Edmo Atique Gabriel

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Opinião

Desvendando os caminhos da anticoagulação: os remédios, riscos e benefícios

Em nossa circulação sanguínea, existem diversos tipos de proteínas, como os fatores de coagulação. Esses fatores regulam a formação de aglomerados, ricos em proteínas e componentes do próprio sangue, conhecidos como coágulos —nem sempre apresentados como estruturas arredondas e bem definidas. Os coágulos podem estar presentes na forma de malhas, como ocorre nos ferimentos superficiais de pele, onde, após um sangramento inicial, forma-se uma rede de cor vinhosa, capaz de ocluir a ferida.

Sempre é preocupante quando esse processo de coagulação fica mais intenso e descontrolado, pois o entupimento de veias e artérias por coágulos pode prejudicar a função de nossos órgãos e até mesmo matar uma pessoa. Doenças potencialmente letais, como infarto do coração, derrame cerebral e embolia pulmonar, resultam desse acúmulo de coágulos dentro dos vasos sanguíneos.

A insuficiência cardíaca é um conjunto de mudanças na forma e função do coração. Na maioria dos casos, ocorre perda progressiva na força do músculo cardíaco, causando acúmulo de líquido no corpo, falta de ar, alterações na pressão arterial e batimentos e também comprometimento da coagulação sanguínea. Como a insuficiência cardíaca chama atenção para incontáveis sintomas e repercussões, a questão envolvendo a coagulação sanguínea acaba sendo subestimada.

No entanto, o simples fato de a insuficiência cardíaca ser um problema de saúde pública global, com altas taxas de hospitalização e mortalidade, já seria um gatilho para se olhar com mais atenção ao risco de uma coagulação sanguínea descontrolada. Para se ter uma ideia dessa gravidade, o risco de um derrame cerebral aumenta significativamente no primeiro mês, após o diagnóstico de insuficiência cardíaca.

Essa relação entre insuficiência cardíaca e problemas na coagulação pode ser justificada por três fatores principais:

a existência de uma resposta inflamatória crônica no organismo;

o excesso de proteínas coagulantes no sangue;

mudanças na estrutura dos vasos sanguíneos.

Existe uma membrana que reveste internamente nossos vasos sanguíneos, conhecida como endotélio, sendo esta camada um alvo direto das mudanças estruturais e funcionais.

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Heparina

Por uma questão lógica, se a insuficiência cardíaca pode acarretar problemas sérios de coagulação, a solução mais apropriada seria adotar medidas preventivas, utilizando medicamentos anticoagulantes. Uma das medicações anticoagulantes mais empregadas, principalmente em pessoas hospitalizadas, é a heparina, a qual pode ser usada como uma infusão nas veias ou uma injeção subcutânea. Dependendo da dose empregada, a heparina consegue prevenir eventos de coagulação excessiva ou até mesmo agir diretamente em vasos sanguíneos com coágulos já existentes.

Numa cirurgia cardíaca, um dos quesitos de segurança e absolutamente mandatório é o uso preventivo de heparina. Em geral, precisamos parar o coração para realizar as correções necessárias e isso só é possível fazendo com que o sangue continue circulando dentro de um circuito de tubos, até chegar aos órgãos do corpo. Esse contato direto do sangue humano com os tubos poderia intensificar a formação de coágulos, não fosse esse papel profilático da heparina. Um coágulo que se forma nesse circuito de tubos poderia se soltar e atingir a circulação cerebral, causando um derrame cerebral. Em outras palavras, uma pessoa é submetida a uma cirurgia de grande porte no coração e poderia ter uma derrame cerebral simultaneamente.

Varfarina

Para as pessoas que necessitam de anticoagulação fora do ambiente hospitalar, temos outras categorias de medicamentos, conhecidas como anticoagulantes orais, pelo fato de serem ingeridos na forma de comprimidos. A categoria mais antiga seria dos antagonistas da vitamina K e a principal representante seria a varfarina.

Durante muitos anos, a varfarina foi a única opção quando se tratava de anticoagulação oral. Aquelas pessoas com prótese mecânica valvar no coração, pacientes com arritmias cardíacas como a fibrilação atrial, pessoas com trombose nas pernas e braços ou aquelas com presença de coágulos em territórios nobres como coração e cérebro precisavam receber doses diárias de varfarina por períodos relativamente longos.

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A vitamina K participa do processo de coagulação sanguínea e está presente em alguns alimentos como verduras de cor verde escura (espinafre, brócolis, rúcula) e frutas oleaginosas (abacate, ameixa e figo). Do ponto de vista químico, a vitamina K apresenta três formas:

Vitamina K1, a mais predominante e encontrada nas verduras e frutas oleaginosas;

Vitamina K2, produzida por bactérias e encontrada em produtos animais e alimentos fermentados;

Vitamina K3, um composto sintético geralmente convertido em vitamina K2 no intestino.

