Febre de bebês reborn é patológica? Como passado e tecnologias explicam
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"Eu queria um filho, mas não realmente. Tenho um cachorro, mas ele prefere ficar com o avô. Pequena merda. Brincadeira. Mas sim. Não me lembro quando descobri sobre bonecas reborn, acho que num vídeo de alguém que tinha uma reborn que parecia exatamente com o bebê que tinha falecido. Desde então, tenho pensado em comprar uma, mas me sinto culpada por isso. Nunca fiquei grávida antes, nunca sofri nada de ruim... Sinto que é errado. Mas quero sentir aquele amor materno pelo bebê. Quero chegar em casa, sabendo que fiz um bom trabalho em prover para mim e meu bebê. Sinto que se eu comprar uma, me sentirei uma esquisita ou péssima, sabendo que nunca fiquei grávida antes. Alguma opinião?"
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O depoimento acima, colhido na internet, reflete uma certa oscilação de opiniões em relação a esta prática que tomou as redes sociais. Uma influencer mimetiza o nascimento de sua bebê. Outra posta a ida da reborn ao médico. Outra filma momentos dramáticos do reborn tendo parada cardíaca e sendo reanimado perante uma "mãe" desesperada.
A pergunta que insiste, ainda que não explicitada, é se haveria algo de patológico nisso.
Uma abordagem em média distância dirá que os reborn são só uma versão adulta das práticas lúdicas, como as bonecas e os jogos.
No brincar, temos a conjunção de três processos: simbolização (capacidade de representar e transformar objetos), articulação temporal (organização do tempo) e subjetivação (reconhecimento como sujeito).
Na psicanálise, esse jogo é essencial para o desenvolvimento da linguagem e do pensamento abstrato e permite elaborar emoções e criar sentido para sua existência e seu lugar no mundo.
Às vezes, a brincadeira assume uma intensidade exagerada e entramos no colecionismo —adquirir, compulsivamente, mais e mais objetos semelhantes. No início do século 20, houve uma febre de colecionismo de bonecas com a face de porcelana, pintada à mão, que gerava um efeito de surpresa e fascinação igual ao dos nossos reborn.
O estranhamento coletivo é porque são bonecas, por um lado, mas excessivamente verdadeiras, por outro: a textura da pele, a dimensão de um bebê real, a articulação e proporção exata de pés e mãos.
Isso nos aproxima da estranheza causada por pessoas que tratam seus animais de estimação como se fossem "realmente" filhos ou filhas.
Este "realmente" aponta para uma falha no domínio metafórico, que nos faz entender que animais ou bonecas são como filhos, mas não são "verdadeiramente" filhos.
Isso gera uma acirrada discussão sobre o que é um filho e porque o sentimento de maternidade seria insuficiente ou problemático para caracterizar a verdadeira maternidade.
A crítica cabe, uma vez que a "verdadeira" maternidade é antecipada por ensaios, treinos e brincadeiras que, por assim dizer, simbolizam e subjetivam a experiência real. Tornar-se mãe ou pai não começa quando engravidamos ou quando nasce um filho.
Muitas pessoas sem filhos exercem maternidade por meio de alunos, pacientes, sobrinhos ou animais de estimação, e isso não deveria tornar esta maternidade menor ou postiça. Muitas vezes, é a exata medida e a melhor solução possível.
Portanto, o problema não é saber porque alguém se dedica com afinco a um bebê reborn, mas porque isto nos causa estranhamento.
Em "O Estranho" (1919), Freud examina o conto "O Homem de Areia" (Hoffman), no qual o protagonista se apaixona por Olímpia sem perceber que ela é uma boneca.
Assim como nos bebês reborn, há nela algo que denuncia o caráter não humano: o olhar. Se está de olhos fechados, podemos realmente confundir. Mas, de olhos abertos, percebemos que faltando algo.
O estranhamento é uma versão da angústia que aparece quando confundimos e cruzamos a casa e a rua, a experiência de proximidade com a de distância, o segredo da vida privada com a exposição da experiência pública ou mais radicalmente nossa relação entre pessoas e animais, pessoas ou coisas, pessoas vivas e pessoas mortas.
São conhecidas as mães psicóticas, que embalam seu filho perdido com boneca ou pedaço de lenha, e nos causam estranheza pela negação da perda e a substituição do ente perdido por um suporte material inumano, pela transposição do limite do brincar. Não é "como se", mas vivenciar uma experiência real.
Isso nos aproxima de diversas questões modernas análogas, que mimetizam a realidade: realidade aumentada e virtual, metaverso e inteligência artificial. A febre os bebês rebons pode ser compreendida neste contexto de versões miméticas "demasiadamente reais".
Em todos estes casos, temos uma espécie de efeito de recuo baseado em estranhamento.
Isso é totalmente diferente dos usos clínicos —e muito bem-sucedido— de reborn para aumentar a relação e retomar afetos em pacientes com Alzheimer, em pessoas idosas ou que sofreram traumas na maternidade, como perda de filhos.
A técnica também tem dados interessantes na psicologia comportamental para tratar fobias ou lutos, particularmente de crianças, a partir da dessensibilização sistemática progressiva.
Um episódio de Black Mirror mostra um marido que é revivido por meio de um boneco perfeito, com memórias e traços de personalidade. No fim, ele é aposentado no sótão, como um resíduo disponível para emergência psíquica e um meio não teológico ou mítico a que recorremos na nossa crença infantil e ilusória de driblar a perda terrível e irreversível da morte.
Na época vitoriana (séc. 19), foi a fotografia que ocupou esse espaço. Causam estranhamento a arte de fotografar mortos como se estivessem vivos. Há bastante material disponível sobre isso na internet.
Mas, em uma época que inúmeras ciências, artes e técnicas estavam sendo inventadas e numa época em que as famílias tinham muitos filhos e muitos deles morriam cedo, produzir memória tornou-se uma febre.
Não será também o caso agora?
A renovação de técnicas de memória, a reprodução artificial da vida digital e a produção tecnologicamente mediada de afetos nos faz brincar novamente com cadáveres —ou algo perto disso?
Afinal, como dizem os espíritas, não somos todos reborn (renascidos)?
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