Filho de Santos e do mar, chef Dário Costa vê salvação em peixes rejeitados

Essa é uma história sobre Santos. Mas não só sobre a cidade. Graças a um caiçara que teima em viver de mar por onde for, esta também é uma história sobre todas as águas que cercam o Brasil, de Fernando de Noronha até, quem diria, São Paulo.

Atravessando fileiras de peixes e frutos do mar fresquíssimos e subindo as escadas até o mezanino do Mercado de Peixes, está Dário Costa sentado em um dos mesões de seu Paru.

Hoje, o chef, além de um homem do mar, pode se dizer um homem dos negócios: além do Paru, o Madê, em Santos; a peixaria Açougue do Mar em Santos e São Paulo; a cozinha do Deus Cafe São Paulo e o Benedita Cozinha Afetiva, em Noronha.

Depois de manhã de boas ondas, sem voltas ou intervalos — a não ser para receber o cumprimento de amigos e conhecidos —, Dário começa a história pelo futuro.

O Madê, seu primeiro restaurante, que fez 7 anos em 2024, vai se mudar para uma casa maior e para perto de onde se vê - e se saboreia - a cultura do mar e da praia, num antigo bairro de pescadores. Muito diferente do que é hoje.

Tudo começou lá e nunca tivemos a pretensão de ser um restaurante elitizado. Lutamos muito para que não fosse assim, mas algumas coisas fizeram com que a gente não conseguisse, lamenta.

Ambiente do Madê
Ambiente do Madê Imagem: Fabrício Garcia

Hoje localizado no tradicional bairro do Boqueirão, atrai uma clientela jovem e viajada. Ainda que não consiga tirar o famoso Macatum (macarrão + atum) do cardápio, trata-se de casual dining: a cozinha aberta, a arquitetura descolada, as referências cool à cidade, como a mureta da orla que eleva as sobremesas ou o mapa de Santos na tuille de pão de cará.

"Eu tinha uma certa frustração de não ter um restaurante democrático. O Madê, com o tempo, na marra, foi virando uma realidade e um sucesso, mas queria que não se preocupassem com a roupa que estão indo ao restaurante. E eu ouvi muito isso lá", relembra.

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Banquete, do Madê
Banquete, do Madê Imagem: Fabrício Garcia

A maior frustração, no entanto, está na difícil conquista do santista mais conservador.

A gente deve assustar principalmente com o que fazemos em relação aos peixes, supõe.

Rejeição do "nosso"

É impossível não parar em frente à vitrine-geladeira em uma das faces do Paru, onde se lê: "Não temos salmão".

E está aí a obsessão de Dário: os peixes. E não começou com o Madê, nem com a explícita ansiedade diante dos pescados nas provas do primeiro MasterChef Profissionais, em 2016, ou do Mestre do Sabor, em 2020 - do qual saiu campeão, "foi o que me ajudou a levantar as contas na pandemia".

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Dário Costa, no Benedita Cozinha Afetiva, em Noronha
Dário Costa, no Benedita Cozinha Afetiva, em Noronha Imagem: Menu Studio

Depois da morte do pai, Dário foi para o mundo. Primeiro, Nova Zelândia. Do outro lado do mundo, começou lavando louça e aprendeu a cozinhar de forma rápida, limpa e organizada. "Mas sem tanto entusiasmo, era um trabalho para me sustentar", relembra.

Aos 25, começou a se preocupar com uma evolução na cozinha e partiu para a Itália, na Liguria. Lá, conseguiu trabalho no Vescovado, hoje uma estrela Michelin e referência em peixes e frutos do mar.

Lá eu comecei a ver anchova, carapau, trilha, tamboril, boa parte desses peixes eu já conhecia, mas caramba, o mesmo peixe grande que a gente tem lá. Usando esses peixes, comecei a dar atenção e falei 'o dia que eu voltar pro Brasil, vou trabalhar com eles'.

Dito e feito: graças aos contatos de uma vida, feitos quando o pai comandava uma empresa de mergulho - "não pra ver peixinho, é mergulho pra ver obra, casco de barco" — Dário voltou a ir nas descargas e começou a ficar cada vez mais impressionado com o desprezo a peixes locais em comparação, por exemplo, ao salmão (que bombava nos rodízios japoneses).

Um namoro da juventude ainda o apresentou à oceanografia, à especialista em pescados Cíntia Miyagi e ao Instituto da Pesca. "E a gente se ajudou", lembra.

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Mas quando voltou ao Brasil, sedento por mostrar peixes não-convencionais aos conterrâneos, levou um banho de água fria.

"Os clientes não ligavam", conta. Mesmo os mais próximos, para quem Dário mostrava os peixes inteiros antes de serem preparados, faziam cara de nojo.

Apresentação de guerrilha

Peixe inteiro na brasa, do Paru
Peixe inteiro na brasa, do Paru Imagem: Fabrício Garcia

Decidi fazer na marra e, no começo, ninguém entendia porque eu queria usar estes peixes. Mesmo assim, a gente nunca desistiu, continuou tentando e melhorando e descobrindo a melhor maneira de fazer cada um deles, diz.

No segundo restaurante, o Paru, aberto em 2022 após adiamento pela pandemia, dois tiros certos.

