'Ruptura' volta forte com sua ironia ao bizarro, e real, mundo do trabalho
Afinal, o que a Lumon faz? O que são os números que a equipe de microdata da empresa refina em seus computadores retrofuturistas? Qual é a grande missão que Mark (Adam Scott) está prestes a cumprir nesta segunda temporada de "Ruptura", a série mais bizarra e que, ao mesmo tempo, melhor reflete o trabalho e as relações pessoais na sociedade contemporânea?
O público, que está há três anos na espera desde o final da primeira temporada, pode começar agora, com a estreia da segunda na AppleTV+, tentar responder. Mas, na verdade, isso não importa. Além da trama muito bem construída e milimetricamente pensada em cada detalhe, são os espaços vazios que o roteiro da série criada por Dan Erickson (e com direção geral de Ben Stiller) fazem de "Ruptura" um programa incrível.
Claro que há um mistério a ser desvendado, mas "Ruptura" não é uma série apenas "plot driven" (levada pela trama). Na nova fase, aliás, os personagens, suas personas e seus conflitos internos, ainda que o mundo exterior ganhe mais destaque, ditam a narrativa. Haja vista as cenas de elevador, filmadas muito mais a partir das perspectivas subjetivas dos funcionários.
Não importa, ainda, o que a Lumon pretende, pois é a rotina massante, postiça, com as invenções "geniais" para motivar a equipe como a "Festa do Melão, da Melancia, do Waffle", manuais de conduta e tantos outros protocolos corporativos, que fazem da série tão conectada com o mundo de hoje.
Erickson usa a trama distópica e recheada de mistérios para ironizar um mundo em que corporações e sua cultura roboticamente onstruída desumanizam muitas vezes os "colaboradores" (outro termo atual do mundo real para não se dizer "empregados").
Afinal, quem, que já passou por uma grande empresa ou corporação, nunca teve de participar de dinâmicas bizarras e cumprir tarefas em que não vê muito sentido, mas que são "importantes e secretas"? Ou nunca teve idas ao departamento de RH que pareciam interrogatórios ou nunca teve que comer uma comida tão insossa quanto a decoração que divide pessoas em baias cinzas e sem personalidade?

Não por acaso, Dan Erickson trabalhava em uma fábrica de portas quando teve a ideia de escrever uma história em que, como ele desejou para si, os personagens esquecessem o que fazem no trabalho assim que põem o pé para fora do escritório, evitando "encarar" e lembrar do cotidiano tedioso do emprego.
Esses funcionários da Lumon, grande corporação que faz um trabalho "secreto e importante", passam por um procedimento chamado "Ruptura" (Severance no inglês), em que um chip é implantado em seus cérebros e os torna pessoas divididas entre sua faceta "innie" e "outie". Os innies são os que trabalham na Lumon e realizam trabalhos sobre os quais não sabem nada e não se conectam com outros departamentos.
Os outies, suas personas no "mundo real", não se lembram de nada que fizeram no horário comercial, uma vez que, assim que entram no elevador para ir embora, esquecem tudo. Assim como quando chegam na empresa para trabalhar, ao entrar no elevador, também esquecem quem são lá fora.
A "ruptura" ou "separação" é como uma metáfora clara, mas sagaz, de como muitas vezes nos alienamos de nós mesmos, escondemos nossa real personalidade e até ética para se encaixar e manter um emprego.
"Escrevi o piloto da série em uma fase em que tive vários trabalhos de escritório, e esse foi um dos principais fatores incorporados. Perceber as formas como eu tinha que achatar ou mudar minha personalidade para me encaixar nesses lugares", diz Erickson em conversa com Splash, em dezembro em São Paulo, quando ele, Adam Scott (Mark), Tramell Tillman (Michick) e Britt Lower (Helly Riggs) participaram de um painel na CCXP.
"Toda vez que eu entrava em um lugar novo, a pergunta era: 'Quem tenho que ser aqui para me encaixar'". Portanto, muito disso simplesmente entrou naturalmente no roteiro", completa ele, que também é claustrofóbico e odeia elevadores. Não por acaso, a "porta do inferno" da série, onde a "ruptura" ocorre todos os dias, é o elevador da Lumon.
Para Scott, que vê no papel de Mark o ápice de uma carreira de 30 anos nos palcos e em séries como "Big Little Lies", era importante que seu 'innie" e seu "outie" se sentissem a mesma pessoa, mesmo sem "se conhecerem".
