'Me ignoravam': pessoas com deficiência têm risco maior de suicídio

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Desde a barriga da mãe, Silvia Larissa de Oliveira Nóbrega, 23, sofre preconceito. Com sete meses de gestação, sua genitora teve rubéola e descobriu que a filha teria uma deficiência. "Antes mesmo de eu nascer e confirmarem minha surdez, a sociedade dizia à minha mãe para abortar, por ser uma criança com deficiência", conta Silvia.
Na infância, achavam que ela não era capaz de nada por ser surda. "Muitas pessoas me ignoravam e se incomodavam quando fazia perguntas necessárias. Isso me deixava triste", conta a jovem que mora no Rio Grande do Norte. Com o tempo, a tristeza se transformou em solidão —sentimento típico da ansiedade ou depressão.
No passado, sentia uma profunda solidão, porque minha família, assim como algumas outras, não sabe Libras, o que tornava a comunicação muito difícil. Muitas vezes, eu precisava de atenção, apoio ou apenas alguém para me ouvir, mas acabava sendo ignorada ou não compreendida. Isso me fazia sentir isolada, como se eu estivesse vivendo em um mundo diferente do deles. A falta de esforço para aprender minha língua e tentar me entender plenamente aumentou ainda mais a sensação de solidão e desconexão. Silvia Larissa de Oliveira Nóbrega
Pesquisas mostram que pessoas com deficiência têm risco 2,8 vezes maior de apresentar sintomas depressivos do que quem não tem deficiência.

Quando não tratada, a depressão pode culminar em tentativas de suicídio, como foi o caso de Felipe*, 25, deficiente físico do interior de São Paulo que por duas vezes tentou tirar a própria vida após ser traído pela ex-esposa. "O pior foi no final da relação, quando ela me disse que por não andar, nunca encontraria ninguém, pois ninguém queria um aleijado. Naquele momento entrei em uma depressão profunda."
Após fazer acompanhamento psicológico, Felipe conseguiu mudar de vida e realizou o sonho antigo de ingressar na faculdade. "Hoje sei que sou capaz de muita coisa e que minha deficiência não me limita, mas me faz mais forte", conta.
Estudo realizado na Inglaterra revela um risco quatro vezes maior de tentativas de suicídio em pessoas com uma ou mais deficiências em comparação a pessoas sem deficiência.
Segundo César Augusto Trinta Weber, médico psiquiatra membro titular da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), a relação entre a deficiência e o suicídio pode ser explicada por diversos fatores:
Adversidades sociais e econômicas: pessoas com deficiência têm maior probabilidade de vivenciar desemprego, baixa escolaridade, pobreza e habitação de baixa qualidade. Esses fatores, que afetam diretamente as oportunidades de vida, estão fortemente relacionados a pior saúde mental e a um risco maior de suicídio;
Estigma e discriminação: a experiência de discriminação e exclusão social prejudica gravemente a saúde mental. Essas vivências incluem barreiras no acesso à educação, trabalho e atividades sociais. O estigma relacionado à deficiência pode gerar sentimentos de isolamento e desesperança;
Problemas de saúde mental: a deficiência frequentemente está associada a piores índices de saúde mental, um fator chave no desenvolvimento de pensamentos suicidas;
Condições crônicas de saúde: pessoas com deficiência geralmente apresentam maior exposição a fatores de risco comportamentais, como tabagismo, obesidade e falta de atividade física, que podem levar a doenças crônicas (como doenças cardiovasculares). Essas condições aumentam o risco de suicídio;
Questões de identidade e gênero: estudos sugerem que a relação entre deficiência e suicídio pode estar ligada a questões de masculinidade. Homens com deficiência podem ser estigmatizados como "fracos" ou "dependentes". No caso das mulheres, além da violência doméstica, isolamento, dependência, baixa autoestima e falta de relações íntimas com outras pessoas também são fatores de risco;
Falta de apoio social: pessoas com deficiência podem sofrer perdas no suporte social, seja por isolamento ou por barreiras que dificultam sua integração em atividades sociais. A falta de apoio emocional é outro fator que contribui para o risco de suicídio.
Pessoas com deficiência frequentemente enfrentam dificuldades na interação social e no acesso a recursos, levando ao isolamento. Além disso, a dor crônica e as comorbidades associadas a essas condições também aumentam os riscos de depressão, agravados pela exclusão social e pela dependência de cuidadores. César Augusto Trinta Weber, médico psiquiatra
No Brasil, segundo o último panorama dos suicídios e lesões autoprovocadas, publicado pelo Ministério da Saúde em fevereiro de 2024, foram registrados 114.159 casos de violência autoprovocada no país em 2021, dos quais:
516 casos foram de pessoas com deficiência física (0,45%);
1.622 casos de pessoas com deficiência intelectual (1,4%);
1.195 casos em pessoas com deficiência visual (1%);
242 casos em pessoas com deficiência auditiva (0,2%);
30.891 casos de lesão autoprovocada foram em pessoas com algum transtorno mental/comportamental (26,7%).
