'Prêmio não é politicagem': como pizzaria de SP ganhou como a n° 1 latina

"Tem pizza de frango?", pergunta, na ponta de uma mesa cheia, uma cliente que estava na Leggera Pizzeria Napoletana dos Jardins.

A carne da ave misturada ao Catupiry, criação da marca de queijos em São Paulo nos anos 70, não é, tipicamente, ingrediente do gentílico que dá nome à casa e a massa é diferente da que os casarões e casinhas da Paulicéia oferecem como "a melhor pizza do mundo" (segundo os paulistanos mesmo).

Ainda que não seja lugar da pizza paulistana, "mêo", a casa, nascida há 12 anos em Perdizes, chama cada vez mais atenção dos locais, mas não só. A Leggera acabou de conquistar o topo do inédito 50 Top Pizza da América Latina e coleciona uma série de troféus nos últimos três anos.

O segredo? Quem alegar que é "relacionamento" e "politicagem" compra uma boa briga com André Guidon, o chef-pizzaiolo da eleita melhor pizzaria latina.

André Guidon, chef-pizzaiolo da Leggera Pizzeria Napoletana
André Guidon, chef-pizzaiolo da Leggera Pizzeria Napoletana Imagem: Gui Galembeck

Ideia no estômago

Neto de italianos, a herança gastronômica de André não começa em São Paulo, mas em Nova York - para onde seu avô foi ainda criança e cidade natal de sua mãe. Na cidade americana, o mestre-queijeiro e sua esposa, avó de André, forneciam da ricota ao provolone para a comunidade italiana de lá.

Mais velhos, montaram um laticínio e deli italiana na Flórida, onde André, nascido em São Paulo, passou marcantes momentos da infância, mas nem sonhava seguir a linhagem de artesãos da comida, iniciada pelo bisavô italiano.

Formado em desenho e ajudante do pai em ofícios de estúdio, gravadora e produção musical em plena transição do analógico para o digital, a cozinha era um hobbie e ir a pizzarias, um lazer. Até a coisa pesar no estômago. Literalmente.

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Foi graças a uma pizza indigesta em uma casa tradicional de São Paulo de nome não revelado que André teve um estalo:

Sabe quando não desce a comida? Eu falei: 'não é possível. Não tem uma pizza que não cause isso? Na época, pizza era pra enfiar o pé na jaca.

Com a então namorada - hoje esposa - de família napolitana, André partiu para a 'Terra Prometida', em que pizza é rainha e Maradona, rei.

Preparo da pizza Margherita da Leggera Pizzeria Napoletana
Preparo da pizza Margherita da Leggera Pizzeria Napoletana Imagem: Gui Galembeck

Tutto in famiglia

"Quando eu cheguei lá, me encantei pela cidade, pelo produto, pela qualidade dos insumos. Conheci pizzaiolos, e lá eles eram os donos da pizzaria, comecei a estudar, ia fazer um curso nas férias, viajava e fazia estágio", lembra.

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Se sentindo pronto e inspirado, foi na família da esposa que encontrou a companhia para o primeiro passo rumo a pizza: Fábio Muccio e Bruno Caccavalle, cunhado e tio da esposa, respectivamente, que se tornariam seus sócios.

Entre 2012 e 2013, sem compromisso e com muitas ideias e pequenas reformas, a pizzaria começaria a tomar forma no número 80 da rua Diana, muito próximo ao antigo Palestra Itália (hoje Allianz Parque). No começo, somente às sextas e sábados, como "num clube da pizza".

Em três meses, explodiu, recorda.

André Guidon, chef-pizzaiolo da Leggera Pizzeria Napoletana
André Guidon, chef-pizzaiolo da Leggera Pizzeria Napoletana Imagem: Gui Galembeck

Tudo que a gente usava na pizza era diferente de todas as outras pizzarias e muitos fornecedores estavam aprendendo com a gente. Estava começando a importação de farinha italiana, a charcutaria artesanal. Nos primeiros anos, a gente fez a ricota na própria Leggera e, durante muito tempo, a gente filou o nosso próprio fior di latte porque ninguém nem acreditava que o produto que eu utilizava era comercial, diz.

Com cardápio enxuto e receitas "do zero", num turbilhão de negócio e aprendizados, a Leggera dava luz a um novo mercado da pizza. Sim, tradicional. Com certeza, napolitana. E, sem dúvida, disruptiva.

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Com o sucesso da empreitada, em 2018 chegava a hora de procurar novo endereço, que levasse à Leggera um público além dos apaixonados palmeirenses e dos moradores de Perdizes e região. Em 2019, Jardins e uma casa de mais de 100 anos seria a escolha certeira. ("do lado em que as pessoas saem para comer, não para tirar foto", provoca André).

Fechado o contrato em 2020, o mundo fechou e, para manter a pizzaria, a nova unidade ficaria em suspenso até final de 2021, quando a casa teria um novo "boom".

O Michelin da pizza

O 50 Top Pizza não foi o primeiro ranking a olhar para a Leggera. Antes disso, desde 2018, a pizzaria é "Tre Spicchi", do guia Gambero Rosso (de onde nunca mais saiu).

André Guidon, chef-pizzaiolo da Leggera Pizzeria Napoletana, recebe prêmio de 1° lugar da América Latina
André Guidon, chef-pizzaiolo da Leggera Pizzeria Napoletana, recebe prêmio de 1° lugar da América Latina Imagem: Divulgação

Desde 2022, porém, quando entrou para o ranking das 100 melhores pizzarias do mundo, pelo 50 Top Pizza, é inegável que a atenção cresceu e apareceu - em 2024, a Leggera chegou ao 11° lugar global.

