'O amor é uma compensação, uma vingança': o novo romance de Ariana Harwicz

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"Tudo o que se diz sobre o amor está errado. Tudo o que tendem ou dizem entender, errado. O amor é uma compensação, uma vingança. O amor são centenas de macacos agressivos que saqueiam os fiéis na porta de um templo budista".
Não é segredo para ninguém que a argentina Ariana Harwicz é uma das minhas autoras contemporâneas favoritas. Passei a acompanhar sua prosa turbulenta e desafiadora quando a conheci com "Morra, Amor", em 2019 (Instante, como os demais livros dela no Brasil, tradução de Francesca Angiolillo). Desde então, li tudo o que pude de Ariana.
Uma passagem de "O Ruído de uma Época" (tradução de Silvia Massimini Felix), reunião de aforismos, pequenos ensaios e correspondências trocadas entre Ariana e o escritor e tradutor chileno Adan Kovacsics, exemplifica uma das principais virtudes da autora. Falo da não condescendência.
Ao traduzir "A Débil Mental" não sabemos para qual idioma, a tradutora procurou a argentina para conversar. Talvez fosse melhor usar aspas quando a personagem chama a si de retardada mental, aconselhou. O termo é ofensivo no meu idioma, argumentou. "No meu também", respondeu Ariana. É para ser ofensivo.
A obra de Ariana contrasta com qualquer literatura que pretenda ser um compêndio de boas intenções, algo bastante comum nesses dias em que os próprios leitores parecem recorrer a ficções em busca do mundo perfeito que não encontram fora dos livros.
Não surpreende que muita gente fique reticente ao se deparar com mães que desejam o fim de suas famílias, relações com toques incestuosos ou homens que flertam com a pedofilia. São personagens que aparecem em diferentes livros da escritora.
"Somos 99% normais, dizem os parricidas, é só uma diferença de 1%, é só isso que nos separa dos criminosos. Um pequeno antes e depois, o próprio nada". Lemos nas primeiras linhas de "Perder o Juízo", novo romance de Ariana que acaba de ser publicado no Brasil (também traduzido pela Silvia). É nesse tênue limite entre a normalidade e a bestialidade que os personagens da autora se equilibram. Em algumas ocasiões, pendem para o 1%.
Uma ação impulsiva, uma atitude não planejada, uma presepada num momento de fúria... Isso basta para que o limite seja rompido e a condição anterior jamais possa ser reestabelecida. A partir do lapso, o que temos é uma escalada da ruptura, a reafirmação do caos, a firme recusa ao mundo regrado de outrora.
Em "Perder o Juízo", Lisa Trejman rompe a normalidade imposta. Argentina vivendo no interior da França, numa região onde os desenhos de suásticas mostram a ascensão da extrema direita, Lisa é afastada de seus dois filhos após brigar com o marido.
Sem paciência para as mesuras da Justiça, rebaixada ao ser vista como imigrante de poucos modos que talvez esteja interessada apenas em dinheiro, desolada pela distância imposta pelos juízes, Lisa resolve agir. Para se vingar do ex-marido e reaver seus filhos, taca fogo na casa onde eles vivem, coloca as crianças num carro roubado e foge para uma longa viagem.
Entre idas a vindas no tempo, Lisa repassa sua história e destila sua visão de mundo, compartilha as frustrações, ranços e amarguras. Como em outros livros de Ariana, cabe ao leitor refletir sobre os embates propostos, chegar —ou não— a respostas sobre as enrascadas e conflitos éticos, morais e legais retratados.
Já sabemos que Ariana não arquiteta a sua ficção para ensinar nada a ninguém. Também conhecemos bem a sua linguagem, as provocações que seus romances costumam trazer —a citação do começo do texto, retirada desse novo livro, é uma amostra— e os personagens idiossincráticos que povoam sua literatura. Para quem acompanha a autora, "Perder o Juízo" não soa como novidade.
Ainda assim, sempre vale a pena ler Ariana Harwicz.
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