'Do Rio à Amazônia, fui a única brasileira em cruzeiro lotado de gringos'

"Vimos muito mais corpos nus nas ruas hoje cedo do que ontem à noite no desfile!". Em plena segunda-feira de Carnaval, recém-embarcada no Silver Ray, o mais novo navio da Silversea Cruises, no porto do Rio de Janeiro, eu acabava de conhecer Ron e Sheila*, casal canadense que tinha ido à Sapucaí na noite anterior e seguia maravilhado com "o maior show da terra".

Animados, pediam também algumas explicações sobre o desfile, dos enredos ao sistema classificatório das escolas - e também o porquê de tanta meia arrastão nos foliões diante do Píer Mauá.

Um casal americano ouviu a conversa e pediu para se juntar à nossa mesa no Arts Café, o movimentado café do navio.

"Não imaginávamos que o Rio teria sua própria versão do MetGala", brincaram, contando que tinham participado do Baile do Copa dias antes. Depois vieram duas australianas que também tinham ido ao sambódromo e em pouco tempo eu discutia o Carnaval brasileiro com quase duas dezenas de estrangeiros.

Entre viajantes de 31 nacionalidades diferentes, eu era a única passageira brasileira.

Do Carnaval no Rio, tomaríamos rumo norte, contornando a costa atlântica até adentrarmos o rio Amazonas e chegarmos a Manaus, quase duas semanas depois. Um itinerário raro, que muitos dos 652 passageiros do Silver Ray (cerca de 40 deles viajando sozinhos) tinham reservado com até três anos de antecedência.

Inaugurado em junho de 2024, o Silver Ray é considerado um dos mais luxuosos navios do mundo na atualidade. Navega por distintos continentes com alta gastronomia, bar aberto, minibar, impecável serviço de quarto 24h, wifi e até gorjetas sempre incluídos. Na maioria das tarifas disponíveis, excursões guiadas em todos os portos de escala também são cortesia.

Silver Ray
Silver Ray Imagem: SuperBloom House Productions

Todas as cabines do novo navio são suítes com quarto, living, closet, grandes banheiros e varanda. E todas têm também serviço de mordomo, seja para fazer e desfazer malas, providenciar champagne e caviar a qualquer hora, um banho de sais ao final do dia ou até criar uma noite de cinema privativa, com pipoca estourada na hora - tudo sem qualquer custo extra.

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Cabine do Silver Ray, que faz trajeto do Rio de Janeiro ao Amazonas
Cabine do Silver Ray, que faz trajeto do Rio de Janeiro ao Amazonas Imagem: Mari Campos

Nada mal se deslocar pelo país assim, certo? Para a maioria dos passageiros deste itinerário, a Amazônia estava no topo da bucket list, o Carnaval no Rio era sonho antigo e esse tipo de cruzeiro fornecia a estrutura e a segurança que eles queriam para torná-lo realidade.

Imersão à brasileira

A notícia desta 'Brazilian lady' a bordo do Silver Ray se espalhou rapidamente. Todo dia alguém vinha me contar sobre efeitos experimentados com a caipirinha (sucesso absoluto nos bares do navio na primeira semana da viagem) ou trocar ideias sobre o recente Oscar para "Ainda estou aqui".

Carnaval, política e desmatamento da Amazônia também eram temas recorrentes.

Vez ou outra, um dançarino britânico apaixonado por salsa vinha comentar sua decepção ao descobrir que brasileiros não eram grandes entusiastas do ritmo. Também tranquilizei muita gente depois que uma das palestrantes a bordo insistiu exageradamente para que todos tirassem joias e relógios antes de desembarcar nos destinos brasileiros.

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Durante o cruzeiro pelo Brasil, o Silver Ray ofereceu aulas de português quase diariamente. Um casal chinês, que as frequentava assiduamente, a cada dia me saudava com uma frase mais complexa, numa evolução impressionante no idioma.

Mas lindo mesmo foi ver todo mundo usando corretamente "obrigada" e "obrigado" nas escalas que fizemos.

Rolaram ainda aulas de samba e workshop de mixologia sobre cachaça e coquetéis possíveis com o destilado. O restaurante S.A.L.T. Kitchen, um dos nove do navio (e que sempre oferece menus específicos dos destinos visitados), estrelou com sucesso em seu cardápio 100% brasileiro pratos como escondidinho, moqueca, tutu, acarajé, frango à passarinho, caldinho de sururu, queijo coalho, bolo de rolo, brigadeiro, quindim, cocada e até pato com tucupi.

No S.A.L.T. Chef's Table, o mais nobre restaurante à bordo, o chef brasileiro Samuel de Oliveira, assistido pela também brasileira Thayanna Oliveira Silva, incluiu até elogiadíssimos bolinhos de feijoada em seu impecável menu degustação de 11 passos.

No S.A.L.T. Chef's Table, Samuel de Oliveira e Thayanna Oliveira Silva
No S.A.L.T. Chef's Table, Samuel de Oliveira e Thayanna Oliveira Silva Imagem: Mari Campos

Ao longo do cruzeiro, também aconteceram aulas e demonstrações culinárias envolvendo a cozinha brasileira. Os gringos aprenderam a arte do nosso churrasco, conheceram o vatapá e o acarajé, e o próprio Samuel ensinou a turma a fazer coxinha - uma iguaria pela qual a maioria se encantou.

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Mas nem sempre o borogodó brasileiro esteve presente. Em uma das aulas, um chef italiano ficou responsável por ensinar o preparo da feijoada e infelizmente resolveu apostar em sua liberdade criativa. Ignorou a necessidade de caldo no feijão e mandou ver no tomate picadinho e no, pasmem, azeite de dendê - e ainda ensinou servir em uma cumbuca, coberto com farofa e, tcharám!, queijo branco em cubos.

