Em carta pré-suicídio, goleiro desabafou sobre preconceito no São Paulo
O goleiro Jian Kayo Gomes Soares, que foi encontrado sem vida em sua casa em fevereiro do ano passado, em Itu, deixou uma carta antes do suicídio onde desabafou sobre depressão e o preconceito que sofria na época que jogou nas categorias de base do São Paulo.
O documento agora é usado por sua família em um processo contra o clube tricolor. O menino tirou a própria vida aos 21 anos, quando defendia o Ituano, e, de acordo com a carta, seu quadro depressivo começou quando adolescente e era ridicularizado por seu corte de cabelo por colegas e funcionários do clube tricolor.
"Um dia, chegaram em mim lá e só me falaram: 'o que é isso na sua cabeça?'; 'Que p... ridícula é essa? Parece um mendigo'", relatou Jian. "Fiquei 6 anos preso naquele lugar, onde nunca gostei de estar", continuou, referindo-se ao CT de Cotia.
Em 8 páginas escritas à própria mão, o goleiro fala de sua timidez, sobre problemas com autoestima e faz um emocionante e chocante desabafo sobre sua doença.
"Eu não quero mais jogar futebol. Eu nunca quis isso e só piorou a minha depressão. Ganhei um dom do universo de ser um ótimo goleiro e talvez ganhar muito dinheiro com isso, mas eu não quero. E também não quero viver com o peso de ter abandonado minha carreira precocemente", continuou Jian.
Ele também pediu perdão à mãe e aos amigos, disse que sonhava em ter filhos com a namorada e que não gostaria de ver as pessoas que ama sofrendo com sua partida.
Hallyson Fellipy Gomes Soares, irmão de Jian, que trabalha como professor de educação física, conversou com a coluna. Ele releu a carta em contato com a reportagem e se emocionou ao lembrar do irmão.
"Para mim, está sendo muito difícil. Há alguns meses eu não chorava por causa desse assunto. Tento não pensar, trabalho muito e quero deixar a mente ocupada, pois se fica parada eu lembro do meu irmão", disse Hallyson.
"Me dói ver essa carta dele dizendo que nunca gostou de futebol. Ele treinava todos os dias, a gente não tinha dinheiro para comprar uma chuteira. Ele não deixava de treinar, e tinha só um shortinho, uma calça e uma camiseta, e todo dia lavava na mão para poder treinar. E me fala que não gostava dessa merda? Claro que gostava. Mas fizeram ele desgostar", disse.
O irmão de Jian lembra do tempo que o irmão morou no CT de Cotia, do São Paulo, e como era difícil para o irmão. "Vejo reportagens na televisão, onde falam que Cotia é um lugar maravilhoso. Que as pessoas chegam lá e são tratadas como rei. É mesmo?", ironizou. "Por que não avisaram que não o queriam porque tinha cabelo grande pra cima, pois, infelizmente, nasceu em uma família escura, de pretos?".
Hallyson disse que o irmão poderia estar vivo se tivesse recebido apoio psicológico no tempo que cresceu junto à base do São Paulo.
"Nossa advogada tem os pareceres do tempo de São Paulo. Era acima da média. O que era abaixo? Comportamento. Pois era tímido. Se tinha traços depressivos, por que não chamaram a gente? Por que não detectaram que ele tinha traços suicidas em 6 anos? Não deixavam a gente ter contato com ele. Por que não nos avisaram que o dispensaram que ele não tinha capacidade psicológica de suportar essa pressão?", questionou Hallyson.
"Minha mãe hoje está em estado vegetativo. Eu tinha orgulho do meu irmão. Amava ele. Ele era o cara que cuidava da nossa mãe. E tiraram ele de mim. Eu quero saber quem vai devolver isso pra gente".
Em sua defesa no processo, o São Paulo alega que não existe relação direta entre a passagem de Jian pela base do clube e sua morte. O clube ainda diz que o atleta era um menino muito pobre, com péssima estrutura familiar, com parentes que sofriam de diversos problemas graves de comportamento.
A defesa de Jian rebate que a mãe criou dois filhos saudáveis e acreditava que Jian estava em um lugar seguro, enquanto sofria uma forte pressão psicológica dentro do São Paulo.
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Quero receberDe acordo com o que apurou a coluna, o São Paulo entende que o processo é oportunista, e que a família de Jian deve ter sido convencida por pessoas próximas a tentar ganhar dinheiro com a situação.
Procure ajuda
Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade. O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188, e também atende por e-mail, chat e pessoalmente. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.
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