Seria apenas uma espécie de seções diferentes ou metades do mesmo indivíduo. E sim, como Dan disse, sinto que a gente se comporta de forma diferente se estiver em uma festa com um grupo de estranhos em vez de uma festa na casa de seus pais, com pessoas que você conhece sua vida inteira. Então, é como que, em questão de comportamento, todos nós temos alguns perfis de pessoas diferentes que somos. Adam Scott
"Mas no que diz respeito às coisas internas e realmente profundas, há coisas que gostamos de separar e esconder de nós mesmos e não pensar ou não agir, ou o que quer que seja. Portanto, há algo mais profundo com que as pessoas se conectam na série. Eu com certeza sim", acrescenta.

Dan diz que, no mundo real, conhece pessoas que fazem coisas que no trabalho eles moralmente não fariam em suas vidas pessoais. "Bem, é trabalho, é um negócio. Eu não estou servindo aos meus interesses. Estou atendendo aos interesses da empresa. E isso me permite fazer coisas que eu não faria em outra situação."
"Isso uma coisa muito humana. É um dilema que muitas pessoas têm que pesar e lidar por conta própria. Isso é parte do motivo de as pessoas se conectarem com a série", completa o criador e produtor executivo.
Líder desse novo mercado em um tempo que pode tanto ser um futuro próximo quanto o mundo atual, a Lumon é tão perfeitamente planejada por um grande mentor/ CEO/ quase deus já falecido, Kier Eagna (Marc Geller), que seus protocolos são irritantemente precisos.
Há hora para tudo, protocolo para tudo e uma chefe, Harmony Cobel (Patricia Arquette), que é um verdadeiro cão de guarda fiel, que supervisiona sua equipe do departamento de "Refinamento de Microdata" com mão de ferro e a ajuda do ambicioso e fiel Seth Milchick (Tramell Tillman), que ganha mais destaque e responsabilidades nessa nova temporada.
Na Lumon, tudo foi pensado, ensaiado, estudado, coreografado. Nada pode dar errado ou sair do script. Acontece que o fator humano é sempre imponderável e quando Helly Riggs (Britt Lower) entra para a equipe, o caldo desanda.
Já havia desandado antes por conta de um desertor que conseguiu reverter o processo de Ruptura. Mas é ela a catalisadora da crise. É Riggs quem se torna uma das personagens mais contraditórias e complexas da trama, pois, tem de sustentar uma persona como "innie" que não é exatamente o que se espera dela.
Ironicamente, ela não é apenas a maior "servidora" da Lumon como uma agente dela. Sem entregar muito sobre a trama da primeira parte (para quem ainda não assistiu poder ver a segunda), Brit expôs o lado sombrio da empresa em praça pública no final da primeira temporada e tem de lidar com suas contradições agora que volta aos escritórios gélidos, de carpete verde e luz fluorescente irritante.
Encontramos os quatro funcionários da divisão de processamento de microdata cinco meses depois que seus "innies" burlaram o sistema e foram ao mundo real, onde cada um teve uma experiência que vai impactar diretamente seu dia a dia fora e dentro da empresa.
Por que, mesmo depois da pequena revolução, eles voltam para a Lumon, é melhor deixar para a série responder, mas o fato é que nada mais será como antes, ainda que a Lumon queira usar o incidente para fazer um belo reposicionamento de mercado e mostrar que é uma empresa aberta e conectada com o bem-estar e felicidade de seus "colaboradores".
"Há tantas camadas no que está acontecendo com essa pessoa, que é uma 'innie' e uma 'outie'. E as duas estão presas na mesma empresa, mas de maneiras diferentes. Abordei como se elas soassem como músicas diferentes dentro de mim. E eu queria que elas compartilhassem como todos os personagens 'innies' e 'outies', eles compartilham o mesmo subconsciente um com o outro", comenta Scott, em entrevista para Splash.
"Eles carregam a alegria e o trauma em seus corpos mesmo que não saibam o que essas coisas são. Eles começam inevitavelmente a influenciar mutualmente. E ao longo da segunda temporada, eles têm forças conflitantes de ambos os lados. Isso é algo com que se pode relacionar muito. Ter partes de si que estão em conflito", acrescenta.
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