Ela trocou a alta cozinha por bar de sonho: 'Quis fugir, mas me encontrei'
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Ao chegar ao Fresta, atravessam-se mesinhas e cadeiras de madeira, um balcão voltado para bar e cozinha abertos. À esquerda, uma seleção de vinis e um toca-discos. Na coluna do centro, voltada para a cozinha, um ex-voto em forma de coração humano em madeira.
A peça de Dunga Sampaio, na arte sacra do Nordeste, é uma forma de agradecer por um feito alcançado. E é de construção, alguma sorte e muito suor que a chef gaúcha Carol Albuquerque pode ver seu Fresta (@fresta.bar) nascendo e vibrando desde o fim de fevereiro.
A história dessa casa de ótima comida, bebida e música — graças à sócia e amiga de infância Daniela Cucchiarelli —, porém, não começa na cozinha, mas tem os dois pés nas vontades e nas artes.

Dos palcos à cozinha
"Sempre fui uma criança que gostava de comer e inventar, mas não teve isso de avó e mãe", conta Carol, cujo primeiro empreendimento foi vender no colégio os chocolates que aprendera em um curso.
Sua casa, em Porto Alegre, era um ponto de encontro entre amigas, onde ela era a boleira oficial ("eu fazia comida para presentear"). Seu bairro era lugar de feira de orgânicos, onde começava a ver a comida além das receitas e pratos.
Eu gostava de estar na cozinha e de reunir as pessoas na minha casa pra comer. Eu fazia bolo e presenteava as pessoas. Então, foi aí que começou.

Ao mesmo tempo, no meio da adolescência, Carol se encantou pelo teatro. Aos 19 anos, foi para o Rio tentar a vida nos palcos. Pouco depois, chegou a São Paulo e entrou para a Cooperativa Paulista de Teatro. Para se manter, trabalhou no Ritz.
"Eu tinha 21 anos e eram pessoas muito legais, que hoje estão no mercado. Nessa época, pedi pra trabalhar na cozinha, porque lá é um lugar meio de todo mundo. Basta querer aprender que você pode entrar", diz.
E lamenta não ver a mesma gana em jovens cozinheiros: "Sinto também que as pessoas não têm o interesse, porque ser cozinheira requer um trabalho de repetição."
"De repente", diz, Carol largou o teatro. E voltou a Porto Alegre, onde seu rumo para a cozinha caminhou rapidamente.
"Pedi pra trabalhar num lugar que era do lado da minha casa, de pães e cucas, como auxiliar de confeitaria. Também me matriculei no primeiro curso de gastronomia de lá, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E quando comecei a estudar, logo quis ir para a França", resume.
Entre gigantes
Sem hesitar, Carol colocou o pé na porta da alta cozinha.
"Cursei um ano, tranquei e fui para um estágio de um mês no Olympe, do Claude [Troisgros], no Rio, onde passei por todos os setores da cozinha", lembra.
Depois, já em território europeu, passou sete meses num três estrelas Michelin.
Sempre fui muito de querer aprender com as pessoas que eu considerava que eram referência. Queria ter uma experiência real, conta.

Dentro de um grande restaurante, gigantescas brigadas e vendo a cozinha francesa clássica sendo feita ao vivo e a cores, Carol viveu o que se aprende nos livros de gastronomia.
"Todos os caldos sendo feitos, a riqueza dos insumos, porco, galinha e peixes chegando inteiro, cogumelos selvagens e frutos do mar frescos. É muito rico e válido. Você entra em contato com as matérias-primas", lembra.
De volta ao Brasil, mais um ano de curso e mais uma vontade lá fora, a de estagiar com Michel Bras, um dos mestres da gastronomia francesa e precursor da alta cozinha de vegetais.
Mandei uma carta e fui aceita. Bem assim essa história, juro por Deus. Ansiosamente liguei, contando quantos dias a carta chegaria lá e ele atendeu o telefone, você acredita? Ele me pediu dez dias para pensar e ele realmente me respondeu e me aceitou, descreve.
Durante um ano, aprendeu a relação única que os franceses têm com alimento ("muito verdadeira e genuína"), a valorização do artesanal, o "ser cozinheiro antes de ser chef", descascar muita cebola e batata antes de criar uma receita.

Neste prolífico 2008, conheceu um parceiro de vida e, por muito tempo, de cozinha, o chef belga Willem Vandeven, hoje no Maní de Helena Rizzo e também sócio no Fresta.
Cozinha de exaustão
No ano seguinte, Carol voltou para Porto Alegre, se formou na faculdade, enquanto Willem ficava mais um ano com Bras. Em 2010, o casal foi para a Bélgica, trabalhar num lugar desconhecido de Bruxelas. Ele, chef aos 25 anos. Ela e mais uma pessoa como ajudantes.
Aos poucos, Carol se aventurava em trabalhos solo, como na abertura do Bozar Restaurant, com Karen Torosyan, e com seu mentor, David Martins, no La Paix.
Na época, o centro de Bruxelas era muito frequentado pelos chefs porque tinha cozinha de produtos e aberta. Foi muito importante pra mim, porque na França eu fiz dois estágios bem importantes, mas na Bélgica eu comecei a trabalhar como cozinheira, com uma evolução, relembra.

