Flavia Guerra

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Opinião

Fé, ambição e segredos: 'Conclave' surpreende com thriller político

Há em "Conclave" um personagem que chega e subverte, sem fazer alarde, a lógica que regia, até sua chegada, o processo de eleição de um novo papa. A priori, a trama inspirada no livro de Harris parece se tratar de um thriller político sobre poder, mas, na verdade, traz em sua essência um estudo minucioso sobre a natureza humana.

Em linhas gerais, o papa acaba de morrer e um novo deve ser escolhido. Inicia-se, então, o Conclave e o cardeal Lawrence (Ralph Fiennes) é o encarregado de coordenar a eleição. Nitidamente cansado (de algo que, à primeira vista, não é decifrável), ele tenta conduzir o processo de maneira idônea e proteger a escolha do novo líder católico de conchavos e jogos de poder.

Mas seu cansaço é mais profundo. Ele não queria coordenar o conclave, mas foi um desejo do pontífice. Ao longo do conclave, para piorar sua situação, há quem o considere para liderar também a Igreja Católica. Eis que entendemos um pouco de sua fadiga. Além de enfrentar o exaustivo processo, ele enfrenta sua crise particular. É sua fé, não em Deus, mas na instituição que está em jogo.

Que fique bem claro que aqui o pano de fundo é um dos rituais mais secretos do mundo e da Igreja Católica, mas não é da instituição em si que tanto o autor do romance no qual o livro é inspirado (o britânico Robert Harris, que lançou o livro homônimo em 2016) ou o diretor Edward Berger querem tratar.

Obviamente o ritual católico é fascinante e cinematográfico (muito bem fotografado por Stéphane Fontaine, aliás), mas poderia ser a escolha de um líder de outra religião, de um presidente, primeiro-ministro ou um CEO de uma multinacional.

Cineasta meticuloso e brilhante, Berger retrata a coreografia dos cardeais que vão e vêm pelas dependências do Vaticano, onde o Conclave ocorre, com detalhes de encher a tela e os olhos. A votação é realizada na Capela Sistina, em um ritual milimetricamente coreografado, em que os cardeais escrevem num papel seu eleito e depositam em uma urna.

Após contabilizados, os votos são queimados. Se a grande maioria escolhe um novo papa, temos a fumaça branca. Se não, fumaça preta. É fascinante como Berger consegue filmar com elegância, curiosidade e dinamismo um processo que poderia ser, no mínimo, enfadonho aos olhos de um leigo. No entanto, a cada votação, cada troca de olhar, cada cochicho entre um cardeal e outro, cada trama palaciana, o Conclave se torna cada vez mais intrigante e revelador.

A propósito, um grande esnobe do Oscar 2025 foi o fato de Berger não ser indicado a melhor direção. No entanto, apesar de aparentar ser um thriller sobre a ganância, a ambição e o poder dentro da igreja, "Conclave" é um filme sobre a natureza humana e o que faz dela divina. Não seria o bem que se faz em vida, essa trivial e cotidiana, o dom divino?

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Arquiteto de formação, Carlos Diehz foi descoberto pela diretora de elenco Nina Gold e se tornou o grande destaque de "Conclave"
Arquiteto de formação, Carlos Diehz foi descoberto pela diretora de elenco Nina Gold e se tornou o grande destaque de "Conclave" Imagem: Divulgação

Pois é exatamente isso que o personagem "estranho" (voltamos a ele) chega para responder. Interpretado pelo mexicano Carlos Diehz, o cardeal Benitez aparece no meio do "jogo" diretamente do Afeganistão, onde trabalha em uma missão que envolve risco e requer muita fé, não somente em Deus, mas no ser humano.

Benitez surge como penetra em uma festa para a qual não foi convidado, surpreendendo a todos. Por todos, entendam-se os principais jogadores desse xadrez religioso político. Há o cardeal Tremblay (John Lithgow), exímio articulista, que joga com movimentos sutis e bem estudados em prol de seu plano de se tornar o novo pontífice.