O episódio - carinhosamente apelidado de FeijoadaGate - rendeu polêmica e boas risadas entre passageiros e tripulantes até o último dia da viagem.

"Full Brazilian Experience"

É claro que nem tudo era sobre o Brasil a bordo. Os demais restaurantes do navio serviam também pratos das cozinhas francesa, italiana, japonesa e internacional diariamente. A programação incluía shows diversos, apresentações musicais, jogos, workshops, palestras.

Mas foi lindo ver o Brasil gerando mais empolgação entre os passageiros a cada escala. Depois do Rio, entre vários dias de navegação, o Silver Ray parou também em Salvador, Fortaleza, Santarém, Boca da Valéria e Manaus.

Grupo do Silver Ray passeando pelo Pelourinho
Grupo do Silver Ray passeando pelo Pelourinho Imagem: Mari Campos
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Em Fortaleza, os passageiros que escolheram o passeio a Cumbuco foram acomodados em uma barraca de praia com cadeiras antigas de plástico, entre vendedores de salgadinhos, cangas, toalhas, bolsas e redes passando freneticamente entre elas.

Uma "full Brazilian experience", como definiram alguns dos viajantes: cachorros caramelo rodeavam o grupo, tinha pelada rolando à beira-mar, crianças se enterrando na areia, axé em alto volume na caixa de som.

Em Santarém, a agência responsável pelos passeios na cidade, sem ônibus suficientes para acomodar todos os hóspedes do navio, resolveu emprestar antigos ônibus de linha da prefeitura local (com bancos pichados, descascados e tudo), sacolejando os gringos (boa parte acima dos 70 anos) pra lá e pra cá entre as atrações visitadas.

Sem transporte em Santaém, estrageiros do Silver Ray tiveram a experiência brasileira de transporte público
Sem transporte em Santaém, estrageiros do Silver Ray tiveram a experiência brasileira de transporte público Imagem: Mari Campos

Enquanto estivemos no rio Tapajós, o navio sofreu um certo ataque de insetos. Tão persistente que tivemos que manter as varandas dos quartos fechadas dia e noite e o deck da piscina foi parcialmente interditado - além de muitos mosquitos e pequenos besouros circulando, um grupo de abelhas construiu uma colmeia, literalmente da noite para o dia, na laranjeira de um dos lounges externos.

Apesar dos inconvenientes, ninguém reclamou: já estava todo mundo em absoluto êxtase por finalmente chegarmos à Amazônia, o grande 'filé' da viagem. Para boa parte dos hóspedes do Silver Ray, entrar no território amazônico era conquista viajante equivalente a pisar em solo antártico.

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Amazônia arrebatadora

Silver Ray, passando pelo Amazonas
Silver Ray, passando pelo Amazonas Imagem: Mari Campos

Entramos no maior rio do mundo de madrugada; mas, desde o dia anterior, já havia muita gente debruçada nas varandas, acompanhando atentamente, hora a hora, como a coloração do mar mudava com a aproximação das águas barrentas do Amazonas.

Assim como na partida do Rio de Janeiro, que reuniu quase todos os hóspedes do Silver Ray nos decks externos para se despedir da espetacular silhueta da Cidade Maravilhosa, a manhã seguinte à nossa entrada no rio Amazonas também viu o espaço externo do navio se encher. Olhos atentos, câmeras e celulares em punho, todos vidrados na arrebatadora beleza da maior floresta tropical do mundo ladeando a embarcação.

Estrageiros do Silver Ray no Amazonas
Estrageiros do Silver Ray no Amazonas Imagem: Mari Campos

Os elevadores, todos panorâmicos e voltados para o exterior, nunca tiveram tanta gente "perdendo" o andar de destino: era mesmo impossível não se deixar hipnotizar pelo majestoso rio emoldurado por floresta a perder de vista, canoas e casinhas em meio à mata. "É muito mais bonito do que eu imaginava", ouvi de muita gente.

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Em Santarém, caminhamos em um trechinho da floresta, ouvimos sobre os Tapajós, vimos o encontro das águas, aprendemos sobre o preparo da farinha de mandioca e do tucupi, e provamos várias frutas e castanhas amazônicas.

Em Boca da Valéria, vila indígena pertinho de Parintins com apenas 35 famílias, entre muitas crianças falantes, compras de artesanato (tudo com o preço em dólar), doações para a escola, visitas a algumas casas, passeios em voadeira para ver vitórias-régia e muita mímica, era latente o encanto dos estrangeiros com tudo o que viam e experimentavam.

Infelizmente também vimos ali muitos animais sendo mal tratados (alô, Ibama!) por crianças e adolescentes que tentavam mostrar preguiças, caimans, tatus, pacas e araras capturados aos turistas, esperando receber em troca algum dinheiro.

Silver Ray, passando pelo Amazonas
Silver Ray, passando pelo Amazonas Imagem: Mari Campos

Assim como no comecinho da viagem, no Rio, em Manaus o Silver Ray também fez pernoite no porto, garantindo que os viajantes tivessem mais tempo para conhecer o destino e se aventurar nos encantos da Amazônia. De Manaus, o navio seguiria para o Caribe, e muitos dos hóspedes continuaram a bordo.

O italiano Samuele Failla, capitão do Silver Ray durante a passagem pelo Brasil, foi parte da turma que desembarcou comigo em Manaus. Dali, seguiria para casa, de férias, após meses no mar — e estava feliz da vida, vendo seus viajantes tão realizados, que esta tivesse sido sua última viagem antes do descanso com a família. Segundo ele, "o Brasil é sempre uma festa!".

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*nomes trocados a pedido dos passageiros.

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