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Um, a democracia - "porque vem desde uma pessoa que toma um choque e come uma croqueta de peixe até quem pede uma bandeja de ostra, uma de camarão e toma espumante".

Outro, a apresentação do peixe não-convencional de uma forma irresistível a turistas e locais, que agora precisam, de fato, se preocupar com a roupa que vestem, mas somente pelo cheiro de mar inevitável que se carrega de lá.

"Aqui sempre tenho três opções de peixe na brasa: um para servir espalmado, um para filé e um inteiro. Pelo menos dois são não-convencionais e um mais conhecido, como pescada branca, sororoca ou carapau".

Além do fogo, a casa oferece de opções cruas, a frituras e sanduíches. E mesmo nelas, Dário apresenta peixes pouco conhecidos, mas inquestionáveis em sabor.

Quando você vai comer um fish and chips ou um McFish, você não pergunta que peixe é. No meio desses pratos supercomerciais é que você vai encontrar peixes mais diferentes, como Paru, Olho-de-cão, Roncador, entrega.

McFish, do Paru
McFish, do Paru Imagem: Fabrício Garcia
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No Madê, as surpresas não são diferentes: o bao com unagui de bagre faz sucesso, ao mesmo tempo que gera mal-estar na mãe de Dário na lembrança de, em tempos de pobreza, só ter bagre e corvina disponíveis.

Hoje esses peixes já estão mais celebrados pelo mercado, muito por influência de Dário. "Mas o santista sempre tratou esses peixes como 'comida de pobre'".

Duas revoluções sociais criaram momentos perfeitos para Dário finalmente "vender seu peixe", com o perdão do trocadilho: a greve dos caminhoneiros, em 2022, que não fechou o Paru porque os principais produtos estavam logo ao lado. E a pandemia, que fez mais gente prestar atenção no que comia.

Ontem, no 25 de janeiro de 2025, véspera do aniversário da cidade, outra revolução: no tradicional Baile da Cidade, muitos dos que torceriam o nariz para os peixes de Dário celebraram com o sabor do mar santista: de Temaki de Guaivira a Bao de bagre.

Temaki de Guaivira, do Madê
Temaki de Guaivira, do Madê Imagem: Fabrício Garcia
Bao de bagre, do Madê
Bao de bagre, do Madê Imagem: Fabrício Garcia
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Para sobremesa, Cannoli de biju, inspirado no que é vendido nas balsas que cruzam até o Guarujá e mousse. Mas o que tem de tão santista? Na receita, vai o irresistível de pão de cará.

Cannoli de biju, do Madê
Cannoli de biju, do Madê Imagem: Fabrício Garcia

A moda do peixe

Atualmente, não são poucos os projetos e chefs que defendem a pesca artesanal e produtos do mar com qualidade e procedência. Dário, porém, acrescenta a esse foco no mar mais uma questão, pouco explorada.

"A gente vê cada vez mais as pessoas se preocupando em ter o melhor produto, menos mãos possíveis no seu produto ou indo direto ao pescador super artesanal, o que, obviamente, é bom pra caramba", enfatiza.

Só que essa galera toda falando só desse produto gera um preciosismo em cima dele, que ele é prejudicial pra toda a cadeia de pesca.

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Em palestra no Mesa Tendências de 2024, Dário, ao lado dos especialistas Philip Walsh e Cíntia Miyagi, mostrou dados que o consumidor não vê e o mercado não mostra.

Por exemplo, você sabia que os peixes que a gente conhece não representam nem 2% do volume do que é tirado do mar? "A gente tá falando de uma comparação de 25 mil toneladas no ano de 2023 de corvina pra 300 quilos de linguado", conta.

Outro dado é o social: 40% do consumo de peixe no Brasil é para classe alta e 40% mais ou menos é para classe baixa. Mas se faz o recorte por região, quem consome peixe no Norte e no Nordeste é o pobre. E quem consome peixe da classe alta é aqui no Sudeste.

Fazendo a matemática, temos muito peixe rejeitado e barato em um país onde se passa fome.

Se a gente tivesse uma educação alimentar diferente em relação a usar o que o mar oferece de maneira geral, será que a gente estaria com esse desequilíbrio tão grande? A gente não poderia estar equalizando?, questiona.

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Dário Costa
Dário Costa Imagem: Fabrício Garcia

Nunca longe do mar

Por coincidência, obra do acaso ou conjunção de ideias, muito do que Dário defende tem equivalência em outros mares e os mesmos temas chegaram à última temporada da série de sucesso Chef's Table, no episódio do chef espanhol Ángel León e seu Aponiente.

Ambos, um em cada margem do Atlântico, defendem que o que vem do mar vai salvar a humanidade da fome.

"Fiquei emocionado quando assisti", conta Dário, que dá essa lição de casa à reportagem. Sem spoilers, mas é, de fato, emocionante e quebra um tanto da timidez do chef revelar que o mar não é só um trabalho, é um norte.

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O contato com o mar estava selado também profissionalmente, mas fora da cozinha e das palestras, é para ele que Dário corre e onde surfa para se encontrar.

"Passei a minha manhã inteira lá dentro, pensando na vida. Antes da cozinha, eu queria ser surfista mesmo", diz, pouco antes de pegar de novo a prancha. Entre almoço e jantar, Paru e Madê, ainda dá tempo de pegar mais ondas.

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