Rejeitadas pelas filhas em nome da fé: 'Disse eu te amo e me bloqueou'

Eliane Alves, 59, não fala com a filha há dois anos. Desde que deixou de frequentar a igreja Testemunhas de Jeová, foi bloqueada em todas as formas de contato: redes sociais, mensagens e ligações. "Ela simplesmente disse: 'Você sabe o que implica na nossa relação. Eu te amo'. E me bloqueou", conta Eliane. Desde então, todas as tentativas de reaproximação foram ignoradas. A filha, que permanece na congregação, segue a orientação de cortar laços com quem foi desligado da organização.

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O silêncio virou presença constante na rotina de Eliane, especialmente em datas como o Dia das Mães, agora marcadas pela ausência e pela dor.

Já tentei falar com ela umas quatro vezes, mas ela não responde. Quando passo perto dela, é como se eu fosse uma estranha.
Eliane Alves, 59 anos

Segundo Eliane, o vínculo entre as duas sempre foi forte, baseado em carinho e proximidade. "Éramos muito próximas. Quando ela casou, houve algum distanciamento, mas mantínhamos o contato. Agora, é como se eu não existisse mais." A saudade virou uma dor persistente. Em meio ao vazio, Eliane guarda cartas da filha escritas na infância, vestígios de um afeto interrompido.

Aos quase 60 anos, ela sente o peso da solidão. "Isso de filho abandonar mãe, pesa. Tenho depressão. Já tentei o suicídio quatro vezes quando ainda estava na religião." Fora da congregação, ela tenta se reconstruir com ajuda da terapia e da fé: "Procuro aplicar os exercícios da terapia na minha vida. Só o nosso Criador para dar forças."

Mesmo diante do rompimento, Eliane mantém viva a esperança de reconciliação. "Eu a amo muito e estou de braços abertos. O desejo do meu coração é que as escamas caiam dos olhos dela, que ela desperte desse coma espiritual maligno."

O caso de Eliane é um entre muitos. Para diversas mães e filhos que deixaram a igreja Testemunhas de Jeová, o Dia das Mães, tradicionalmente marcado por homenagens e encontros, transforma-se em uma data de tristeza profunda.

Entre os membros e ex-membros da religião, a prática do afastamento, chamada de "desassociação", é orientada oficialmente pela organização. Em uma edição da revista 'A Sentinela', publicada pela própria instituição, a recomendação é clara: "Infelizmente, alguns cometem pecados graves e precisam ser removidos da congregação. Nesses casos, nós 'paramos de ter convivência' com a pessoa. Isso ajuda a manter a congregação pura."

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A publicação afirma ainda que cortar o contato com ex-membros é uma forma de "bondade", pois poderia levá-los a retornar à fé. Entretanto, essa prática tem gerado histórias de abandono, solidão e sofrimento psicológico.

Trecho da revista 'A Sentinela', publicada pela instituição religiosa
Trecho da revista 'A Sentinela', publicada pela instituição religiosa Imagem: Reprodução

Rita perdeu o contato com a mãe -- e com a filha, que mora com a avó

Rita* (nome fictício) também foi desligada da congregação. A decisão não a afastou apenas da comunidade religiosa, mas de sua própria mãe — que permanece fiel às orientações das Testemunhas de Jeová. Desde então, vivem na mesma rua, mas como estranhas. A dor aumentou quando sua filha mais velha, de 16 anos, que morava com ela, passou a viver com a avó. A curta distância entre as casas contrasta com a separação afetiva, imposta por uma doutrina que redefine laços familiares em nome da obediência religiosa.

Criada entre as Testemunhas de Jeová desde os cinco anos, hoje, aos 33, Rita vive uma realidade que nunca imaginou: o distanciamento completo da mãe.

A gente era muito próxima, ela vinha sempre aqui, nos falávamos todos os dias. Mas depois que fui removida pela terceira vez, ela parou de vir. Agora só fala o necessário, por causa das crianças. Nos tornamos duas estranhas. É como se minha mãe tivesse me deixado pra morrer.
Rita*

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A situação se agravou com o afastamento da própria filha. "Ela é muito fácil de ser manipulada. Não concorda com muitas coisas, mas tem medo da rejeição. Ela nasceu lá dentro e não tem a mente livre."

Para Rita, o medo é o principal motor desse afastamento — medo de punições espirituais, de represálias da comunidade e até de forças malignas. "Minha mãe disse que minha casa tem demônios. Quando contei que pesquisei sobre a religião, ela ficou com medo de mim. Lá dentro, ensinam que quem busca informações fora do site oficial está do lado de Satanás."

Decidida a proteger os filhos e romper com o ciclo de controle, Rita deixou a religião. Mas o custo foi alto: "O que mais me dói é ter mãe e não ser lembrada por ela. O amor acabou da noite pro dia."

A liderança das Testemunhas de Jeová foi procurada por Universa, mas até o momento não retornou à reportagem. O espaço permanece aberto.

Ex-membros criam rede de apoio contra abandono familiar por orientação religiosa

O Movimento de Vítimas das Testemunhas de Jeová, liderado por Yann Rodrigues, surgiu como um espaço de acolhimento e resistência diante das dores provocadas pelo rompimento de laços familiares em nome da doutrina. A iniciativa tem ganhado força em todo o país ao oferecer apoio psicológico e jurídico a ex-membros da religião.

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"Estamos aí ajudando as pessoas, com ajuda psicológica, jurídica, para que as pessoas procurem seus direitos e sejam auxiliadas", explica Yann, que também teve os vínculos com os pais rompidos após deixar a religião. O movimento se propõe a romper o silêncio e dar visibilidade a histórias marcadas pelo sofrimento emocional, buscando amparo institucional e mobilização social.

De acordo com Yann, o movimento conta com cerca de 650 pessoas engajadas. "Indicamos pessoas que passam por problemas mentais traumáticos para psicólogos que atendem por valor social".

O grupo também atua no campo político e legal, buscando garantir que casos como esses sejam reconhecidos e debatidos no sistema judiciário brasileiro. "Estamos abrindo uma associação jurídica para poder ir até a justiça, até o Supremo Tribunal Federal, com essas causas, com essas pautas, para que a justiça tome conhecimento", afirma Yann.

Além do suporte individual, o movimento realiza manifestações públicas que têm ajudado a atrair novas vítimas e ampliar o debate sobre os limites entre liberdade religiosa e violações de direitos fundamentais.

Peça ajuda

Caso você tenha pensamentos suicidas, procure ajuda especializada como o CVV (www.cvv.org.br) e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) da sua cidade.

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O CVV funciona 24 horas por dia (inclusive aos feriados) pelo telefone 188 [https://cvv.org.br/ligue-188/], e também atende por email [https://cvv.org.br/e-mail/], chat [https://cvv.org.br/chat/] e pessoalmente [https://cvv.org.br/postos-de-atendimento/]. São mais de 120 postos de atendimento em todo o Brasil.

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