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"Meu nome acabou ficando muito evidente durante esses anos no mercado profissional da pizza entre os profissionais do restaurante e pizzaiolos. Vira e mexe o pessoal pergunta: 'André, como é que eu faço? Eu também quero ser avaliado'", conta.

A resposta de Guidon é a mesma:

Nunca me inscrevi em nada ou tive contato direto, só no prêmio. Ainda assim, os curadores não são os inspetores, explica.

Ou seja, a lista funciona quase da mesma forma que o prestigiado Guia Michelin: avaliações secretas, anônimas e nada de convite dos participantes.

"A gente não sabe quem veio, nem quando foi avaliado. Só chega um e-mail pra você. E na primeira vez, foi para minha caixa de spam", ri.

André Guidon, chef-pizzaiolo da Leggera Pizzeria Napoletana
André Guidon, chef-pizzaiolo da Leggera Pizzeria Napoletana Imagem: Gui Galembeck
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André também responde aos críticos (e à ciumeira que os prêmios geram) que não é uma questão das marcas patrocinadoras e dá como exemplo o segundo lugar do ranking latino, a Ti Amo, de Victoria e Carola Santoro, de Buenos Aires, Argentina. "Em crise econômica, agora que começou a aparecer um produto ou outro, mas é esforço de fruto do trabalho delas", opina.

No ranking, são diversos estilos de pizza e para André, a divisão é uma só:

Tem dois estilos de pizza: boa e ruim. Se for bem-feita, toda pizza tem seu espaço, seu lugar, tem cliente, tem gente que vai ser fã. Se você não gosta desse estilo de pizza, é um gosto pessoal. Agora você falar que não tem qualidade é uma outra coisa, afirma.

Pizza de produto

A Leggera é em torno do produto. Desde o princípio, a preocupação não era ter música ao vivo ou piano de cauda na entrada da pizzaria. A gente queria sempre que fosse a passagem mais barata pra Nápoles, descreve.

Em 12 anos, André conta que a conjunção de evoluções jogou a favor.

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Primeiro, dos produtos e dos fornecedores, que hoje estão desde a charcutaria e queijos paulistas até o sonho de importar o tomate San Marzano DOP ("a alma da pizza napolitana"), em certificação inédita no Brasil.

Os tomates San Marzano DOP, da Leggera Pizzeria Napoletana
Os tomates San Marzano DOP, da Leggera Pizzeria Napoletana Imagem: Gui Galembeck

Depois, seu próprio conhecimento e defesa da massa bem-feita, priorizando a garantia de que a digestão faz parte do prazer de saborear uma pizza, o que rendeu um livro ("A FÓRMULA SECRETA: Desvendando a Alquimia da Pizza") e algumas polêmicas.

E evoluiu também o próprio público, que mais viajado e antenado, começava a conhecer o que era a pizza napolitana e entender sua magnitude, "exportada" das viagens até mesmo nos itens de decoração das duas casas.

"A gente acabou educando gastronomicamente as pessoas. Os prêmios são muito interessantes, porque coroam um trabalho bem-feito, mas também aumentam a base de quem busca conhecer o que a gente faz", acredita.

A "democracia" da pizza acaba atraindo desde uma família comemorando alguma coisa ou um casal começando a namorar, a um casal de velhinho, um grupo de amigos e estrangeiros, já que a unidade Jardins fica bem próxima a hotéis.

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Acaba virando um lugar em que a bandeira de todo mundo é a pizza, diz André.

Pizza Margherita com tomate San Marzano DOP, da Leggera Pizzeria Napoletana
Pizza Margherita com tomate San Marzano DOP, da Leggera Pizzeria Napoletana Imagem: Gui Galembeck

A "vera napolitana"

Uma das primeiras da América Latina a receber o selo da Associazione Verace Pizza Napoletana (AVPN), a Leggera defende "evolução dentro da tradição", diz André.

"A pizza vem de um movimento popular, de um produto simples, comida de rua, e ela vai evoluindo para dentro do restaurante, que vira pizzaria, e que depois vai se ligando com o produtor e o que ele oferece de melhor".

Há, claro, as especificidades para conquistar o napolitano, da produção da massa em método direto - todos os ingredientes de uma vez —, ao assamento no forno a lenha muito quente ("450 °C, pelo menos. Por 60, no máximo, 90 segundos").

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É uma pizza individual, macia, portanto, não é crocante. É muito fresca porque ela passa pouco tempo no forno, então as coisas não cozinham demais, não derretem, não gratinam. Aí você começa a ir para como a Unesco reconheceu a arte do pizzaiolo napolitano.

Pizza ragù de wagyu com tomate San Marzano DOP, da Leggera Pizzeria Napoletana
Pizza ragù de wagyu com tomate San Marzano DOP, da Leggera Pizzeria Napoletana Imagem: Gui Galembeck

Opa, atenção: é a arte da pizza, não a pizza em si.

"Por isso que eu, André, tenho uma pizzaria napolitana, às vezes um pouco diferente de uma outra pizzaria napolitana. Porque ali tem a minha assinatura, de como eu enxergo o meu produto, como eu quero que ele saia no final, como eu quero que o meu cliente receba essa minha expressão da arte", explica.

E quem ficou curioso para saber qual foi a saída diante do pedido de uma pizza de frango, a atendente evocou Nápoles à Rua Capitão Pinto Ferreira num segundo:

"Não temos frango. A senhora conhece a pizza napolitana? (aponta o cardápio). Temos as 'rossa', com base de molho do melhor tomate do mundo, e as 'bianchi'...". A cliente conquistada arregala os olhos e vê a tradição sendo novidade e abrindo o apetite.

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