As pessoas com deficiência são, acima de tudo, sobreviventes. São pessoas que, no nosso país, infelizmente, ainda têm significativamente menos chances de estudar, trabalhar e subsistir. E, logo, são pessoas mais expostas ao desamparo e à desesperança, e que consequentemente têm significativamente mais chances de experimentar sofrimento psíquico e desenvolver transtornos mentais, muitos dos quais podem potencializar o risco para a manifestação de comportamento suicida. Danielle Garcia, psicóloga educacional e pesquisadora na UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte)
Autistas têm três vezes mais riscos
Estima-se que, no mundo, 62,1 milhões de pessoas tenham autismo, sendo que 2,7 milhões sejam brasileiros. O que pouca gente sabe é que autistas têm grandes riscos de tentar suicídio.
Um estudo de 2021 mostra que a população com TEA (Transtorno do Espectro Autista) tem três vezes mais riscos de se engajar no comportamento suicida em comparação a uma pessoa sem a condição. "Quanto mais limitações e vulnerabilidades uma pessoa enfrenta, maior é o sofrimento emocional e os riscos associados", diz Camila Corrêa Matias Pereira, pesquisadora e pós-doutora pela Universidade do Quebec em Montreal e Universidade de Sherbrooke, ambas do Canadá, não envolvida no estudo.
Sinais como irritabilidade, agitação, falta de sono, mudanças drásticas de humor, sensação de encurralamento podem ser um indicativo de alerta, de acordo com Aline Conceição Silva, professora do departamento de enfermagem materno-infantil e psiquiátrica da Escola de Enfermagem da USP.
"Mas todos os sintomas precisam ser avaliadas por profissionais capacitados, pois muitos desses sinais estão presentes também enquanto reações ou mecanismos de enfrentamento no TEA. Nesse sentido, os sinais precisam ser avaliados com cautela para evitar superestimar ou subestimar alertas", diz Silva.
De olho em ajudar nessa identificação, estudantes, professoras e pesquisadores do curso de enfermagem da UEMG (Universidade do Estado de Minas Gerais) e do CEPS (Centro de Educação em Prevenção e Posvenção do Suicídio) da Escola de Enfermagem da USP de Ribeirão Preto, adaptaram e traduziram uma cartilha produzida originalmente pelas pesquisadoras da Associação Americana de Suicidologia, Lisa Morgan e Brenna Maddox.
A publicação traz os sinais de alerta para o comportamento suicida em pessoas com autismo e mostra como deve ser o apoio e acolhimento a essas pessoas.
O que pode ser feito
Kelly Giacchero Vedana, professora associada do departamento de enfermagem psiquiátrica e ciências humanas da escola de enfermagem da USP de Ribeirão Preto, ressalta que além das ações de prevenção recomendadas para a população em geral, é necessário que os cuidados com a saúde mental sejam adaptados às necessidades de cada pessoa com deficiência.
"É preciso agir não apenas sobre fatores de risco e proteção individuais, mas também sobre fatores sociais, estruturais, políticos, culturais e sistêmicos que podem gerar tanto o sofrimento, como promover a dignidade, o senso de propósito e desejo de viver", diz Vedana.
A inclusão de equipes multidisciplinares e o fortalecimento de redes de apoio social são essenciais. Webe também sugere:
Fortalecer o suporte psicossocial: garantir o acesso a serviços de saúde mental adaptados às necessidades específicas de pessoas com deficiência;
Reduzir o estigma social: campanhas de conscientização e inclusão social são fundamentais para diminuir preconceitos e melhorar a qualidade de vida;
Capacitar profissionais de saúde: treinar a equipe de saúde (médicos, psicólogos, enfermeiros, entre outros profissionais) para identificar sinais de risco e realizar intervenções eficazes;
Garantir acessibilidade: adaptar serviços, terapias e espaços para atender às limitações físicas e sensoriais de pessoas com deficiência;
Promover políticas públicas inclusivas: desenvolver ações governamentais que garantam acesso à educação, emprego e lazer para reduzir o isolamento social.
É preciso entender que muitas vezes a fonte da qual esse sofrimento advém refere-se aos obstáculos que as pessoas com deficiência vão vivenciando ao longo do seu desenvolvimento e da sua vida, em função de uma sociedade que, embora se proponha a ser inclusiva, ainda é capacitista e possui inúmeras dificuldades no estabelecimento dos laços sociais com as pessoas com deficiência. Rafael Gomes, coordenador de Prevenção e Saúde da Federação das Apaes do Estado de Mato Grosso (Feapaes-MT)
Profissionais que tratam de saúde mental e instituições especialistas em prevenção ao suicídio orientam que a pessoa procure (ou oriente) ajuda específica sempre que sentir necessidade de acolhimento (ou perceber que alguém precisa).
Confira alguns canais para receber atenção e auxílio:
Centro de Valorização da Vida: realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, e-mail e chat 24 horas todos os dias;
Mapa da Saúde Mental: traz uma lista de locais de atendimento voluntário on-line e presencial em todo país;
Pode Falar: canal lançado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) de ajuda em saúde mental para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos. Funciona de forma anônima e gratuita, indicando materiais de apoio e serviço.
*O nome do entrevistado foi alterado para proteger sua identidade
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