A folia laranja: como surgiu o Dia do Rei, o curioso 'Carnaval holandês'

Entediada e cansada, a princesa Guilhermina dos Países Baixos brincava com sua boneca ao retornar de uma parada realizada em homenagem ao seu aniversário. Penteava os cabelos do brinquedo a ponto de desgrenhá-los, com o intuito de deixar a boneca em uma posição curvada.

"Agora você vai se sentar na carruagem e se curvar até suas costas doerem", ela teria dito à amiga em miniatura. "Verá como é bom ser rainha!"

A anedota, narrada em uma revista publicada no ano em que Guilhermina foi coroada, 1898, sugere que ela, na infância, não era muito chegada ao evento criado em seu nome. Afinal, a popularidade da monarquia dependia de seu carisma desde criança, o que poderia ser um tanto estressante.

Mas o evento perdurou, cresceu e se tornou uma das festas de rua mais animadas — e coloridas — da Europa. Hoje, o Dia do Rei, ou Koningsdag, é um acontecimento que para diversas cidades do país. Conheça mais sobre o evento que acontece neste sábado em todo o reino (o que inclui algumas ilhas no Caribe) e que até ganhou uma versão aqui no Brasil, onde se estende por dois finais de semana.

Toda a Holanda 'veste' laranja durante o Dia do Rei
Toda a Holanda 'veste' laranja durante o Dia do Rei Imagem: Getty Images

A festa da rainha

Nos anos 1880, a Casa Orange-Nassau, família real holandesa desde que o país se livrou do controle da França napoleônica, em 1815, vivia uma crise. O rei, Guilherme 3º, era impopular, então surgiu a ideia de celebrar o aniversário de sua herdeira, a princesa Guilhermina, menina de 5 anos muito querida pela nação.

Assim, em 31 de agosto de 1885, surgiu o Dia da Princesa. A pequena Guilhermina tinha que desfilar em carro aberto e acenar para a população.

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Cinco anos depois, com a morte do rei, Guilhermina virou rainha, aos dez anos, com a mãe, a rainha Emma, atuando como regente. Em 1891, a celebração mudou de nome: Koninginnedag, ou Dia da Rainha.

Ao longo da década, o evento cresceu tanto que, ao atingir a maioridade, em 1898, Guilhermina precisou adiar a data da coroação, para não interferir na programação da festa, segundo uma reportagem da rádio holandesa RNW. Naquele ano, ao realizar os eventos em dias separados, a monarquia ganhou popularidade entre a criançada, que assim faturou uma terça de feriado.

Mudança de data

Em 1949, a Koninginnedag trocou o verão pela primavera holandesa. Isso porque o país ganhara uma nova rainha, no ano anterior: Juliana, filha única de Guilhermina com o príncipe consorte Henrique.

A família real durante a festa, em 1953
A família real durante a festa, em 1953 Imagem: Wikimedia Commons

Ao transferir o dia da festa para 30 de abril, aniversário da nova rainha, a monarquia mais uma vez recebeu aprovação imediata das crianças. Como agosto é mês de férias escolares nos Países Baixos, elas ganharam um feriado.

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A data aos poucos se transformou em dia de folga para os trabalhadores também, especialmente depois que ela começou a ser televisionada, nos anos 1950. Segundo uma reportagem da "Amsterdam Magazine", a vocação de Juliana como rainha do povo elevou a Koninginnedag a um novo patamar no calendário nacional.

Porém, em 1966, a monarquia se viu diante de uma nova crise. A princesa Beatrix, herdeira do trono, casou-se com um nobre alemão, o príncipe Claus — ele não só era alemão como havia servido no Exército Nazista durante a Segunda Guerra.

O tema era delicadíssimo nos Países Baixos, invadidos e ocupados pela Alemanha durante quase todo o conflito. Basta lembrar que um dos maiores símbolos do horror da guerra fica no Prinsengracht, o Canal do Príncipe, em Amsterdã: a Casa de Anne Frank.

Manifestações tomaram as ruas da capital no dia do casamento e às vésperas da Koninginnedag. Muitos não suportavam a ideia de ver a princesa se casar com um alemão apenas 21 anos depois da guerra.

O desfile em 1966: após manobra para acalmar os ânimos da população
O desfile em 1966: após manobra para acalmar os ânimos da população Imagem: Domínio Público

Mais uma vez, o Dia da Rainha virou manobra política. Para sufocar os revoltosos, em vez de apelar à repressão policial, o governo mudou a estrutura da festa ao abrir o centro de Amsterdã para a grande feira pública que acompanha o evento.

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Esse mercado, parte essencial do Dia da Rainha, ocupava áreas mais afastadas da cidade. Ao transferi-lo para a região central, o governo empurrou os manifestantes para mais longe e acabou instituindo uma tradição que dura até hoje — o mercado se esparrama pelas ruas centrais da capital.

Em 1980, Juliana abdicou do trono. Beatrix assumiu, e pela primeira vez, a data do Dia da Rainha não mudou. A nova rainha manteve o 30 de abril (ou 29, caso dia 30 caísse no domingo) em homenagem à mãe.