Há também o progressista cardeal Bellini (Stanley Tucci), que tem uma visão contemporânea, mas jamais desrespeitosa, do papel da igreja em um mundo que está em franca mudança. Há o conservador e xenófobo Tedesco (Sergio Castellitto), que encarna a face mais retrógrada não da igreja, mas da sociedade em si, que vê no outro o inimigo, o próprio mal a ser combatido.

Há ainda Lawrence no meio deste campo minado, tentando equilibrar as peças. Existe uma jogadora crucial, que parece ser um mero peão no tabuleiro, mas que é uma rainha: a irmã Agnes, a magistral Isabella Rossellini, mais que merecedora da indicação ao Oscar de melhor atriz coadjuvante.

Em "Conclave", Isabella Rossellini é irmã Agnes, papel que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Atriz Coadjuvante
Em "Conclave", Isabella Rossellini é irmã Agnes, papel que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Atriz Coadjuvante Imagem: Divulgação
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É de Rossellini o momento mais desconcertante da trama. Em um momento de certo caos, quando uma revelação de uma trapaça chacoalha a ordem vigente no refeitório dos cardeais, ela toma a palavra com propriedade e deixa bem claro que, ainda que as mulheres sejam quase mudas nesse jogo, elas não são cegas.

E há, por fim, o jogador crucial, que chega como uma peça que não se encaixa nesse tabuleiro, mas que apresenta um espelho para os jogadores. O que eles veem é reflexo de suas facetas mais humanas, muitas vezes sombrias, que se perdem muitas vezes da missão pelo caminho que, ainda que sejam sacerdotes, é povoado por qualidades muito humanas e mundanas, como o medo, a dúvida, a ambição, o erro.

Mas o que vale mais? É Carlos Diehz, em conversa exclusiva para Splash, quem responde: "É um estudo sobre a condição humana. Robert Harris teve a ideia de, bom, porque não escrever algo dentro da Igreja Católica, que sempre foi um mistério. O conclave é algo velado. Não só para os católicos, mas para o resto do mundo. Então, por que não abrir isso um pouco?"

"É sabido que existe esse tipo de, não maquinações, mas de conversas e tudo isso para ver quem pode ser o melhor papa. Quem pode continuar levando a Igreja Católica adiante? A maneira como ele faz isso, obviamente, é uma maneira atraente. Ele fala do caráter humano, de enxergá-lo mais além", completa o ator que é arquiteto e que decidiu, como um projeto paralelo de realizar um desejo antigo, estudar atuação no Canadá, onde vive.

No processo de seleção de elenco, foi descoberto pela diretora de casting Nina Gold e se revelou perfeito para viver o circunspecto, simpático, mas sempre muito observador, cardeal Benitez. Ao chegar como um peixe fora d'água no jogo do Conclave, ele incomoda apenas por ser diferente, não se envolver nas maquinações e, principalmente, ter um papel decisivo para o desenrolar da eleição, que começar a literalmente se embolar.

A escolha de Diehz não foi por acaso, pois Nina queria exatamente provocar no elenco do filme o mesmo estranhamento que os cardeais sentem com a chegada de Benitez. "A intenção foi trazer uma pessoa nova, um novo ator que ninguém conhecia, porque o sentimento de estranheza de "quem é?", não era apenas no set, mas no ambiente do filme e também fora?", diz Diehz.

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"Eles me perguntaram: "Como você chegou aqui?" Stanley Tucci me perguntou em uma cena: "E você realmente vai voltar a fazer arquitetura depois disso? Pois, sim, é o meu trabalho do dia a dia. E ainda estou fazendo isso", completa. "Estou preso agora um pouco entre os dois mundos: a arquitetura e a promoção do filme, mas acho completamente fascinante."

De fato, tal qual o "Conclave", o trabalho de Diehz é fascinante e, assim como todas as outras oito indicações que o filme recebeu ao Oscar, merecia uma nomeação: a de melhor ator coadjuvante. De toda forma, que a justiça seja feita e ele tenha cada vez menos tempo para a arquitetura e mais tempo em novos sets.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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