Após quatro anos, porém, Carol lutava na rotina difícil e chegava a pensar em desistir. Toda a conexão, o olhar sensível para dentro e para fora que o teatro trouxera, se perdia na máquina da cozinha de ponta europeia.
"São muitas horas de trabalho e sempre levei muito a sério, dei o meu melhor, mas é meio dolorido", conta.
A cozinha vai te colocando numa bolha, sem descanso.
Finalmente, de Carol
De volta ao Brasil, Carol trouxe Willem a Porto Alegre e sua sazonalidade e produtores à porta do restaurante. Isso em 2014, quando essa realidade ainda não flutuava pelas cozinhas como narrativa e discurso.
Em um chamado de um amigo, o chef Marcos Livi, Carol e Willem vão para São Paulo para serem os comandantes do Clos de Tapas. Neste mesmo período, eles conhecem Helena Rizzo — que, coincidentemente, estudara no mesmo colégio que Carol na capital gaúcha.

Em 2016, o Maní de Helena passava por mudanças com a saída de Daniel Redondo e o casal foi chamado a serem chefs de criação tanto do menu à la carte, como do menu-degustação.
Helena é uma pessoa com a cabeça muito aberta. E o Maní foi o primeiro lugar no Brasil onde eu trabalhava oito horas por dia, uma mudança incrível. Comecei a ter como me dedicar a pesquisas e testes, trocando com a Helena e com o Willem. Começou, sim, a ter cor, afirma.
Com alegria e respiro, Carol se lembra de uma trajetória prazerosa e o início de uma confiança em sua própria expressão. Admiradora do talento e apuro estético do marido, a chef via que sua força estava em outras coisas, numa cozinha mais simples e direta.
Minha satisfação como cozinheira em fazer uma comida extremamente cuidadosa, bem-feita, muito bem temperada, mas eu quero que a pessoa reconheça o alimento que ela está comendo. Para mim, a criatividade se dá na construção do sabor, no improviso, diz.
Com essa nova força, Carol chamou atenção de mais colegas de renome, como Claude Troisgros, que a chamou para abrir o Chez Claude. Tarefa intensa, equipe grande, mas que por um ano e meio - e uma pandemia - deu certo.
De lá, outra abertura de peso, ainda que a vontade fosse dar um tempo na nada mole vida de chef. Desta vez, o Taraz, restaurante do chef Felipe Bronze no hotel Rosewood.
"O Felipe me ligou e me convidou pra conversar. Me fez a proposta de ser chef de cozinha, fazer a abertura toda do zero. E eu falei: 'Felipe, eu quero, mas eu não quero ser a chef, não quero ficar lá'". Proposta aceita e mais um ano e meio de trabalho.
O bom é que a vida vai me trazendo para realidade. Eu queria sair de São Paulo, montar um lugar no litoral, ter mais qualidade de vida. Mas eu entendi que não dá, que a gente tem uma vida aqui. As coisas têm tempo de amadurecimento, afirma, com os olhos azuis mais fechados e calmos e um suspiro.

Em 2022, Carol ficou grávida e se dedicou ao filho Frans por mais um tempo até surgir a abertura do Refúgio, junto da loja da importadora Casa do Porto, um projeto menor, relacionado a vinhos e com conceito gastronômico autoral. Finalmente, de Carol.
Com a intensidade que surgiu o restaurante, também apareceu a certeza que ritmos e desejos da chef e do mineiro Marcelo Magalhães não eram os mesmos. No dia seguinte em que deixou o Refúgio, Carol buscou uma das melhores amigas, a Dani lá do começo do texto.
Abria uma fresta.
Sonho abre em Pinheiros
Com saudade de cultura e de gente, Carol conta que Dani a conecta "com essa parte de mim que teve que ficar de paradinha durante todo esse tempo. É uma sonhadora também".

Dani, que queria um boteco, trouxe Marina Moser, também do universo da produção cultural e da música. Carol, que queria um restaurante seu, teve parceria de Willem até mesmo para encontrar a casa ideal.
Como todas as obras, tudo tomou tempo, dinheiro e proporção maior. "E a gente foi dando um jeito de conseguir. Sem investidor, sem nada. Por mais simples que seja, a gente gosta muito de tudo. Da mesa à luminária. Quando a gente viu, a gente não era aquele lugarzinho, mas não é um lugarzão", conta.
É uma realização de um sonho. Muitas vezes quis fugir da área, mas eu ficava com medo que era o que eu sabia fazer, que era o que eu gostava de fazer e que talvez eu tinha que ser persistente e continuar, porque eu estava tentando me encontrar. Não é fácil. Hoje, eu consigo ter um lugar seguro aqui, apesar das dificuldades, que eu não me desespero. Eu valorizo cada passo da minha trajetória, do apoio que tive. Que bom que eu tive, que bom que eu tô aqui, sabe?

Que bom que na frente do coração de madeira saem deliciosos ovos de codorna, legumes grelhados, um peixe do dia direto da brasa, a melhor alface que a cidade já viu. Caju Amiga, com cachaça, uma carta de vinhos naturais caprichados e outra de cervejas belgas e selvagens, como Willem também gosta.
"A lua! A lua!", aponta Frans, de saída do restaurante que já lotava um dia antes do aniversário de Carol, no alto de seus 2 anos e no calor de sua simpatia. Um sonhador de família.
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Maria Maria
ALTA COSINHA? ate quando?