse ao pessoal do evento hoje. Sobre ontem à noite. Desculpa te pedir isso, mas acho que seria complicado pra mim no trabalho se todo mundo ficasse sabendo.
Ele dá uma risadinha estranha. Não, é óbvio, ele diz. Eu te entendo, mas isso não é o tipo de coisa que eu diria ao pessoal de uma oficina de xadrez, de qualquer forma. A conversa não chega nesses assuntos. Por várias razões.
Sem erguer os olhos, ela faz que sim e diz: Você vai? Ela se cala, sorrindo, enxugando o nariz com os dedos. Eu ia perguntar se você vai pra casa hoje, ela disse. Mas eu nem sei onde você mora.
Ah, eu moro em Dublin, ele diz. E, sim, eu volto hoje. De ônibus.
Os olhos dela estão vermelhos, o rosto está vermelho, ela assente, por alguma razão fingindo abotoar o cardigã.
Eu provavelmente tenho que sair logo, ele diz. Pra não perder a hora do troço.
Sim. Estou pronta.
Está bem, eu só quero te falar uma coisa antes.
Ela olha para ele, e ele está olhando para ela — um olhar muito direto e intenso, como na véspera, quando os jogos terminaram e todo mundo estava indo embora, o mesmo olhar. Posso te dar o meu número?, ele diz. Caso uma hora você pense em mim. Eu podia salvar o meu número no seu celular e ele ficaria lá, você nem precisa olhar pra ele se não quiser. O que você acha?
Com os dedos, ela esfrega os olhos. Deixa eu pensar, ela diz.
Lá fora, a manhã úmida e gelada, os galhos das árvores gotejando. Eles entram no carro juntos e refazem o caminho que percorreram na noite anterior, e de novo os dois se calam, de novo o limpador de para-brisa vai e vem. Depois de estacionar em frente ao prédio, ela diz: Pode me dar o seu celular. Mas eu não sei se vou ou não entrar em contato. Tudo bem? E se você não tiver notícias minhas, não vai ser porque eu não pensei em você. Eu vou pensar em você. Só preciso entender o que é melhor. Ele diz que entende e digita o número no celular dela. O horário no painel é 8h56. Ele sai do carro e ela o observa indo até a porta, carregando a mala preta. Uma das rodinhas da mala está torta, quebrada — agora ela repara. Deve ser por isso que ele carrega em vez de arrastar.
Na entrada, ele se vira e olha para ela por cima do ombro. Então some, a porta se fechando. A porta de seu próprio local de trabalho, com sua maçaneta retangular achatada, com uma vidraça quebrada no canto inferior e remendada com fita adesiva marrom. Ela já foi refreada, refreada e conduzida, pelas armadilhas da vida cotidiana. Agora já não se sente mais refreada ou conduzida por essas forças; já não é mais conduzida por absolutamente nada. A vida se soltou de sua rede. Agora ela pode fazer coisas estranhíssimas; agora pode encontrar uma pessoa estranhíssima para si. Jovens podem convidá-la para entrar em chalés de veraneio por motivos sexuais. Não significa nada. Não é verdade: significa alguma coisa, mas o significado é desconhecido.
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