A vitaminas K1 e K2 podem exercer um efeito antagônico em relação à varfarina e, portanto, aquelas pessoas que usam esse medicamento diariamente devem seguir três regras importantes: consumir verduras e frutas oleaginosas com bastante moderação, evitar suplementos de vitamina K e também controlar mensalmente os níveis de RNI (relação de normatização internacional) no sangue. Esses níveis de RNI serão compatíveis com anticoagulação, quando estiverem acima dos valores máximos de referência do laboratório.

Inibidores do fator Xa

A categoria de anticoagulantes orais mais recente e que tem tido uma aplicação clínica cada vez mais crescente é conhecida como inibidores do fator Xa e, na prática clínica, são medicamentos conhecidos como rivaroxabana, apixabana e a edoxabana, entre outros. Em situações como trombose vascular em membros inferiores e fibrilação atrial não relacionada à prótese valvar cardíaca, o emprego dessa categoria tem sido frequente, pois os estudos demonstram segurança clínica e não há necessidade de fazer exames mensais para controle do RNI.

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Riscos e desafios

A possibilidade de qualquer medicamento anticoagulante causar hemorragias como efeito colateral ainda é uma questão desafiadora na prática clínica. As pessoas que têm insuficiência cardíaca, arritmias, tromboses e câncer são fortes candidatas ao uso de anticoagulantes orais em alguma etapa dessas doenças e, consequentemente, são pessoas expostas ao risco de eventos hemorrágicos, como sangramento cerebral e digestivo.

Deve-se considerar que as pessoas com idade mais avançada, acima de 75 anos, apresentam naturalmente uma fragilidade maior de vasos sanguíneos e, dessa forma, o uso de anticoagulantes orais deve ser bem ponderado e essas pessoas acompanhadas com maior rigor e frequência.

Nesse cenário da anticoagulação, um dos grandes desafios nas últimas décadas tem sido encontrar medicamentos ou substâncias que possam agir como antídotos dos anticoagulantes. Essa necessidade de reverter os efeitos dos anticoagulantes pode ser vista na etapa final das cirurgias cardíacas, quando os efeitos da heparina são revertidos por meio do antídoto protamina.

No caso dos anticoagulantes antagonistas da vitamina K, a elevação excessiva dos níveis do RNI e os eventos hemorrágicos exigem a reversão com antídotos como a própria vitamina K, concentrados de plasma fresco e compostos ricos em fatores de coagulação.

Os antídotos para os anticoagulantes inibidores do fator Xa ainda continuam sendo estudados em maior escala, sendo que, neste ano de 2023, foram publicados na revista Circulation resultados de uma importante pesquisa apontando benefícios para uma substância chamada andexanet alfa. Segundo o professor Milling Jr., principal pesquisador desse estudo, essa substância demonstrou eficácia em reverter sangramentos de grande magnitude em 80% dos casos.

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Anticoagulante e antiplaquetario

Existe uma confusão conceitual em relação a tratamento anticoagulante e o tratamento antiplaquetario. São dois tratamentos com focos distintos, mas podem fazer parte da rotina das pessoas de forma simultânea.

Um bom exemplo para ilustrar esse tratamento simultâneo são pessoas que já tiveram um infarto do coração ou já passaram por uma cirurgia de colocação de pontes de safena e mamária. Nessas pessoas, o tratamento antiplaquetario é feito com medicamentos como aspirina e não propriamente com anticoagulantes. Aspirina consegue inibir as plaquetas, que são fragmentos de células presentes no sangue e que podem se juntar, facilitando a formação do coágulo obstrutivo.

A ideia de adotar um tratamento simultâneo em alguns casos, ou seja, utilizar conjuntamente aspirina e anticoagulante, seria potencializar tanto a prevenção de coágulos como o tratamento de coágulos já formados. Essa associação pode ser benéfica, mas fica sempre a ressalva quanto ao risco de hemorragias como efeito colateral.

Calor e risco de problemas

Em tempos de calor excessivo, sabe-se que o risco de problemas relacionados à coagulação sanguínea aumenta. Isso exige mais atenção das pessoas quanto às suas atividades físicas e esportivas. Seria prudente ter uma orientação médica acerca da necessidade ou não do uso de anticoagulantes, principalmente em pessoas com fatores de risco para tromboses, como cardiopatas com arritmia e insuficiência cardíaca, tabagistas e pessoas que estão em tratamento para câncer.

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Enfim, pode-se depreender que a anticoagulação pode ser feita por meio de diferentes medicamentos e pode ser útil na prevenção e no tratamento de eventos cardiovasculares e câncer. Para melhor selecionar a categoria de anticoagulante, deve-se ter o respaldo médico e realizar periodicamente os principais exames.

Não é um processo isento de complicações, sendo que a hemorragia, digestiva ou cerebral, é a mais temida. Como ainda é um processo subestimado e pouco conhecido em seus detalhes, a conscientização sobre seus benefícios, suas indicações mais precisas e o controle de eventuais complicações seria interessante nos dias atuais, após uma pandemia avassaladora e as altas taxas de mortalidade por doença cardiovascular e câncer.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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