O centro de Amsterdã tomado durante a festa
O centro de Amsterdã tomado durante a festa Imagem: Getty Imagens

Tem outro motivo aí. Se tivesse seguido o padrão de realizá-la no aniversário da rainha, a organização da festa teria dado um tiro no pé.

Beatrix, diferentemente da mãe, taurina, e da avó, virginiana, era uma aquariana nascida no frio, nublado e chuvoso inverno holandês. Transferir o Dia da Rainha de 30 de abril para 31 de janeiro seria garantia de fiasco, então o evento seguiu assim.

Tempos modernos

Na Koninginnedag de 2009, Beatrix e outros membros da família real desfilavam na cidade de Apeldoorn quando um motorista atingiu a multidão, atropelando e matando sete pessoas. O Dia da Rainha foi cancelado na sequência.

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O homem, um holandês de 38 anos, morreu no dia seguinte, em decorrência do atentado. Na época, a versão mais difundida dizia que sua intenção era atingir o veículo que conduzia a rainha.

O evento não impediu Beatrix de continuar desfilando em carro aberto. Em todo caso, exatos quatro anos depois, a rainha abdicou do trono.

Pela primeira vez em 123 anos, os Países Baixos ganhavam um rei, e não uma rainha. Willem-Alexander, em 2013, encerrou uma incomum sequência de três rainhas, algo raro nas monarquias europeias (o Reino Unido, por exemplo, precisou de 238 anos para ter três rainhas).

Consequentemente, o Dia da Rainha virou Dia do Rei. Sai Koninginnedag, entra Koningsdag.

As cidades param para festejar o Dia do Rei
As cidades param para festejar o Dia do Rei Imagem: Getty Images

A data também mudou, mas não tanto. Em vez de 30 de abril, agora é dia 27, o aniversário do monarca. Se cair em um domingo, ela é antecipada para o sábado 26, que é o caso este ano.

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Atrações da festa

O grande mercado de pulgas do Dia do Rei mobiliza o país inteiro. Ele acontece em diversas cidades e conta com a participação massiva da população. Em 2011, um levantamento do banco holandês ING dizia que 20% dos habitantes planejavam vender algum item usado, como roupas ou móveis, na feira.

É um evento bem familiar, com crianças vendendo limonada ou se oferecendo para pintar as unhas e senhoras comercializando tapetes antigos. Até a rainha Beatrix aproveitava para conferir as pechinchas, segundo a revista de história "Is Geschiedenis".

Até as crianças entram na onda do mercado de pulgas, uma tradição do Dia do Rei
Até as crianças entram na onda do mercado de pulgas, uma tradição do Dia do Rei Imagem: Getty Images

Além das feiras, no feriado acontecem também festivais de música, que vão do techno ao hardcore. Há eventos em uma série de cidades, inclusive nos territórios de Aruba, Curaçao e Sint Maarten, no Caribe, que fazem parte do reino. No centro de Amsterdã, carros e bondes não circulam, e a grande Museumplein, a praça onde estão o Rijksmuseum e o Museu Van Gogh, recebe shows.

Mas a característica mais marcante da festa é o laranja onipresente. Nas roupas, cabelos, decorações, bebidas, as pessoas abraçam a cor da família real.

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Vale tudo: de fantasias e acessórios, tudo em laranja
Vale tudo: de fantasias e acessórios, tudo em laranja Imagem: Getty Images

"É o feriado preferido dos holandeses, é o Carnaval deles", diz a analista de experiência do cliente Maria Augusta Parenti, brasileira que mora em Amsterdã há três anos.

É uma festa generalizada: para onde se olha tem gente nas sacadas. Tem shows nos bares e nas estações, os canais ficam entupidos de gente nos barcos, curtindo"

"É uma festa legal de ver, para nós, brasileiros, porque é algo que tem muito da cultura deles, as músicas deles, os costumes deles", complementa o engenheiro Gabriel Balzan, noivo de Maria Augusta. "A Pride [uma das maiores paradas LGBTQIA+ do mundo], por exemplo, é uma festa muito mais internacional, cheia de estrangeiros", diz, e completa:

No Dia do Rei a gente escuta mais holandês, vê os velhinhos na rua, as comidas típicas, todo mundo de laranja. É uma imersão cultural, eles levam muito a sério"

O Dia do Rei é uma festa adora pelos holandeses
O Dia do Rei é uma festa adora pelos holandeses Imagem: Getty Images
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"Ao mesmo tempo, é uma amostra de como os holandeses são bons de festa, porque ela já começa na noite anterior", diz Gabriel. "As ruas ficam lotadas. Quem quiser uma experiência mais tranquila, venha de manhã, porque o clima é mais 'família'. Depois, vai ficando cada vez mais loucura."

O Dia do Rei é uma tradição já centenária, patrimônio imaterial do país e um símbolo da alma festeira do povo holandês, que só deixou de celebrar quando era impedido por algum evento histórico extremo: a ocupação nazista (1940-45) e a pandemia (2020-21). Só algo dessa grandeza para a onda laranja que toma o país de assalto.

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