O que 'Ainda Estou Aqui' me fez entender sobre a maternidade

Muito tem sido dito a respeito da atuação contida de Fernanda Torres em "Ainda Estou Aqui". Reside nessa contenção boa parte do brilhantismo da atuação, dizem os especialistas. O choro e o riso farto, o drama, a intensidade com as quais nós, os leigos, costumamos medir o sucesso de uma interpretação são relativamente fáceis de serem alcançados em relação a essa contenção com a qual Fernanda Torres circulou pelo longa.
Pensando em cenas nas quais a contenção não se faz necessária, pelo contrário, lembro da atuação de Mathew McConaughey em "Interstelar", no trecho em que ele, voltando de uma missão em outro planeta, assiste aos vídeos da filha na Terra e acompanha seu envelhecimento. É uma atuação intensa e comovente, mas é uma atuação farta e que transborda. (Virou meme, claro).
Fernanda Torres, vivendo Eunice Paiva, atua na restrição. E foi apenas assistindo ao filme e lendo sobre essa atuação contida que compreendi muitas imagens que tenho de minha mãe. Um sofrimento que não pode aparecer para os filhos e filhas. Uma dor mastigada e engolida à força, com a mesma força com a qual ela às vezes me obrigava a comer tendo que lidar sozinha com quatro filhos e suas pirraças enquanto meu pai estava em seu escritório - dentro da mesma casa - ou acompanhando corridas de cavalo do Jóckey.
E vejam: meu pai foi um excelente pai para os padrões. Doce, gentil, companheiro, engraçado. Mas é mais fácil brilhar em terreno desimpedido. Difícil é brilhar com a casa caindo, o marido ausente - pelo motivo que for -, as dores contidas.
Vi há muitos anos uma palestra no TED em que o palestrante, cujo nome não lembro, explicava que ele, a mãe e os irmãos tiveram que escapar da guerra civil no Congo e ir para a Europa. Ele lembrava da mãe sempre muito ativa, cuidando deles, resolvendo as coisas, reunindo os poucos pertences com os quais poderiam correr dali. Ele lembrava de nunca ter visto uma lágrima, uma hesitação, um titubeio.
Quando chegaram à Europa como refugiados, também não lembro o país em que desembarcaram, uma pessoa no aeroporto perguntou por que eles estavam vestidos daquele jeito e sem malas. A mãe disse que eles estavam fugindo da guerra civil em seu país. A mulher, ao ouvir a história, abriu sua própria mala ali mesmo e entregou as roupas a eles. Nessa hora, e só nessa hora, ele viu a mãe chorar o choro que provavelmente estava contido há anos.
A maternidade, nos moldes em que a conhecemos hoje, ainda trabalha nessa contenção que obriga mulheres sobrecarregadas a engolirem sentimentos em nome da saúde dos filhos. Não mostrar as nossas dores. Não revelar o que sentimos para protegê-los do mundo. Não dobrar os joelhos a fim de resguardar a sanidade da família. Cuidar, prover, proteger. Repetir no dia seguinte. É coisa demais para uma pessoa só. O custo é uma imensidão. E a força da interpretação de Fernanda Torres talvez esteja comovendo o mundo inteiro justamente porque, no fundo, sabemos que não deveria precisar ser assim.
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