Volta de Trump pode ter quatro efeitos na regulação de tecnologia no Brasil
Passadas algumas semanas desde a confirmação do retorno de Donald Trump à Casa Branca, e considerando a maioria republicana no novo Congresso, é de se esperar que um dos assuntos mais desafiadores para a sociedade global atual - a regulação de tecnologias disruptivas - ganhe novos contornos, com impactos importantes no Brasil.
Há pelo menos quatro efeitos imediatos no horizonte. O primeiro é o redirecionamento do debate regulatório nos EUA - com exceção a temas suprapartidários, como a limitação do uso de celulares por jovens. É provável que as restrições ao desenvolvimento de inteligência artificial caiam por terra, invalidando a Ordem Executiva assinada por Joe Biden em 2023, cujo foco é o desenvolvimento ético e seguro.
Também se espera a revisão da Seção 230 do Communications Decency Act, lei de 1996 que protege plataformas online de serem responsabilizadas pelo conteúdo gerado por seus usuários - o equivalente ao Artigo 19 do Marco Civil da Internet no Brasil. Há tempos os republicanos querem alterar essa legislação para garantir que plataformas não interfiram nos conteúdos, ato que chamam de "censura".
O segundo impacto deve ser o fortalecimento da influência da União Europeia na cena regulatória de tecnologia, em resposta ao movimento do governo americano. Esse fenômeno, conhecido como "efeito Bruxelas", ocorre porque a UE, devido ao tamanho de seu mercado e influência global, consegue exportar seus padrões para o restante do mundo, incluindo o Brasil - o que dificilmente atende às necessidades incipientes de mercados do Sul Global, que ainda carecem de acesso à internet de qualidade e fomento a negócios digitais.
O terceiro efeito, derivado do primeiro, tem a ver com a moderação de conteúdo, cujas políticas são definidas nas matrizes das empresas - em geral no Vale do Silício - e aplicadas em escala global. A pressão do novo governo americano implicará menos conteúdo moderado, potencialmente aumentando o conteúdo indesejado nas plataformas. Com isso, o sentimento anti-big tech deve se intensificar mundo afora, inclusive em Brasília.
De um lado, o poder executivo e a sociedade civil brasileiros devem pressionar por mais regulação - rápida e potencialmente falha do ponto de vista técnico. Do outro, é possível que forças políticas alinhadas ao trumpismo se organizem e fortaleçam o movimento por uma regulação com menos interferência sobre os conteúdos.
Um óbvio campo de batalha será o julgamento pelo STF da validade do Artigo 19 do Marco Civil da Internet - o equivalente brasileiro à já mencionada Seção 230 dos EUA -, marcado para começar na quarta-feira, 27. A lei brasileira, implementada em 2014, limita a responsabilidade das plataformas sobre conteúdos de terceiros, exceto quando há ordem judicial para remoção. O STF deve decidir se isso continuará assim.
Nos EUA, o esforço será para flexibilizar a atuação das plataformas em prol de uma suposta liberdade de expressão. Aqui, o objetivo é o oposto: provocar mais responsabilização das empresas sobre o conteúdo postado. O julgamento, como outros do tipo no STF, poderá estimular ou enfraquecer iniciativas no Congresso, moldando o escopo e o ritmo da regulação digital no país.
O último efeito, embora especulativo, é o possível aumento da influência do bilionário Elon Musk, há pouco anunciado como chefe do inédito departamento de eficiência governamental dos EUA. Musk já demonstrou disposição em usar sua fortuna para interferir diretamente na política. Adaptando o modelo de financiamento eleitoral heterodoxo que aplicou na eleição de Trump aos contornos legais brasileiros, não é desprezível a hipótese de que financie grupos que espalham conteúdo divisivo e danoso para interferir no debate político. Isso deve colocar ainda mais pressão sobre as plataformas no Brasil.
Num cenário de interesses políticos conflitantes e pressão crescente sobre as big techs, o país se vê diante de escolhas decisivas. A forma como navegará essa tempestade regulatória - equilibrando a proteção de direitos, o estímulo à inovação e a defesa da democracia - definirá não apenas o futuro de sua economia digital, mas também a saúde do seu espaço cívico e a robustez das suas instituições democráticas.
* Natalia Paiva é sócia-fundadora da Alandar Políticas Públicas. Possui mais de 15 anos de experiência em políticas públicas e comunicação, com cargos de liderança na Meta, McKinsey & Company, na ONG Transparência Brasil e no jornal de maior circulação do Brasil, a Folha de S.Paulo. Antes de fundar a Alandar, criou a estratégia de Políticas Públicas do Instagram para a América Latina e liderou a equipe por quase 5 anos. Possui MBA pela IE Business School, em Madri, e Mestrado em Comunicação pela PUC-SP. Natalia é Global Fellow no think tank Wilson Center, com sede em Washington, e membro do conselho do think tank de direitos digitais InternetLab e do Girl Up Brasil.
** Daniele Kleiner é sócia-fundadora da Alandar Políticas Públicas. Possui 15 anos de experiência em políticas regulatórias e de tecnologia, tendo ocupado cargos de liderança no Twitter e na Meta, onde liderou o trabalho de Políticas de Segurança para a América Latina. Antes do setor de tecnologia, foi Assessora Jurídica na Casa Civil da Presidência da República e advogada tributária no escritório Pinheiro Neto. Formado em Direito pela USP, com Mestrado em Direito pela UnB e um L.L.M. voltado para a área de Direito e Tecnologia pela Harvard Law School.
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